Religião da Loucura: Clero de Nimb (Parte 2)
Como prometido na primeira parte do artigo, temos três exemplos detalhados de cultos nimbianos. Uma vez que os tenhamos conhecido, veremos algumas considerações sobre seu uso em jogo. Sem mais enrolação:
Corpus Dei
Distúrbio dogmático: Esquizofrenia
O “Corpo de Deus”, que por vezes usa o nome de “Seguidores da Iluminação Intra-corporal”, é um culto fundado por Zerimar Desart, sobre a crença de que o corpo fragmentado de Nimb foi “absorvido” por diversas pessoas em Deheon. É dever do iniciado da fé encontrar e recuperar tais fragmentos, libertando-os de sua prisão de carne — o que geralmente é fatal para o suposto portador. Os devotos mais “puros” e avançados na fé praticam a antropofagia, sob a justificativa de que são os únicos suficientemente iluminados para carregar os fragmentos de Nimb, dos quais serão apenas portadores temporários — no dia do arrebatamento, o próprio Nimb devorará seus corpos, reabsorvendo as partes perdidas e tornando-se inteiro novamente.
Dogma: A crença do Corpus Dei tem suas bases nos escritos de Desart, que por sua vez lhes foram diretamente ditados por Nimb. O deus apareceu em visões para Desart, mas seu aspecto era perturbador — por vezes tinha o corpo constituído de partes putrefatas de animais e goblinóides costuradas e esmo umas nas outras; em outras, era um enorme totem de comida, maçãs seguras na boca de leitões assados como olhos e costelas cozidas de cordeiro fazendo as vezes de garras; em ocasiões mais prosaicas, uma massa de detritos animada ou uma furtiva sombra em uma alameda escura. Tais formas, Nimb explicou, eram apenas um corpo substituto, já que o verdadeiro estava mutilado, incompleto. À medida que a metrópole de Valkaria prosperava, o grau de Ordem aumentava, alimentando-se da energia livre do Caos — e isso aplicava-se também às almas dos que lá nasciam, almas que absorvem e encapsulam o Caos bruto — o próprio corpo de Nimb –, impossibitando-o de fluir e mutilando o deus.
Nimb explicou a Zerimar, em noites de horror e visões dantescas, sobre a importância do corpo e as potencialidades divinas que nele estão contidas. “Devorar um corpo”, disse Nimb, “é absorver todos os grandes poderes que ele guarda.” E Nimb seguiu nessa linha, descrevendo, detalhadamente, os poderes que estariam associados a cada órgão específico. Tal conhecimento sagrado há de ser utilizado para dois propósitos. O primeiro, saber identificar se um dado corpo tem em si aprisionado um fragmento do deus, e, em caso afirmativo, em que órgão está localizado, bem como removê-lo sem danificar a essência divina. O segundo é o auto-aperfeiçoamento dos devotos, que, acreditam, chegarão mais próximos à condição de divindade com assimilação de características de poder, obtida através do consumo de órgãos — o coração de um valente guerreiro para obter coragem, por exemplo.
Como templo sagrado que é, o corpo não deve ser danificado. São condenados como prejudiciais o consumo de álcool ou drogas — ainda que o consumo de achbuld, para fins litúrgicos apenas, seja permitido. São também pecaminosas privações que enfraquecem o corpo, como jejuns, mas a auto-mutilação com fins “exploratórios” é incentivada, por levar ao conhecimento. Um indivíduo que carregue um fragmento de Nimb e se recuse a entregá-lo é um pecador no mais alto grau — apenas os mais iluminados têm corpos suficientemente puros para carregá-los, sendo receptáculos provisórios que serão devorados por Nimb quando chegar o momento da Reunião, honraria máxima entre os devotos.
Atividades e Influência: o Corpus Dei se ocupa, predominantemente, de perseguição e assassinato, o que lhes coloca sob a mira das autoridades. O Corpus Dei devota a maior parte de seus esforços em localizar indivíduos que portem os fragmentos de Nimb, abrindo-os cirurgicamente e removendo os orgãos que contenham a essência divina, que posteriormente serão devorados em cerimônias. Para apoiar tais procedimentos, o doutrinamento é permeado por intensos estudos de anatomia, medicina e ocultismo, de modo a identificar, remover e preparar os órgãos desejados. Muitos dos avanços da medicina de Sallistick são estudados, e, quando combinados a conceitos esotéricos e preceitos do dogma, dão origem a “experimentos” horrendos — como a prática do “Ventre de deus”, por exemplo.
Acólitos também recebem treinamento em técnicas criminosas e furtivas, com o intuito de facilitar o acesso às vitimas e evadir a cena do crime sem despertar a atenção das autoridades. Clandestina e marginal, a influência do Corpus Dei limita-se ao exercício do terror, espalhando medo e mobilizando agentes da lei — o que muito contribui para um clima caótico e desordeiro.
Hierarquia: A hierarquia do Corpus Dei se divide em círculos, com importância hierárquica crescente dos Vigias até os Devoradores. Personagens adentram os círculos hierárquicos à medida que acumulam conhecimento e iluminação.
O Círculo dos Olhos-que-a-Verdade-Vêem, ou simplesmente Vigias, é o dos recém-iniciados, que se ocupam de localizar indivíduos que carreguem algum fragmento de Nimb. Isto é feito com espionagem próxima, uma vez que, próximo a um prospecto positivo, o iniciado consegue literalmente ouvir os gritos e os choros abafados de Nimb dentro do corpo (que são, naturalmente, alucinações esquizofrênicas). Vigias mais avançados conseguem, por meios místicos, estipular exatamente em que órgão o fragmento se encontra.
Já os Coletores, ou o Círculo das Mãos-Cutelos-Enferrujados, têm a função de coletar os órgãos sagrados, sendo estudantes avançados de anatomia e medicina. São os que possuem também as melhores habilidades furtivas, já que também é sua função raptar vítimas para as cerimônias de dissecção e antropofagia. Coletores melhor graduados podem presidir cerimônias litúrgicas, mas ainda não são suficientemente iluminados para consumir os fragmentos de Nimb.
No topo da hierarquia está o Círculo da Bocarra-de-Infinitos-Dentes, também chamados de Devoradores. Os Devoradores se encarregam do doutrinamento pessoal de Coletores graduados, presidem todas as cerimônias em que estiverem presentes e estão aptos a consumir os fragmentos do deus. Os Devoradores são os diretores do culto, estipulando como e quando algum procedimento específico ou cerimônia serão realizados.
Cerimônias: As cerimônias e rituais do Corpus Dei são realizadas em segredo, com suas datas e locais transmitidos com pouca antecedência (ainda que possuam uns poucos Abatedouros fixos), geralmente em código, de um devoto para outro. Além do livro sagrado — o Codex Corporis, um calhamaço de folhas de pergaminho repletas de garatujas e diagramas incompreensíveis, legível apenas por Devoradores –, os rituais são apoiados por uma parafernália litúrgica apropriada — altares de dissecção, instrumentos cirúrgicos/de açougue, órgãos em conservas alquímicas e tachos de cozimento, para citar alguns. Orações monótonas e repetitivas, sangue e flagelação também se fazem presentes.
Liturgia da Revelação: é o rito em que um Devorador ou Coletor graduado doutrina os demais acólitos nos preceitos do dogma do Corpus Dei. São lidas passagens do Codex Corporis, com ênfase em um ou outro aspecto específico — de “A importância da iluminação corporal” a “As bênçãos dos rins”. No ápice da cerimônia, são ingeridos nacos de carne marinados no achbuld, que desencadeiam visões e possibilitam (ou assim se pensa) comunicar-se com Nimb. Em ocasiões especiais, os devotos reunem-se em torno de um altar cirúrgico, em que o mestre de cerimônias “revela”, através da dissecção — ou, se possível, vivissecção –, os “mistérios” de um corpo escolhido para sacrifício.
Antropofagia: é um rito especial, realizado semanal ou mensalmente, como parte integrante de uma dissecção de Revelação. Os corpo é desmantelado, preparado alquimicamente, e, a seguir, é consumido pelos presentes. O grau de ascensão hierárquica define a divisão das partes — círculos internos têm direito a partes mais nobres, como o cérebro e o coração, enquantos vísceras são destinadas aos acólitos menos experientes. Em cerimônias em que o sacrificado é portador de um órgão dotado de um fragmento, este é consumido pelo Devorador mais graduado, enquanto as partes restantes são distribuídas, de acordo com a hierarquia, entre os demais presentes.
Ventre de deus: um rito recente, visto por alguns Corporalistas mais conservadores como uma perversão dos dogmas (como se os tradicionais, por si, já não fossem pervertidos). Com incongruentes bases em estudos médicos e místicos, este ritual tem como objetivo dar nascimento a “filhos de Nimb”, indivíduos imbuídos com o poder do próprio deus. Trata-se de uma variação da cerimônia de Antropofagia — em vez de um Devorador consumir os órgãos com fragmentos de Nimb, estes são dados a uma devota que esteja gestando, de modo que a criança, teoricamente, absorve a essência divina no ventre da mãe. Pode haver alguma verdade nisso — gestantes tratadas com essa dieta geralmente parem Lisérgios — sulfure tocados por Nimb.
Acólitos da Aversão
Distúrbio Dogmático: Fobia
Não se trata de um grupo organizado, mas de pequenos focos espalhados por todo o Reinado, chamados, coletivamente, de Acólitos da Aversão. Manifestos em uma vertiginosa miríade de variações, possuem dois pontos enfáticos em comum: medo irracional e inexplicável focado em um objeto específico e a convicção insana de que o alvo de tal aversão é antagônico aos desígnios divinos de Nimb e deve, portanto, ser caçado e destruído.
Dogma: os Acólitos da Aversão são um caso clássico de distúrbio-transformado-em-dogma, fobias graves que, com o tempo, dominam a atenção e os pensamentos do afligido, que, após levarem o paciente ao colapso — evento chamado de Epifania pelos Acólitos –, transformam-se em certeza insana. Aos olhos dos Acólitos isso parece muito natural, caso contrário Nimb não os teria inspirado de forma tão direta e precisa.
Os textos sagrados dos Acólitos da Aversão, nos casos em que existem, costumam ser tão variados em estilo e temática quanto são variadas as fobias que os afligem. Em decorrência de algum conflito tão antigo quanto a união do Nada e do Vazio, ou alguma espécie de “desastre” místico tão recente quanto semanas atrás, alguma coisa tornou-se extremamente errada e danosa — e, portanto, passível de destruição sem quaisquer ressalvas morais.
O dogma dos Acólitos é maniqueísta e de fácil compreensão — o objeto da fobia e tudo a ele relacionado é irremediavelmente maligno; tudo o que de alguma forma se mostre antagônico ao objeto em questão se torna por definição bom e virtuoso. Sobre esse “esqueleto”, é, pelos devotos, aplicada a “carne” da crença, composta de analogias e relação mirabolantes (e inexistentes) de causa e efeito, cujo objetivo é emoldurar este ou aquele aspecto em um dos pólos. Acólitos cuja fobia seja direcionada, por exemplo, a ratos, vêem nos gatos e em donas de casa higiênicas figuras virtuosas e dignas de reverência, enquanto fazendeiros, por armazenarem grãos que atraem os roedores, ou governantes que negligenciem questões sanitárias, são pérfidos e pecaminosos; bons argumentos por parte de um Acólito podem, contudo, mudar o quadro, sob a justificativa de que os tais agricultores também se opõem à praga e são, na verdade, vitimados por ela — e passam, como que por magia, de opositores a aliados.
Atividades e Influência: as ações dos Acólitos se concentram em eliminar o objeto de sua fobia, pura e simplesmente. Como tal objeto lhes causa aversão sem par, contudo, o combate deve ser empreendido indiretamente, em inacreditáveis esquemas que nem sempre têm uma relação óbvia com o alvo dos ataques. Para possibilitar isso, os Acólitos procuram dedicadamente todo e qualquer conhecimento disponível que aborde seu objeto de medo. O fruto de tais estudos é, a seguir, compartilhado com o grupo, nos raros casos em que um se constrói em torno de uma fobia específica, e, em tais debates, os dogmas podem sofrer alterações de modo a refletir os avanços feitos. Ainda que clandestinos e vistos com reprovação, não raro os Acólitos são procurados por indivíduos ou grupos que partilhem do antagonismo de um dado culto de Acólitos — ainda que não entendam ou aprovem toda a carga insano-teológica que serve de apoio aos devotos.
Em virtude disso, sua relevância política é altamente variável — de acordo com as escolhas dos Acólitos em termos de aliados e antagonistas, podem passar de paparicados por figuras importantes à total irrelevância ou declarados inimigos do Estado, sendo tais variações abruptas e geralmente estrondosas.
Hierarquia: os cultos de Acólitos carecem de hierarquia rígida — grupos de indivíduos fóbicos meramente se reúnem em torno de um líder (igualmente fóbico, claro) que ocupa tal posição em virtude de maior conhecimento sobre o objeto da fobia. Em períodos de pouca atividade, tendem a surgir disputas pela liderança, em que um membro subalterno, em decorrência de pesquisa aliada a conceitos teológicos obscuros (que costumam surgir espontaneamente, por vezes associado a outro distúrbio), pode ascender ao posto de líder. Tais derrocadas não costumam ser vistas com rancor ou ressentimento — se uma dada linha teológica tem mais chances de levar à realização do objetivo, nada mais natural que seja ela a nortear os procedimentos — até ser desbancada por outra teoria mais (i)lógica, ao menos.
Cerimônias: além dos grupos de estudos e conferências teórico-teológicas, os Acólitos possuem dois tipos gerais de cerimônias de orientação espiritual e comunhão, cujo objetivo é fortalecer a convicção insano-religiosa. Os procedimentos e instrumentos litúrgicos variam juntamente com as variações das teorias que constituem o dogma. São comuns hinos maníacos e orações que mais lembram um ataque de nervos.
Liturgia do Auxílio Divino: se caracteriza pelo enaltecimento de qualquer recurso ou ferramenta que seja percebido como oposto ao objeto da fobia, elevado ao patamar de “criação direta de Nimb”, possuindo, portanto, status divino. Fobia em relação a roedores, para retomar o exemplo prévio, enaltece gatos com um zelo egípcio e deposita em ratoeiras a importância de relíquias sagradas — podendo até mesmo possuir uma suficientemente antiga fazendo as vezes de “Arca da Aliança”. Os Acólitos se reúnem em torno do “foco sagrado” e, através de hinos e sermões acalorados, falam dele muito favoravelmente.
Descarrego do Ódio: trata-se do extremo oposto do rito do auxílio — foca-se no objeto do medo, que é aviltado com discursos e recusado em orações furiosas ou, se o mesmo estiver presente, é agredido direta e entusiasmadamente. Esta é a cerimônia que mais contribui no reforço do dogma, uma vez que, com o objeto da fobia presente, o medo atroz deve ser momentaneamente sobrepujado através do ódio e, uma vez que tal objeto tenha sido efetivamente destruído e, portanto, deixa de ser ameaça, o alívio e a satisfação decorrentes agem como estímulo positivo à aversão.
(Os moldes do culto dos Acólitos da Aversão podem ser aplicados também a grupos cujo distúrbio dogmático seja Obsessão ou uma mania similar. Nesses casos, o foco das ações recai menos no ódio e na destruição de objetos antagônicos e mais no enaltecimento e proteção do foco obsessivo.)
Cabala da Idealização
Distúrbios Dogmáticos: Transtornos Alimentares (Anorexia, Bulimia…)
A Cabala da Idealização, de modo semelhante ao Corpus Dei, se especializa no conceito de santidade do corpo, mas sob um foco bastante distinto. Para eles, o corpo físico nada mais é que uma prisão estática e imperfeita, um obstáculo para a auto-perfeição de um corpo idealizado, cujos parâmetros são revelados diretamente pela sabedoria de Nimb. Cabe aos Cabalistas romper as barreiras do físico, moldando o corpo de modo a submetê-lo a uma transformação dinâmica.
Tal bênção deve ser compartilhada, pois só assim Arton se tornará um lugar melhor, visto que todas as tragédias — até mesmo a vinda da Tormenta — ocorrem em decorrência do “desequilíbrio cosmológico” causado pela não-observação de tais preceitos.
Dogma: o corpo físico nada mais é que um empecilho, que tranca o indivíduo em um pedaço de carne impuro e impede a ascensão divina. A própria punição de Valkaria revela a verdade contida nisso — antes livre e perfeita, foi punida, por seus crimes, com uma prisão corpórea.
Uma obsessão oral permeia os ensinamentos, fazendo com que o ato de alimentar-se se torne, de maneira totalmente dissociada da sobrevivência, uma questão de vida ou morte. Quanto mais delgado for o corpo, menos corpo ele será, e estará, portanto, mais próximo do ideal do Anti-Corpo — uma das formas a que se refere a Nimb, que é perfeito por ser uma deidade e, portanto, ente não-físico.
Nimb imbui a mente dos Cabalistas com o régio código da desnutrição, que é sacralizado em procedimentos e listas meticulosas, capazes de rivalizar com as mais regradas práticas da igreja de Khalmyr. Tal prática, mais que mero capricho, é terminantemente necessária — o fato de a mente conhecer a “verdade superior” não cala, automaticamente, as demandas nutricionais do corpo físico. Alimentos pouco nutritivos, relacionados nos “livros sagrados” da ordem, são mandatórios; táticas mais “avançadas”, como a ingestão de argila ou de gelo para aplacar a fome, são exercício de virtude. Tal regime de privação fortalece a disciplina e o auto-controle, características tomadas como vitais para o processo de aperfeiçoamento.
A culpa é um instrumento poderoso no doutrinamento dos Cabalistas. A prática de atos considerados não-ortodoxos é carregada de forma extremamente negativa, rechaçada de modo hostil pelo grupo como um todo. Tal medo da desaprovação, aliado à baixa auto-estima geralmente associada aos distúrbios dogmáticos, assegura que ações heréticas ocorram em grau mínimo.
Atividades e Influência: as práticas da Cabala vão desde “inofensivo” proselitismo até atos diretos de sabotagem e terrorismo. Enquanto membros moderados se contentam apenas em ensinar pelo exemplo — como a esmagadora maioria destes cultistas costuma ser de mulheres seguras, disciplinadas e belas (pelo menos antes dos estágios crônicos de desnutrição), suas perigosas práticas acabam por se tornarem sedutoras e passíveis de arrebanhar adeptos. São empreendidos também estudos que auxiliem na busca pelo Corpo Perfeito — como experimentos arcanos que propõem alimentação através da luz, por exemplo. Membros mais radicais chegam a extremos como incendiar plantações de grãos ou raptar indivíduos que receberão a “iluminação” involuntariamente. Algumas figuras de maior influência e poder, que o público nem mesmo suspeita servirem a Nimb, são capazes de manobras sutis de conseqüências devastadoras, seja através apenas do prosaico exemplo até estratégias ousadas, como a compra, destinada à queima, de carregamentos inteiros de gêneros alimentícios, causando fome e morte em agrupamentos tão grandes quanto cidades.
A Cabala, recentemente, tem conseguido devotos nas classes altas — predominantemente herdeiras de famílias nobres ou de ricos comerciantes –, que têm enorme sucesso em contaminar as mentes daqueles sedentos por ascensão social.
Hierarquia: A hierarquia da Cabala da Idealização é graduada com relação direta ao sucesso alcançado na jornada em busca do Corpo Perfeito. Os membros mais disciplinados e, portanto, cadavericamente magros em virtude da desnutrição, são vistos como mais próximos à iluminação, recebendo respeito e reverência por parte daqueles com menos sucesso e força de vontade. As relações entre os membros do culto acontecem nas bases de admiração, elogios e — mais importante — reprimendas e desaprovação. Mais culpa nunca é demais.
Cerimônias: Os ritos da Cabala têm como base conceitos de reforço positivo — em decorrência tanto do exercício institucionalizado das práticas em si quanto pelo espírito de aprovação coletiva associado a elas — e de reforço negativo, que servem para atiçar as neuroses e aumentar o onipresente sentimento de culpa. Hinos são sempre melódicos e discretos, sermões são elegantes e proferidos com maestria, a decoração das “igrejas” (geralmente salões de propriedades aristocráticas), irretocável. A beleza é rapidamente quebrada por invectivas aos berros, crises histéricas de choro e regurgitações em massa.
Jejuns de Purificação: são o rito mais comum. Os praticantes reforçam com hinos e sermões a importância do não alimentar-se e estipulam o prazo pelo qual deve-se jejuar. Os devotos, então, dividem-se em duplas, cujo objetivo é a vigilância e o incentivo mútuos. Ritos seguintes realizados antes do fim do prazo de um dado jejum consistem de reuniões encorajadoras — ou nem tanto, como se pode perceber pelo rito da Confissão do Espelho.
Orgias Alimentares: outro ritual comum, realizado individual ou coletivamente. Esta prática é utilizada para aplacar momentaneamente as exigências do corpo e, naturalmente, para elevar a culpa a graus atrozes. Os presentes reúnem-se em torno de um farto banquete, do qual empanturram-se prodigiosamente. A segunda parte é bem menos agradável: ajoelhados em penitência ante o Sagrado Vomitório (um genuflexório com um recipiente integrado), provocam em suas gargantas, com penas ou outros objetos litúrgicos, o violento refluxo dos alimentos ingeridos. Tal ritual reforça nas mentes dos adeptos o quão vil é o ato da comilança, e reforça a disciplina, uma vez que a purgação costuma ser dolorosa e nada aprazível.
Confissão do Espelho: em frente a um grande espelho, o devoto, testemunhado por todos os colegas de culto, deve despir-se e examinar a imagem que ali vê. A apreciação (geralmente auto-depreciativa) é feita em voz alta, em uma narração que pode — e freqüentemente é — interrompida pelos demais cultistas, invariavelmente com críticas pouco construtivas que aguçam o sentimento de culpa. Findada a “análise”, o membro mais graduado, que faz as vezes de mestre de cerimônias, estipula a penitência com base na avaliação comunal, que pode consistir de uma sessão individual no Vomitório — mesmo que o devoto em “falta” não se alimente a dias — até, em casos extremos, confinamento do “infrator” para fins de jejum obrigatório.
Em jogo
Primeiro: não sejamos pedestres. O reflexo automático é querer usar tais ordens como vilões — resista ao instinto cansado de sempre ir pelo óbvio. Nem utópico, nem distópico — “estranhotópico” é mais interessante. Tais cultos têm suas facetas negativas, mas têm também as benéficas: combine ambas e dê oportunidades para que os personagens façam escolhas difíceis. Seus jogadores são, assumo, pessoas inteligentes — estimule isto. (Até porque a natureza de tais cultos segue uma abordagem “hidra” — corte a cabeça e outra crescerá no lugar. Contra antagonistas assim, um conflito direto não colhe frutos a longo prazo. Abordagens mais criativas se fazem necessárias.)
Mas vilania, acredite, é o menos promissor dos usos. O leitor Ulfasso já notou isso logo de saída:
Eu acho interessante pensar nas mudanças que um clérigo de Nimb carismático pode causar em uma sociedade. Se eles são capazes de recrutar um indivíduo medianamente perturbado, porque não uma vila inteira? Com a constante ameaça da Tormenta, a Aliança Negra e os minotauros, devem existir milhares de vilas menores que vivem em um estado de estresse contínuo, e a chegada de um clérigo de Nimb que saiba lidar com isso (quem sabe com Transtorno Obsessivo-Compulsivo, repleto de rituais) [pode auxiliar] na diminuição da tensão/ansiedade.
O atual clima de Arton nunca foi tão propício para os clérigos da insanidade: a invasão táurica e o avanço da Tormenta deixaram um rastro de caos, desespero e insegurança no território do Reinado — um solo fértil, recém arado, pronto para receber as sementes dos cultos da loucura. Em alguns casos, a disseminação da insanidade generalizada pode ser benéfica. O que é menos pior em um povoado próximo a uma Área de Tormenta: que seus moradores se convertam à religião de Aharadak ou a um culto nimbiano? (E mesmo sem a ameaça de “concorrência externa,” talvez algumas pessoas de fato queiram ativamente um divórcio da realidade que causa sofrimento.)
Mais: o clima de “fertilidade divina” resultante da queda de Glórienn (leia em O Terceiro Deus) pode não só ter arrebanhado adeptos para tais cultos, mas também feito de alguns desses líderes messiânicos divindades menores.
Cultos fóbicos cuja aversão é direcionada a minotauros podem ser mais comuns do que se imagina em cidades invadidas e agora assimiladas pelo Império tapistano. Sua irmã ou esposa foi levada à força para servir de brinquedo zoofílico para os bovídeos — não deve ser um sentimento legal, para dizer o mínimo. Mas aquele cara estranho, de olhos vidrados, mas de fala envolvente e convicção contagiante, diz que sabe exatamente o que fazer a seguir…
E se é formulada alguma teoria astuta que convence o Corpus Dei de que, com a troca de liderança no Panteão, Tauron (e seus filhos minotauros, por conseqüência) também “herdou” as “prisões dos fragmentos de Nimb” (antes associadas à ordem de Khalmyr, ordem esta que também está ligada a Tauron): caso a artimanha dê resultado, os matadores esquizofrênicos passarão a cobiçar os órgãos dos chifrudos. De predadores da população, transmutam-se em valiosos aliados da resistência humana. (E se, de repente, é na matéria vermelha que jazem os fragmentos de Nimb?)
O dogma da loucura é avassalador, mas pode também ser maleável — bem adequado aos novos tempos conturbados em que uma nova ordem ainda não se fixou.
Outro terreno muito fértil, também apontado pelo Ulfasso, é o reino de Fortuna. Na prática, é como se toda a população sofresse de transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, com todos os seus rituais e crendices arbitrárias. Diferentes cultos de Nimb florescem sob os sabores mais variados de obsessão-compulsão — e o que será que acontece se cultos de Nimb baseados em outros distúrbios tentam se inserir neste terreno já bastante propenso a aderir a práticas e pensamentos pouco racionais? Cultos baseados em obsessão-compulsão podem, aliás, representar bem os clérigos de Nimb “padrão” já previstos no cenário.
As múltiplas formas que tais cultos apresentam são também uma ótima maneira de reforçar que conhecimento do jogador é diferente de conhecimento do personagem. O grupo de aventureiros encontra pelo caminho um grupo de guerreiros cansados e esgotados, um resto triste das escaramuças das guerras táuricas. Ao interagir com esses errantes traumatizados, os personagens descobrem que o novo lema destes veteranos é “chega de guerra, queremos paz.” Devotos recém-convertidos de Marah, certo? Talvez não — podem ser Acólitos da Aversão que não só querem a paz como também odeiam a guerra. Eles convidam os cansados viajantes para repousar e desfrutar de comes e bebes — e quando o grupo acorda, dão-se conta de que suas mochilas estão mais leves: suas armas não estão mais lá (e os devotos, é claro, também já se foram).
E por que se limitar apenas a uma ou outra abordagem? Inicialmente, você pode usar o Corpus Dei como gancho para uma espécie de CSI Valkaria — mas daí, no meio da investigação, o perfil dos crimes muda totalmente e sem aviso, visto que as vítimas passam a ser exclusivamente minotauros. Como isso afeta as teorias formuladas na primeira parte da investigação? E o que pensarão os heróis quando notarem que o povo se opõe ativamente à nova fase da investigação (não cooperam com os investigadores e até passam pistas falsas)? Justiça diz que os criminosos devem ser presos — mas uma das funções da justiça é o bem-estar do povo, que pode estar achando maravilhosos os ataques contra os invasores imperialistas. Que posição tomarão os personagens? (E o mais legal: seja qual for a posição escolhida, é algo que eles não poderão resolver se valendo apenas de níveis épicos e armas com bônus mágico!)
Personagens jogadores: mecânica
Os clérigos aqui descritos são facílimos de se adaptar para sistemas como o FATE ou o PDQ — é tudo questão de compor Aspectos e Qualidades adequados. As facetas “negativas” de um Aspecto — tag e compel — são usadas para descrever os efeitos adversos da insanidade em si; no PDQ, o distúrbio seria a Fraqueza do personagem. Já em sistemas tradicionais do tipo “monte você mesmo,” não há mistério algum — no GURPS, por exemplo, basta adquirir Desvantagens mentais correspondentes.
Já o d20 System/OGL é mais ardiloso. O conceito de clérigo nesse sistema — e, por conseqüência, a mecânica associada — resulta em algo muito semelhante a um cavaleiro cristão, que faz um péssimo trabalho em descrever os conceitos aqui expostos. Como proceder? Na época em que originalmente escrevi este material — final de 2008 –, cheguei a compor regras variantes para tal, mas de maneira alguma vamos usá-las. Este que voc escreve sofria de um pendor insalubre por mecânicas barrocas. Hoje, sou adepto, em termos de regras, de uma abordagem mais econômica, logo, é esta a via que seguiremos — reaproveitemos mecânicas já existentes.
O esconjuro de mortos-vivos é inadequado para a maioria dos clérigos aqui descritos, pois não casa com o conceito — pode ser interessante para um culto baseado em necrofilia, porém. Podemos fazer de duas maneiras. Ou postula-se que estes clérigos afastem/controlem um tipo específico de alvo conceitualmente relacionado — aberrações, alvos da fobia/filia, NPCs que possuam Pontos de Insanidade, criaturas que estejam a sofrer de alguma condição dita “mental” como Confuso, Abalado, etc. Ou se concede gratuitamente o talento Potência Divina (Galrasia, pág. 35), que permite converter os usos de esconjuro em metamagia. (Ou chute o balde de uma vez e, no lugar da habilidade, deixe que o personagem selecione um talento Metamágico ou [Panteão]).
Algumas vezes as perícias da classe clérigo não são suficientes (isto é verdadeiro tanto aqui quanto para os demais clérigos de Tormenta em geral). Uma saída é compor um Domínio específico para o culto em questão, tomando como base o Domínio da Enganação — escolha 3 perícias adequadas, que, com a aquisição do Domínio, tornam-se perícias de classe (e aproveite para fazer uma seleção sob medida de magias).
A conversão espontânea de magias de cura também me parece um pouco incongruente — nem todo clérigo, conceitualmente, é um médico de batalha — e os apresentados aqui costumam ser menos ainda. Em vez de curar ferimentos, troque por confusão menor e demais magias do Domínio da Loucura.
Você pode querer também utilizar as regras de insanidade. Além do SRD, você as encontra no suplemento Área de Tormenta, pág. 45. Falando nele, eu recomendo o uso de Loucura Familiar (pág. 49), e não Loucura Alienígena. Loucura é loucura, e dividi-la em “do bem” e “do mal” me parece meio bobo. Usando a Loucura Familiar, tais cultos ganham aquela utilidade pública inesperada visto que estarão, de certo modo, “vacinando” a população artoniana contra os horrores da tempestade lefeu.
Você não consegue imaginar a clériga anoréxica da ilustração lá em cima com BBA médio e armadura pesada, certo? Nem eu. Querendo um clérigo menos “porradeiro,” use o priest. Para aqueles que não são versados no idioma de Wilde: procedam assim para ter um Sacerdote —
Bônus Base de Ataque, Dado de Vida, Salvamentos, Uso de armas e armaduras: exatamente como o Mago;
Perícias: 4 pontos por nível; use a lista de perícias do Clérigo mais: Avaliação, Decifrar Escrita, Conhecimento (todos), Obter Informação, Atuação, Sentir Motivação, Falar Idioma;
Magias: para as magias por dia de nível 0, como Feiticeiro; para as de nível 1-9, use a tabela do Mago, e adicione duas magias de Domínio adicionais por nível. A lista de magias é a mesma do Clérigo;
Habilidades de classe: 1o. nível – Afastar Mortos-Vivos, Afastar Extraplanares, Aura, Perspicácia Sacerdotal (funciona exatamente como como Conhecimento de Bardo, mas usa Sabedoria se aplica a assuntos místicos/religiosos); 5o. e 15o. níveis – Domínio adicional; 10o. e 20o. níveis – são habilidades referentes a afastar/controlar mortos-vivos, das quais, neste artigo, queremos tirar a ênfase — em vez disso, dê ao sacerdote um novo talento [Panteão] nestes níveis.
E, por último mas de modo algum menos importante: use e abuse do talento Devoto (O Panteão, pág. 38). Os bulímicos proselitistas da Cabala da Idealização talvez fiquem melhores como bardos (ou até monges — perfeição corporal, ora pois!) Devotos de Nimb, por exemplo, do que como clérigos. Vigias do Corpus Dei podem ser Ladinos Devotos, que só adquirem níveis de clérigo quando são promovidos a Coletores. Nem todo religioso precisa ser da classe clérigo, no fim das contas. Em se tratando do deus do Caos, combinação nenhuma é exótica demais.
Para finalizar
Mesmo que você não goste de/seja familiar com Tormenta ou Nimb, ainda espero que a leitura deste artigo tenha sido útil por um motivo — esta é a aplicação prática daquilo que escrevi no artigo que defendia menos deuses e mais religião.
Além de ser uma forma de se distanciar um pouco daquele ranço de “clérigo é sempre um curandeiro cristianizado,” o simples ato de compor detalhes para a religião de um cenário nos dá diversas idéias de como tal clero influencia e é influenciado pelo resto da sociedade no mundo de jogo. Como escreveu o Leonel Domingos, detalhamento narrativo: mais é melhor. Não existe elemento de cenário que seja “inútil” — um mestre sagaz tranforma qualquer elemento de cenário em gancho de estória.
Que Nimb role bons dados para todos.
Como disse no fórum, excelente artigo, Shido! Espero ansioso uma análise sua em outros pontos obscuros de outras religiões de Arton! Muito bom mesmo, e interessante.
Impossível deixar de imaginar os cultistas como um grupo de seguidores de Cthulhu, com personagens investigadores particulares, jornalistas ou professores universitários que vão conhecendo cada vez mais daquilo que preferiam não saber.
Estou com medo de descobrirem que tenho um pedaço de Nimb em mim……
nunca vi ninguem falar assim sobre religião, deuses e ceitas….
Deveria ter uma suplemento oficial assim para Tormenta. Abriria muitas novas oportunidades de jogos para o cenario, que atualmente no meu ver já tem uma grande variedade de temas que ja podem ser abordados.
Bélissimo artigo Shido. Conseguiu de novo mostrar um novo lado da moeda e fazendo-nos ver o que é "oficial" de um outro ponto de vista bem interessante, e util.
Abraço!
Muito bom os dois textos!
Realmente abre um leque de possibilidades muito variados para servos de Nimb, que na minha opinião, nunca foram muito bem aproveitados, como o próprio Deus Nimb, no cenário Tormenta.
Gostaria muito de ver esse tipo de analise com outros servos dos Deuses.
Obrigado, Archelas.
Análises de outros servos dos deuses definitivamente *não* vão acontecer. Não vale o esforço. É mais proveitoso eu direcionar esse tipo de energia para escrever sobre o Romância.
No geral, foi um exercício interessante. (Mas que não vale repetir.)
Dá pra fazer umas mecânicas alternativas legais misturando perícias e atributos. Me cobra isso depois.
Incríveis esses dois artigos. Esse tipo de texto aumenta muito mais a individualidade (e a maturidade) dos personagens de qualquer cenário que um suplemento de regras inteiro!!!
Espero ancioso pelos próximos, principalmente pelos cultos de Khalmyr (ele mais que precisa disso).
E apesar do conselho acima é inevitável não usá-los como antagonistas!
Pow Shido, fico manerão!! Espero que tenhamos mais artigos como esses, em especial para os cultos de Valkaria, Khalmyr e Marah.
Se for pra se dedicar ao Romancia, ta perdoado 🙂
Provavelmente foi o melhor texto que já li sobre devotos de Nimb. Nunca cheguei a pensar como cada religião dos Deuses poderia afetar o mundo de Arton. O bom deste artigo é que tira um pouco a idéia de que os clérigos de Nimb são apenas aqueles devotos engraçados, doidinhos, estilo Jack Sparrow, e mostra que entre mentes distorcidas (que, apesar de tudo, seguem alguma "lógica"), podem existir verdadeiros Jasons.
Outro ponto do artigo que achei interessante é que mostrou várias facetas de Nimb, várias formas como ele pode ser encarado por seus devotos. Um Deus em Arton tem um poder imenso, assim como sua influência: Ragnar, por exemplo, é o Deus Goblinóide da Morte, para os goblinóides, e Leenn, o Deus Humano da Morte, para alguns povos do Reinado, assim como deve haver outras facetas do Deus pelo resto de Arton, onde a morte é encarada de maneiras diferentes, necessitando de práticas distintas.
Podem ser dados vários outros exemplos, como Hyninn, onde parte de seus devotos pode acreditar em uma prática de ladinagem que favorece a justiça (como [talvez] foi mostrado no livro O Terceiro Deus), e Keenn, onde pode existir um grupo de devotos que pratica a guerra não com armas e músculos, mas com lábia e mente afiada.
Muito bom o artigo e excelentes observações.