Ressurreição, regeneração e curas em geral: uma abordagem materialista
E graças à transcrição do Leonel do artigo sobre ressurreição (não deixe de ler a segunda parte), soubemos que o buraco do tema é mais embaixo, se perdoam a linguagem. Não pude deixar de ver, contudo, que vários dos comentários referentes a regras em diferentes edições tinham algo em comum: a tal da alma. Ler sobre alma sempre me remete a fragmentos teológicos, ótimos para explicar patavinas sobre coisa nenhuma. “E se a alma não quer voltar?”, “Mas e se ela quer, mas está com vergonha? “, “E se a alma estiver jogando gamão no Plano do Peixe Grelhado, ela interrompe a partida ou a retoma quando voltar?”, e alma aqui e alma acolá. E, em todo esse debate de consistência vaporosa, acabam esquecendo de um ponto central na ressureição: o corpo.
O personagem morre. Quer dizer que então sua alma deixa o corpo? Essa seria, ao meu ver, a menor das preocupações. Para começar, os tecidos deixam de receber oxigênio — e isso inclui o cérebro. É discutível se alguém pode ou não viver sem alma — não temos, afinal, tanta gente “desalmada” por aí que vive muito bem, obrigado? Por outro lado, não há dúvidas da impossibilidade de fazê-lo sem um cérebro. Células cerebrais são sensíveis a baixos níveis de oxigênio — se privadas do elemento, elas começam a morrer em cinco minutos. Não é por acaso que em todos os seriados médicos na televisão se enfatiza a rapidez de reviver rapidamente alguém que sofre de parada cardíaca — se demorar demais, é dano cerebral na certa. E danos cerebrais, conforme a severidade, podem fazer a diferença entre uma vida funcional ou não.
Você já ouviu falar do rigor mortis, o enrijecimento do cadáver. O processo começa a se manifestar 3 horas após a morte, avançando, em estágios, até 36 horas após o óbito — depois disso, o processo de decomposição começa a agir. Se você quiser saber mais sobre o processo químico envolvido, dê uma lida nesse artigo da Wikipedia. Voltar à vida, pelo visto, não é tão simples — afinal, qual a vantagem de voltar à vida em um corpo de cérebro e músculos severamente danificados? Se eu fosse uma alma, teria sérias objeções em voltar a um corpo em tal estado…
A ressurreição, ao meu ver, não deve ser eliminada, afinal, às vezes é bom ter algo para remediar as cagadas do jogador. Mas que seja um recurso dramático, e não de banalização. A solução que eu recomendaria é abreviar o máximo possível o tempo entre a morte e a ressurreição. Postule que as magias de cura funcionam apenas sobre tecido vivo — nesse caso, os danos que o corpo sofre ao morrer (cérebro e músculos) ganhariam uma gravidade permanente e deverão, portanto, ser evitados a todo custo Ou age-se rapidamente para remediar o infortúnio ou não mais. Evade-se, dessa forma, os problemas de a pessoa ser considerada ou não legalmente morta depois que é trazida à vida — afinal, depois de passada a curta janela em que há a possibilidade de reanimação, o sujeito estará irremediavelmente morto — sem mais voltar quando a festa está no final pra rodar a baiana. A ressurreição, assim, torna-se uma espécie de “reanimação de emergência on steroids” — um pouco mais plausível, incerta, emocionante e sem os problemas comuns da ressurreição que ocorre dias depois do óbito.
Aqui vale um parênteses sobre a magia. Se estivermos falando de d20, a coisa é construída de forma a não se precisar preocupar com essas “coisas chatas” — se você tem o dedão do pé (ou às vezes nem isso!) do falecido e “a alma quer voltar”, está tudo resolvido; o corpo volta sempre novinho, não importa o que aconteceu com o original. Isso pode minimizar problemas, mas também banaliza o processo — a ameaça da morte empalidece, a urgência de tentar recuperar a vida, situação em que cada segundo é vital, se esvai. “Ah, apenas corte-lhe uma mão (não sobrou espaço na carroça por causa desse monte de escamas de dragão) que nós arrumamos alguém para revivê-lo na próxima cidade!”
Isso, em geral, se aplica a todas as magias de cura/regeneração e afins. Assim como com a morte, quando a possibilidade de mutilações e desfiguramentos é negada por uma mísera magia, perde-se o uso desses elementos dramáticos na história. Se a sedutora barda elfa sabe que o talho no seu rosto, prometido pelo vilão em uma sessão de tortura em tom de ameaça, não será permanente, a tensão e o terror provenientes evaporam. Não há lembretes permanentes de rumos de ação pouco acertados — “lavou, tá novo”. Aí se precisa recorrer a maldições mirabolantes (ou aquela espada com redutor que você simplesmente não pode largar) para haver algum sentimento de conseqüência — e tudo isso quando se tem toda sorte de cicatrizes e mutilações à disposição, cuja explicação é menos dispensiosa e o elemento traumático de mais fácil assimilação.
Mesmo a cura mágica não precisa ser limpinha. Em vez de uma “conjuração” de “cura” (como se “cura” fosse um objeto conjurável de algum outro lugar, e não um processo), magias de cura simplesmente “anabolizam” os processos naturais do corpo. Uma magia de curar ferimentos pode fechá-los numa boa — ou nem tanto. Assim como um osso quebrado pode calcificar fora do lugar certo — o que requer que ele seja quebrado novamente –, o mesmo pode ocorrer com as magias de “remendo”. Se não se posicionar com precisão as partes de um corte profundo no braço, quem garante que todos os nervos e tendões se reunirão de forma 100% funcional? O “remendo super-rápido” na pele pode gerar acúmulos grotescos de scar tissue — “Se você me tivesse deixado costurar com calma para depois realizar a cura, o aspeto teria ficado bem mais aprazível”. Uma analogia mais simples: magia de cura é como cola — você tem de ter todas as partes, e deve posicioná-las direito — e mesmo assim seu vaso vai ficar marcado.
De novo a ressurreição: se o sujeito é efetivamente revivido, tente evitar a “videogamice” de revive with full HP. Deixe que volte à vida, mas próximo da morte — que passe um bom tempo acamado, costurado e em dor. Se a abordagem de “magias de cura como processo natural assistido e acelerado” for usada, o nosso amigo terá possivelmente uma cicatriz enorme e horrenda no peito como lembrete daquela garra de dragão que rasgou pele, rompeu músculos, quebrou ossos, arrebentou artérias e quase partiu o coração em dois (bem mais dramático do que “perdeu 30 PVs”) — tudo “colado” às pressas (sem falar naquela dor no peito que às vezes aparece em situações de muito esforço — será que, na correria, ele foi remendado direito?). Magias de cura podem ser boas mas, mesmo lançadas por clérigos, não fazem milagre.
Corpos são máquinas maravilhosas, e maravilhosamente complexas — honremos isso com proporcional dificuldade para repará-las! Se tal argumento é incapaz de sensibilizá-lo, veja por outro lado: suas experiências de (quase) morte serão histórias realmente emocionantes para se contar na taverna — e você poderá mostras as cicatrizes se algum espertinho duvidar!
Sempre quando falam desse tema lembro da primeira campnaha de D&D, em que os personagens tinham a bizarra capacidade de rescussitar. mas ao rescussitar da terceira vez tinham que lutar contra um sósia, e se perde morte eterna! Muito bom! Morri umas 7 vezes, perdi 7 pontos de constituição!
Engraçado esse assunto vir a tona agora. Eu estava conversando ontem mesmo com o Dellhintis e mais alguns amigos sobre o lance das almas em Gandara.
No cenário elas existem, mas nunca pensei muito há respeito. Os mortos se encontram em um dilema na mística do mundo (não há mais céu, não há mais inferno, então vou ficar por aqui mesmo) e é >>muito<< comum os mortos voltarem, seja na forme de zumbis animando corpos, seja assombrando casas ou outros lugares.
Estava pensando sobre suas origens e motivos e esse texto me trouxe várias boas idéias, especialmente pra explicar porque a ressureição não funciona mais lá.
Gosto muito da idéia das magias de cura, quando existem, apenas acelerarem o processo normal. Para dizer a verdade, é como eu aplico, nas poucas vezes que mestro. Cicatrizes, não tem jeito. Se a pancada foi feia, vai deixar marca.
Ressurreição, se depender de mim, é mais raro que risco em coturno de major. O último carpinteiro que ressussitou já deu um bafafá…
Porém… se o lance é usar a ressurreição de maneira mais “amigável”, fora as implicações na sociedade — que foram bem discutidas —, podemos pensar em muitas variações sobre como ela funciona. Essa idéia de “reanimação de emergência” é muito interessante. Jogar algumas possibilidades de seqüelas físicas ou mentais, então, muito bom.
Vamos pensar noutros modos, também. Digamos que a ressurreição não conserte o corpo. Ou ele é recuperado de alguma outra forma primeiro, ou o finado desperta apenas a tempo de babar um pouco de sangue, falar “Ai cacete… de novo não…” e esticar as canelas.
Ou, a ressurreição não recupera, mas o ressuscitado fica naquele corpo mesmo assim. Se ele morreu porque levou uma machadada na testa, vai ter que usar peruca, porque o talho fica. Quiçá emana magia, também, pelo resto de sua vida.
Ou ainda… se o shido disse para esquecer um pouco a alma e se concentrar no corpo, vamos agora esquecer o corpo e se concentrar na alma. Na ressurreição ela não volta para o próprio corpo (afinal, ela não vai querer ocupá-lo mesmo… está todo esburacado). Ao invés disso, ocupa o lugar do corpo mais próximo que esteja perdendo a alma naquele instante. Algo assim: num momento você é um orgulhoso cavaleiro que teve maus momentos com uma lançada “de perder o fôlego”, no outro você acorda e está deitado numa sarjeta, com um corte na testa (que poderia tê-lo matado, se fosse “um tantinho só” mais fundo). Sua pele é esverdeada, você se veste com trapos e chinelos, todos que passam por você insistem em chamá-lo de “Formigão” e pelo seu hálito você acha que comeu estrume nos últimos seis meses.
Que tal uma ressurreição à Frankenstein? O ressuscitado acorda amarrado num laboratório, com ganchos, catéteres, agulhões e outras coisas saindo por diversas partes do corpo, talvez até mesmo com alguns novos implantes, que substituem partes danificadas durante sua morte.
Quem sabe a ressurreição indireta? O espírito é aprisionado em um objeto qualquer, à espera de um corpo (funcionando) que o abrigue? Tem um filme com o Steve Martin que é bem parecido…
Imaginando uma não existência de alma, o que caracterizaria a ressurreição? Preservação da memória, talvez? Ok, vamos lidar com isso:
Que tal um sensitivo qualquer que habilmente “vê” as memórias de toda a vida do indivíduo em seu último suspiro de vida, e cai desmaiado, mantendo as memórias em algum cantinho esquecido dele mesmo, até que preparem um novo corpo (ou consigam um voluntário) que receba as memórias? Se demorar muito, as memórias do finado podem tentar tomar o controle do sensitivo.
E, se for um caso de transferência de memória, pode-se ter vários “ressuscitados” que dividem a mesma memória. Em comportamento, são o mesmo indivíduo, embora não exatamente quanto à forma.
Que tal uma ressurreição bomba-relógio? O indivíduo retorna EXATAMENTE como estava antes de morrer. Ferimento aberto e tudo o mais. Mas os ferimentos não dóem (sangram um pouco, como elemento dificultador), novos ferimentos também não irão doer. Ele não pode se curar, e, faça o que fizer, sua vida está se esvaindo. Ele tem um período X de tempo de vida, extendido, no qual ele pode resolver alguma coisa, ajudar alguém, continuar uma guerra, procurar uma salvação, sei lá…
Enfim… estou só jogando idéias para o alto. Acho que depende muito da estória, depende muito do caso. De qualquer forma, eu acho interessante qualquer uma, desde que usada como se fosse um acontecimento único, um fato EXTRAORDINÁRIO.
gosto também da ressureição ser proibida.
Imagine que só xamanismo, necromancia e infernalismo possam rescucitar alguém e os deuses bondosos do panteão prefiram que ele continue mortinho da silva.
Leonel, seu comentário, além de ótimo complemento pro texto, ainda é do tipo que atiça a cabeça da gente. Que bem fizeram em te trazer pra cá!
Pelo menos em relação às magias de cura, você parece ter o meu posicionamento em relação à magia em geral — ela não trabalha à parte da Física, mas, sim, faz a Física trabalhar para você, e sem desrespeitar as leis dela. Mas isso é assunto para outra ocasião.
Adorei suas alternativas que englobam a existência da alma — mesmo eu sendo materialista a tal ponto de não querer espiritualismos sequer na minha fantasia. Devo dizer que a alternativa de ferimentos mortais permanentes MESMO — uma marca de machadada nos cornos que fique insistindo em verter sangue, mesmo que tenuemente, tem um apelo estético ímpar. Se um personagem meu morrer em uma campanha “com alma” e o grupo optar por revivê-lo, com certeza hei de pedir por um presente assim!
Agora são suas alternativas mais materialistas que me deixaram com água na boca. A transferência de memória é uma idéia com a qual andei mexendo ultimamente (para uma “raça” de mortos-vivos do cenário que estou escrevendo) — dá para fazer, sim, fantasia interessante sob imperativos mais materialistas, afinal. A hipótese “frankensteiniana” é uma gema — tá aí um evento de ressurreição inesquecível.
Cochise, a proibição é certamente atraente, principalmente quando as alternativas menos ortodoxas que você citou oferecem serviço semelhante. Se a necromancia, por exemplo, é um dos únicos caminhos viáveis para se passar a perna na morte, é possível que, eventualmente, nobres e outras personalidades importantes/respeitáveis passassem a aderir à prática (da mesma forma que os muito ricos e excêntricos aderem à criogenia). Em um mundo assim, os tabus em relação a mortos-vivos passariam por boas revisões — talvez até invadindo os valores estéticos como coisa positiva.
Matéria e comentarios interessantes!
E gostei da adendo sobre o D&D ia falar dele se já não estivesse na matéria.
E pretendo usar algumas das coisas aqui discutidas!
Isso é que eu chamo de texto instigante. Levanata algumas questões que vão além da simples metafísca Toryamiana (Dragon Ball).
Essa questão de cicatrizes e magias de cura sempre me passou pela cabeça. Na ressurreição, sempre considerei que é necessário curar o corpo antes de trazer o morto à vida, e o resultado pode ser bem… retalhado. Vide a animação Avatar. quando a Katara usa a água para curar, o ferimento torna-se uma cicatriz desagradável…
Muito legal o artigo, e os comentários. Mas em cenários de fantasia medieval, onde existe mortos-vivos, deuses, magia (divina e arcana), lichs,…, é dificil acreditar em que não exista algo após a morte.
O interessante é pensar , como foi discultido, sobre o porque e como rescussitar. Primeiro, arranjar um clérigo de no minimo 9 niveis que possa conjurar magias de ressureição já seria digno de uma grande missão.
Se dentro do grupo exista um que capaz de tal feito, ressucitar alguem que não seja digno para o deus poderia resultar na perda dos poderes do clérigo!