Descompassos da imaginação

Cá estava eu, dias atrás, passando por uma experiência que gosto de descrever como “desconforto comunicativo”. Não há relações sexuais envolvidas, então, fique calmo… O assunto deste post é simples: e quando um bom sistema se afasta da ideia de história?
 
Ensinando o sistema
Um novo jogador apareceu esses dias em minha mesa de D&D 4E. Velho conhecido de todos, ele já tinha experiências na versão anterior do sistema e em outros RPGs, como 3D&T. Era “novato” apenas no que diz respeito a 4ª edição. Sua chegada coincidiu com um pequeno projeto nosso de retomar uma velha história de jogo com novos personagens – uma espécie de spin-off baseado no resgate de um clérigo PJ antigo. Até aí, ok. Não sendo necessário explicar ao novo companheiro o que é um jogo de interpretação, fomos direto ao ponto, explicando as opções de personagem. Sempre há aquela possibilidade de usar personagens prontos, mas preferi não usar o recurso. Todos estavam criando personagens e preferi não colocar o amigo em uma condição diferente.
Depois de sortear atributos (uma prática que sempre adoto no sistema) passei a descrever as funções da 4E. Sou um fã do seu modelo neste ponto: a simplicidade e objetividade das quatro funções, é, basicamente, uma das melhores coisas do jogo. O passo seguinte deveria ser  simples: a escolha das raças. Contudo, existe aqui uma “pegadinha” da edição – que existe desde que D&D foi criado, mas que ficou mais séria, acredito -: a escolha da raça foi deixada para depois, levando em conta (sob o conselho dos demais jogadores), que a preferência da classe era prioritária, a fim de otimizar o personagem. Assim, passamos a examinar as funções e classes. O jogador, disposto a “entrar no jogo”, observou as escolhas dos demais e orientou a sua pelas ausências no grupo – uma tradição que pode irritar jogadores e narradores mais ligados a interpretação… Mas que não me incomoda de modo algum. Notando a população de Agressores e Líderes que se formava a sua volta, o novato escolheu construir um Defensor.
A escolha final foi pelo Guardião (por sugestões alheias e por uma decisão dele de um personagem “selvagem”). Decidindo por um Feral como raça, o jogador começou a escrever a ficha com minha ajuda.
Então, durante a descrição dos poderes, começou o momento “WTF” do mestre aqui. Explicar a mecânica dos poderes de D&D é uma das coisas mais simples do mundo. O que complica é explicar suas descrições. Alguns poderes da 4E têm os títulos e apresentações MAIS RIDÍCULOS que já vi em anos de jogo. De forma ainda direta, recorro a uma das minhas teses prediletas sobre o sistema: o novo D&D tem uma mecânica que agrada àqueles jogadores amantes do combate e do equilíbrio, resolvendo muitas das dores de cabeça de edições passadas, MAS… A linha (com raras, raríssimas exceções) possui um conceito visual extremamente constragedor.
Pacto de realidade e livros básicos
A premissa de que jogos de interpretação usam de um pacto imaginativo é fundamental. Mas a verdade é que, algumas vezes (e esta experiência procura ser exemplo de uma delas), o “core” de um sistema não ajuda no contrato. Desde que comecei a comprar e usar o novo D&D bato com esse problema. Um exercício de abstração é possível, sim, claro… Mas, no fundo, a abstração exige um esforço muito maior quando o material oficial de um jogo cutuca nossa imaginação como coisas como “Raio deslumbrante” (poder de feiticeiro de nível 1) ou “Golpe do carcaju atroz” (poder de Patrulheiro de nível 1).
A chegada de novatos também afeta isso. Não se trata de entrar em um nova subcultura retrô da “vergonha de ser nerd”, mas de entender que algumas linguagens são mais difíceis de serem compradas do que outras. O jogador estranhou e eu não tive muita defesa. A edição mais atual de Dungeons & Dragons coloriu e cartoonizou a fantasia de tal modo que a tentativa de narrar histórias diferentes de Caverna do Dragão são nubladas ou prejudicadas em demasia, afetando a aceitação de algumas pessoas, cuja referência é diferente. E, ao contrário do que muita gente pensa, isso RARAMENTE é um problema de mecânica.
Quando estamos entre amigos ou quando assumimos um espírito saudável de “não leve isso a sério” tudo fica mais fácil. Foi o que ocorreu no fim da história do jogador novato – pelos menos, como atitude paliativa de ambas as partes. A sessão inicial foi divertida e cheia de momentos hilários. Meus jogadores partilham de minha visão crítica (a maioria) e adoram fazer piada com “a fúria do dragonete raivoso” e outros poderes absurdos. O jogador que acaba de chegar ainda não se sentiu a vontade para entrar nas brincadeiras, mas sabe do potencial cômico de alguns elementos do sistema (só não sei dizer o quanto ele gosta disso). Mas, a minha sensação particular, de que D&D não permite certas narrativas sem um pacto muito forçado, apenas aumentou. Ou melhor: ressuscitou com a experiência de ensinar o jogo novamente – coisa que eu não fazia há um ano. Como disse acima, o jogador novato já tinha tido contato com jogos menos sérios, como Defensores de Tóquio 3ª edição. Mas a verdade é que a opção por entrar em uma campanha de D&D tinha, em parte, o objetivo de experimentar uma história menos animesca do que, ironicamente, o sistema da WoTC oferece.
 
 Pitacos de fim
 “Escolha outro sistema!” e “deixe de frescura!” são as respostas que eu eventualmente daria a este tópico, se não fosse eu o autor. 😛 De qualquer forma, pensar esse lado estético dos livros de RPG tem sido uma constante para mim, como consumidor e como chato-pensante. Espero que alguém aí tenha histórias do tipo pra contar. Ou, ao menos, quem sabe, espero que esse texto exorcize alguns fantasmas palhaçantes.
 
Peixeiras!

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17 Resultados

  1. Concordo totalmente com tudo que cê falou a respeito da 4E. Se por um lado é um sistema simples e equilibrado, por outro ele é muito limitado no que diz respeito a atmosfera que se pretende usar em uma campanha. É muito complicado, por exemplo, uma campanha de 4E “low magic” ou com uma ambientação mais realista. Mas essa fantasia colorida é marca da Wizards, e não só do quarta edição, onde eles simplesmente juntaram todas as idéias avacalhadas em um lugar só. Na verdade o que venho percebendo é que a Wizards quer dar uma nova identidade estética para o D&D, embora muitas idéias pareçam ter saído de um mangá shonen ruim…

    • césar/kimble disse:

      Vamos as discussões de sempre:
      a) “por outro ele é muito limitado no que diz respeito a atmosfera que se pretende usar em uma campanha.”
      Por isso que os três cenários oficiais pro jogo, Forgotten Realms, Eberron e Dark Sun são tão parecidos.
      b) “É muito complicado, por exemplo, uma campanha de 4E “low magic””
      O que seria possível se talvez eles tivessem criado alguma regra que permitisse cobrir a necessidade de itens mágicos. Nem que eles incluíssem, sei lá, no DMG 2 ou no Dark Sun.
      c) “embora muitas idéias pareçam ter saído de um mangá shonen ruim…”
      Pelo menos é algo novo, não algo que jogadores mais antigos já faziam desde a época do Ad&d (só mudando mangá/anime para ‘desenho de sábado de manhã’).

      Jagunço,
      Uma sugestão que tem no PHB (e que infelizmente muita gente lê por cima e nem percebe que está ali), é criar sua própria descrição pros poderes. É o que sempre faço quando jogo e que incentivo meus jogadores a fazerem, pois costuma render descrições bem mais interessantes do que a maioria dos livros traz 🙂

      • Armageddon disse:

        Isso de descrever os poderes de acordo com o que der na veneta do sujeito é bem a cara do 3D&T, aliás. Não é um demérito, ao meu ver, muito ao contrário. Poe a cabeça do sujeito pra funcionar ;D

      • Dan Ramos disse:

        Poxa Kimble, não combate o argumento do cara esculhambando quem gosta de old school, véi.

        • césar/kimble disse:

          Não tava esculhambando 😛 TAva dizendo só que toda nova edição, esses argumentos de ‘virou desenho’ e ‘virou videogame’ se repetem.

      • Jagunço disse:

        Isso de redefinir as descrições dos poderes é uma coisa que tomo como defesa da 4E desde o começo, Kimble. Concordo que é possível, sim. O problema é que, depois de tempos jogando, sinto que essa é uma coisa que, na prática, enfraquece o “produto” D&D. A gente sabe que a imaginação é uma coisa forte, mas o fato é que a 4E não tem feito muito esforço pra abrir a gama imaginativa não. A crítica, no fundo, é ao conjunto de livros, mesmo. Uma vez que eles reforçam uma simplificação descritiva que tem “enjoado”.
        Sempre fui um fervoroso defensor de ajustes narrativos em mecânicas boas – é mais fácil que o contrário, vide Storyteller. Mas, talvez eu esteja ficando velho, porque sinto falta de PUBLICAÇÕES diferenciadas dentro da marca D&D. Saudade da população de tons distintos que a licença aberta permitia. 🙂

        • césar/kimble disse:

          Jagunço,
          Eu entendo o ponto de vista e também gostaria que a edição atual tivesse mais suporte de terceiros, porque isso trouxe muita coisa interessante na época da 3e.
          Na parte da descrição e ser cansativo ter que continuamente fazer isso, acho que aí é gosto também. Eu tenho preferido cada vez mais jogos que me permitem dar minha própria descrição para o que acontece, seja como mestre ou jogador. Até porque por experiências em jogos assim, já percebi que muitas vezes o que é criado na mesa se torna mais interessante do que o material descritivo da maioria dos livros. Mas aí é questão de preferências e estilos de grupo, eu tive sorte de cair com um grupo que gosta de jogos com muita improvisação 🙂

  2. Keldorl disse:

    Isso que te incomodou agora me incomodou desde o início e em muito maior intensidade, achei praticamente ofensiva essa estética e a limitação do tipo de narrativa que ela favorecia; assim logo após lermos as regras da 4rta edição eu meus amigos das mesas nas quais jogo não tivemos nenhuma vontade de jogá-la; tudo isso fora minhas birras com a mecânica tbm.

  3. hackbarth disse:

    Você sempre pode mudar a estética do jogo na sua mesa. Reescreva os nomes dos golpes e suas descrições. Não conheço D&D mas me parece que você poderia facilmente mudar o nome de “Raio Deslumbrante” para algo como “O Poder da Mente Forte sobre a Mente Fraca” ou “Olhar Hipnótico” e “Golpe do Carcaju Atroz” para “Golpe das Garras Selvagens” ou algo assim…
    O problema do D&D é a sensação de que se deve usar tudo como está nos livros.

  4. Dan Ramos disse:

    Eu achei até estranho que, sendo um macaco velho, você teve dificuldades em mudar o nome dos poderes ou inventar uma descrição massa na hora de explicar o poder pro caboclo.
    Eu também detesto a estética colorida e MMO que o visu da 4E tem, incluindo os poderes muito escalafobéticos. Mas dá pra contornar, dar um jeitinho, e tal. Como você sabe, eu tenho uma campanha na 4E que só mantenho por causa de dois jogadores (que só curtem, de fantasia, 4E), mas narro ela com sérias alterações porque não se encaixa no meu estilo. Mas se não está dando pra abstrair, é mudar mesmo de sistema, ou sei lá. Nosso eterno dilema.

  5. Kenay disse:

    Pela minha experiência, percebo uma inversão de valores grande na 4ª edição.
    joguei cerca de 8 anos o 3.5 e durante uns 6-7 meses o 4.0
    No sentido que eu aprendi e me habituei a jogar da seguinte forma: interpretação > Regras.
    Onde as regras davam uma base para o que eu inventasse e quisesse interpretar. Se o meu ladino quisesse fazer um ataque mais elaborado, se valendo de alguma artimanha, visando obter alguma vantagem em cima do adversário caberia ao mestre, com base naquilo que ele entende das regras, elaborar uma mecânica para que eu realizasse meu golpe.
    O que eu vejo o pessoal pedindo aqui, e acho até válido para ter mais graça ao se jogar a 4ª edição, mas que vai contra o que eu a principio estava acostumado, é criar interpretações em cima de mecânicas pré moldadas. Nada contra (apesar de me sentir meio preso). Mas o estilo de jogo do meu grupo preza por uma mecânica mais básica que pode abranger proezas mais sofisticadas.

    • césar/kimble disse:

      “Mas o estilo de jogo do meu grupo preza por uma mecânica mais básica que pode abranger proezas mais sofisticadas.”
      Se você gosta disso, devia considerar outro sistema que não a 3e (ou Pathfinder, ou 4e, etc.) então. Porquê são sistemas que tentam abranger todo tipo de situação de combate e criar um módulo de regras bem fechado pra isso.
      Não que não exista espaço para improvisar novas manobras, mas isso costuma ser mais fácil em sistemas com menor complexidade ou que sejam mais complexos e já tenham em seu sistema algum mecanismo que ajude no processo.

      • bobNerd disse:

        Eu aindei lendo alguns títulos da Malhavoc Press como The Book of Iron Might. E apesar de serem para um sistema um pouco diferenciado eles tem muitas idéias boas para se usar, creio eu, em qualquer coisa baseado no D20. No que diz respeito a improvisação de novas manobras e até criação de golpes especiais. É um título excelente e ajuda muito nessa questão. Se o mestre/jogador quiser mais liberdade que isso, só trocando de sistema.

      • bobNerd disse:

        Eu andei lendo alguns títulos da Malhavoc Press como The Book of Iron Might. E apesar de serem para um sistema um pouco diferenciado eles tem muitas idéias boas para se usar, creio eu, em qualquer coisa baseado no D20. No que diz respeito a improvisação de novas manobras e até criação de golpes especiais. É um título excelente e ajuda muito nessa questão. Se o mestre/jogador quiser mais liberdade que isso, só trocando de sistema.

  6. Jagunço disse:

    Vou tentar responder aos comentários da maioria com o seguinte: sim a estética é possível de ser alterada em mesa. Mas, sinto muita falta de um esforço da Wizard em trazer climas diferentes. Sou um defensor da praticidade mecânica da 4E, mas a verdade é que a diversidade de cenários e fórmulas descritivas da 3E (com a Licença d20) era mais realista, no sentido de abarcar públicos com gostos diferentes. É aquele argumento nem sempre popular entre RPGistas do “se estou comprando, querendo ter o mínimo de trabalho” – mesmo que o trabalho seja só inventar novas descrições. Não amo esse argumento, mas vou ter de usar ele hoje. 😛

  7. Gruingas disse:

    Eu acredito que um bom mestre dedicado e um grupo animado podem superar as limitações de um sistema, no caso do D&D 4e uma grande limitação é a ausência de um bom intercâmbio entre as regras e as descrições. O que leva o grupo a ter que imaginar o que as regras poderiam querer dizer no mundo de fantasia.
    Mas, quando uma limitação do sistema se faz presente a cada aventura, a cada cena… talvez fosse menos cansativo e mais divertido escolher outro sistema.
    Não é que a 4e seja um sistema ruim, vai do grupo. Mas pra mim que sempre li principalmente livros de 3D&T, D&D 3e e GURPS, os livros da 4e parecem muito “pelados”. Parecem um amontoado de regras com algumas ilustrações, mas com poucas descrições e conceitos.

    • Jagunço disse:

      A mecânica, em si, tem muitas vantagens. Mas é isso que você disse: esbarrar, sempre, em descrições “oficiais” contrárias à proposta narrativa é complicado. Ainda mais quando entra um novato, que fica visivelmente perdido entre a matriz artesanal do grupo e o que “os livros dizem”.

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