Detalhamento narrativo: mais é melhor

“Discordo totalmente” é muito forte para se escrever sobre o artigo do CF… então vou escrever “discordo brandamente”.

Estórias podem ter buracos no roteiro que passarão despercebidos ou não ao público. Pode também ser que estes buracos não sejam mesmo buracos, que haja uma explicação para um fato estranho, apenas o autor não viu necessidade em passar a explicação. Mas não estou entrando no mérito dos buracos de roteiro, embora ache que um bom autor deva tentar evitá-los, sempre que os identificar.

Quero falar é sobre esta parte do detalhamento na criação.

Há, deveras, quem se demore a criar diversos elementos, a trabalhar exaustivamente no cenário, etc, etc… E que depois reclama quando o jogador não dá valor ao esforço.

São chorões, se me permitem. Podemos até pensar nos motivos para que aconteça o caso…

A estória pode ser insossa mesmo, e então não há cenário rico que dê jeito.

Ou o mestre/narrador/sei lá gastou horas enchendo os ovos dos jogadores com todos os detalhes que ele criou, citando e explicando. Por exemplo: ah, vocês estão entrando em Matapreás. Os políticos neste município são muito incisivos, desde que, em 1935, a família Galheiras botou posse a seu filho, Francisco, como prefeito. Houveram 15 mandatos da família até agora, e o principal concorrente deles, neste ano de eleições, é o candidato popular Tucão da Oficina, homem tido como grosseiro e freqüentador da zona baixa da cidade… E tudo que os jogadores queriam era entrar, beber uma cerveja, passar um telegrama e sair da cidade!

Ou ele fez tudo direitinho, é uma boa estória e o cenário é aplicado com a moderação necessária, porém esperava ser carregado em triunfo pelos jogadores, em honra ao magnífico trabalho.

Bem… a primeira alternativa é natimorta. A segunda é entediante e a terceira está entre a carência afetiva e a impaciência.

Porém, e faço questão de afirmar, trabalhar bem o cenário, criando detalhes e minúcias, escrevendo e ordenando para tornar mais verossímil (não significa que perca a fantasia, apenas faz com que os elementos daquela  fantasia sejam coerentes entre si), faz diferença no impacto da estória, e muita. Se você entende bem o cenário que está narrando, sua narrativa será melhor. E os pequenos detalhes que você narra, que insere no jogo de maneira bem sutil, aos poucos serão notados pelos jogadores, quando eles começarem a reagir dentro do cenário com mais naturalidade a algo que só é natural naquele lugar.

Manter um certo controle, anotado, de alguns detalhes, também ajuda ao mestre para que ele cometa menos enganos durante sua narrativa, ou de que linha ele pode seguir no caso de ter que improvisar por conta de uma ação dos jogadores que lhe pegue totalmente de surpresa.

Vou usar como exemplo essa criação, de Matapreás: Digamos que o mestre tencione agregar Matapreás em seu jogo, fazer com que os jogadores tenham algumas aventuras lá dentro no futuro, ou até mesmo fazê-los passar dois dias ou três empacados na cidadezinha, devido a uma pane em seu veículo. Ele foi cuidadoso com o cenário, rabiscou um mapa para si mesmo (não precisa ser um mapa muito complexo) que lhe permite lembrar como é a cidade e o que acontece nos diferentes pontos, além de facilitar a orientação durante a narrativa e detalhou a política da cidade, daquele modo como citei no exemplo. Também incluiu alguns detalhes de alguns personagens aqui e ali, para o caso de uma necessidade.

Ok. Hora do jogo. Os personagens entram na cidade, o narrador dá uma idéia simples, uma descrição básica de como a cidade se apresenta aos jogadores. Uma descrição do que eles vêem e sentem, e não um histórico… eles entraram na cidade, não consultaram a biblioteca municipal. Se eles vêem um bar e decidem parar para beber, ele narra, normalmente. Talvez hajam algumas pessoas no bar, elas não estão assim tão interessadas nos estranhos, e os estranhos certamente não estão muito interessados nelas, então novamente uma descrição ligeira e eles conseguem a própria bebida. A narrativa deve fluir tranqüila, deixando os jogadores conversarem entre si ou entre quem mais queiram. Quem sabe um dos comentários de um jogador faça com que o outro fique pensativo um pouco, um pouco calado… nesse espaço de tempo o narrador, para dar idéia do hiato na conversa, pode dizer que ouvem o som de papel rasgando, olham displicentemente para a origem do barulho, e vêem um homem bruto, vestindo um macacão emporcalhado, colando um cartaz sobre outro, que ele rasgara: Vote Tucão da Oficina.

E só. Acabou o hiato, a conversa retoma normalmente. Quem sabe, naquela aventura eles podem ser atendidos justamente pelo Tucão, que lhes conserta o carro. Eles continuam as aventuras, vão para cá, vão para lá. Se um dia passarem novamente pela cidade, pode estar havendo uma passeata de protesto, por conta do assassinato do prefeito recém-empossado. Se eles ficarem, o prefeito podia ser justamente o tal Tucão.

Aos poucos, bem aos poucos, os detalhes inseridos podem começar a se encaixar na mente dos jogadores. Eles vão começar a perceber que há uma certa coerência. “Pombas! Esse nome não me é estranho… Tucão…”.

Jogadores com boa memória podem tentar embarcar numa nova aventura, podem tentar caçar pistas usando detalhes que lhes foram jogados sem que eles percebessem. Ou, se não tiverem tanta memória, irão simplesmente seguir seu caminho. Exatamente como as coisas acontecem, na vida real.

Concluindo e resumindo: Uma boa estória é uma boa estória, independente dos detalhes apresentados. Mas um cuidado com o cenário, com os detalhes e sua verossimilhança, ajuda o autor a não se perder na evolução da narrativa e ajuda o leitor/espectador/jogador a se familiarizar com a estória. Ao contrário, o descaso com o cenário e detalhes irá empobrecer a narrativa e poderá prejudicar a reação do público.

Mas saber introduzir os detalhes com suavidade e elegância, sabendo qual detalhe mostrar, quais detalhes guardar para si, é uma habilidade que deve ser treinada se o objetivo é agradar com a estória. O ritmo que será impresso na narrativa irá depender da decisão do narrador e no caso de um jogo de RPG, se ele for bem habilidoso, refletirá o ritmo que agrade aos jogadores.

Uma boa idéia, que qualquer dia eu posso me aventurar a postar aqui, é fazer um post com um grande exemplo, pronto, de uma situação detalhada. Só esperem sobrar um tempinho.

E tomem cuidado com a preguiça disfarçada de despojamento.

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4 Resultados

  1. valberto disse:

    Algumas vezes uma boa frase ou palavra descreve tudo. Quando comecei a jogar o mundo das trevas, o antigo, o livro nos encorajava a criar uma série de palavras-chaves que ajudavam a descrever o cenário.
    Eis algumas palavras que eu usei para descrever a cidade de Mor-kratur (Star Wars):
    Crime, degradação, destruição, morte, descedência, fábricas abandonadas, aparências, jogo político, sexo, underground, lojas abandonadas, mendigos, poluição,
    luta pelo poder, gangues, pixações.
    Deu a idéia certa para meus jogadores do que esperar.

  2. Leonel Domingos disse:

    Ah, sim… existem métodos para facilitar o detalhamento, para o mestre.
    Por exemplo, eu posso pegar uma cidadezinha qualquer, definir alguns personagens secundários que estão em algum ponto no qual o jogador pode ou não passar. Estes personagens não precisam de uma ficha (se os jogadores vierem a se envolver muito com eles, pode até ser necessária a criação de uma, no futuro. Mas no momento, basta algo que permita ao mestre lembrar-se deles). Então eu uso descrever nome, ocupação, aparência marcante, e coloco um nome de um personagem famoso que tenha características similares, assim é simples me lembrar como interpretá-los e pensar em como seria a reação deles em diversos momentos.
    EX:
    Travessa do Peixe-agulhão — Escritório da Corregedoria
    Atendendo no balcão:
    Dagoberto Padilha – escrivão – manca ligeiramente, magro, cabelos grisalhos – O contador de “Caça-Fantasmas I”.
    Pronto.

  3. phil souza disse:

    Aqui é que está! Perfeito! Nada de sair introduzindo no jogador! Tem que levar pra sair, pagar uma bebida e pedir benção pros pais!
    A palavra chave aqui é fazer os jogadores interagirem com o cenário, mas da forma descrita aqui. Gradual, nada de um relato histórico no meio do nada, nada disso… e aos poucos o envolvimento se torna mais forte.

  4. Arquimago disse:

    É aquela questão você vai lebrar mais do que for atraz do que o lhe for imposto.
    E o mestre também não ganha fama de chato por entupir os jogadores de informãções que talvez eels não queriam.
    A prase final também é muito boa!

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