Da Falta
Quando cheguei a Tiberius só conseguia sentir horror. Minhas mãos suavam além do que era possível suportar e o tremor cruzava meu corpo, deixando minhas pernas sem uso. De qualquer forma, eu não precisava andar. A longa fila de celas-com-rodas cruzava rumo ao Noroeste
A guerra jorrou para as Vilas Altas com uma velocidade que nenhuma camponesa poderia imaginar ou descrever. Vejo em minha mente as colunas de fumaça e os corpos quebrados de maridos e filhos. Há quem diga que os Monstros lutam com honra. Mas eu não vejo honra na morte. Ela destrói planos feitos, sonhos construídos e deixa para trás almas vivas marcadas pelo abandono. Este é um tempo de orgulho guerreiro, de valorizar o poder e a força; de modo que minhas palavras são desencontradas, mas traduzem o que eu e outras tantas pensam, não duvide.
Não vimos a chegada. As mulheres eram mantidas juntas e as celas eram cobertas com veludo. No começo eram quase como liteiras nobres: perfumadas, almofadadas e limpas. Mas as semanas de viagem as fez celas completas: sujas, escuras, desfiadas e cheias de choro. A meu lado Trina se desfazia. Perdera o pai e o irmão, como nós sempre perdemos quando a guerra vem. Mas o pior era o medo. Ela caminhou da tristeza para o desespero e, em seguida, para a paz cinzenta da falta de esperanças. Ela era tudo o que eu via. E eu era como ela: perdendo a vida aos poucos no passo da Estrada.
Os bardos de Deheon falavam da sábia arquitetura da Capital dos Monstros. Mas quando as cobertas foram retiradas eu só pensava nos Muros. Grandes como todos os meus pesadelos de viagem. Fomos retiradas com palavras simples e diretas. Acorrentadas umas as outras e levadas em longas filas para pontos diferentes. Trina já tinha o olhar perdido a minha frente. O prédio que vi era um bloco maciço, de doze metros de altura. Uma vastidão de certeza decorada com lanças e chifres dourados por toda a parte. Senti-me pequena nos elos da corrente.
Havia outras mulheres ali. Vestidas com sedas, linhos finos e jóias. As correntes em seus pescoços eram delicadas e bonitas – como toda mentira. Vi olhos vivos e sorrisos largos. Fomos recebidas por elas. Elas nos despiram, nos entregaram aos banhos e a um palácio de conforto. Já eram Deles.
Foi a primeira noite em que dormi. A bem da verdade o cheiro do jasmim sempre me inebriou, sempre me tirou a dor das memórias. Afundei nas cobertas com Trina em meus braços, uma menina de catorze invernos, uma pequena estátua fria. Então a manhã partiu o mundo e eu me lembrei onde estava.
Os Monstros, emoldurados em armaduras sem fim, nos olhavam como meu pai olhava as plantações. Andaram, bufaram e trocaram palavras nos seus dialetos, enquanto éramos postas em fila, lado a lado. Ignorei o que pude, baixando os olhos como as outras. Mas eu era a filha mais curiosa. A que recebia os castigos por ir além do bosque. A que perdera tudo, também. Pensei nisso e quis chorar, mas o destino me deu motivo mais forte. Um Deles veio até mim. Me inspecionou com olhos de fogo e gelo. Rezei. Rezei sem muita fé. Ele me tocou no ombro e eu quis morrer. Mas estava pétrea, eu mesma como uma estátua de pavor. Senti o broche do ombro desprender, senti o linho valioso escapar para o chão. Meus braços me protegeram por um instante, mas Ele os afastou com a ajuda da força do meu medo. Fiquei ali, semi-morta, minha primeira nudez não escolhida.
Faz três anos. Nunca mais vi Trina e ainda sonho com sua pele fria, junto a mim. Há três anos começaram minhas noites escuras. A primeira delas destruiu qualquer coisa do que achei que era. Senti-me suja para sempre. Os Monstros seriam, a partir dali, nossos senhores. Senhores de tantas outras e tantos outros. Lembro da escuridão, dos gritos, das revoltas pagas com morte. Continuo viva – o que significa que não estou. E agora, depois de tanto tempo, tantos toques repugnantes e tantas ordens dadas para um prazer que nunca é meu… Ele está aqui, crescendo em mim. Filho de um Monstro. Darei vida a ele, mas quero matá-lo. Não existiria verdade nesse mundo se eu negasse essa. Porque ainda sinto-me suja para sempre, porque não sou nada, não tenho nada e jamais terei.
* * *
A Foto usada neste post pertence a Natasha Lyonne. Todos os direitos reservados a autora.
Excelente, Mário. Depois ainda perguntam porque não gosto dos mugidores de bosta.
visão mais adulta gosto disso.
Como na mitologia artoniana não há nenhum halfling de destaque, embora sejam bastante numerosos, seria interessante que um ou alguns deles acabassem com o império de Tauron. Que ironia, uma raça que age pela força ser derrotada por criaturas tão fracas. Isso seria legal de ver!!!
Holy crap… Estou estupefato. Nada mais.
Parabéns.
Eu quase nunca comento aqui. Não sobre Tormenta. Mas o Jagunço conseguiu uma coisa que poucos autores conseguem. Arrancou de mim um sentimento de raiva, como eu só sinto por estupradores na vida real. Quero-os mortos. Todos eles, reais ou imaginários.
Só pra não polemizar demais, faço minhas as palavras do Dan Ramos.
Agradeço os comentários, amigos. A ideia original é realmente trabalhar um ponto aparentemente pouco explorado em Guerras Táuricas (que acabo de ler). Não gostei do tom defensivo da escravidão, ali exposto, mas entendo que desbravar a lacuna é possível – como o artigo mais recente do Shido mostra, sob outro tema. Não sou, contudo, um crítico do uso narrativo da violência. Apenas considero que ela pode e merece ser pensada a partir das perspectivas. E pessoas, reais ou imaginárias, possuem as suas, fazendo com que o mundo – mais uma vez real ou não – seja sempre mais rico do que a superfície mostra ou a rotina esconde.
É só um conto curto, mas é também uma experiência narrativa 'pra mim: pensar a perspectiva feminina – um desafio complicado para qualquer escritor homem, por conta de todas as singularidades que a existência traz – por meio do corpo e das consciências diferentes que construímos sobre ele – e por conta dos estereótipos sempre tentadores. Agradeço a Elisa por me ajudar aqui nisso, apontando uma ausência importante.
Só pra tornar pública a sugestão que te dei no Gtalk de, quando quiser, escrever também sobre outras óticas: o soldado minotauro, o escravo mais capaz de escapar (aventureiro), alguém de outro reino, a nobreza de Deheon… =)
Ideias mais que anotadas. 😛
Parabens Jagunço, terminei de ler e o que vi foi a melhor abordagem do tema até hoje. Muito bem feito. Retira aquela ideia de criança de "Eles são bons donos. Não é tão ruim assim." e o resto do mimimi. Os bois lovers deveriam ler esse conto e entender como a escravidão é ruim para pessoas que nasceram livres. Aí eu queria ver eles continuarem com o mimimi.
E como digo: "Onde existir um ditador, haverá alguem para enfrentá-lo"
Parabéns pelo conto, jagunço. Ele mostra bem que os minotauros não passam de escravistas miseráveis e estupradores. Não que eu me revoltasse realmente com isso se assim fossem retratados e que as desculpas deles nada mais são do que desculpas e não algo falado como se fosse verdade mesmo vendida aos leitores do cenário. E o spin-off do Shido para os minotauros foi foda, mas a minovaca mais realista de todos os tempos é a Vaca, da Vaca e o frango, e tenho dito!
@mamorra e @Youkai X:
Obrigado, companheiros. Acho bacana essa capacidade de um tema provocar o que entendo por debate divertido – um passeio sem documentos pelas possibilidades da ficção fantástica. 😀
Muito bom!!!
Espero por mais!
Não me tente… 😛
É muito raro pra mim ler sobre RPG em blogs, coisa mais rara ainda comentar.
Os contos fantásticos tendem a colocar a fantasia sempre em evidência, o que, ao meu ver, torna o texto quase sempre previsível. Sua ótica, no entanto, trouxe este universo para perto de nós, colocou-nos de joelhos perante o poder de uma raça dominante.
A inquietude gerada vai ecoar na minha mente por um bom tempo..
simplismente exelente!