Afinal, heróis são feitos ou nascem?
Existem duas versões de um ditado que são completamente contraditórias. Em uma versão, diz-se que heróis não nascem, são feitos, e em outra versão, diz-se que heróis não são feitos, mas nascem. Na História (com H maiúsculo), isto se manifesta na discussão da teoria do grande homem (ou teoria do herói) de Thomas Carlyle, que acredita que pessoas importantes moldam a História, enquanto críticos dessa ideia como Herbert Spencer acreditam que a História molda as pessoas importantes (ou, no caso do autor russo Liev Tolstói, de Guerra e Paz, que o herói é apenas um escravo da História realizando o decreto da Providência).
Do nosso ponto de vista como contadores de histórias, no entanto, isto se manifesta em dois estilos diferentes de narrativa. Um destes estilos é em certa medida alinhado com Tolstói, onde a Providência, o que conhecemos como enredo ou trama, dá conta de fazer com que os eventos se alinhem para que um personagem que não é, num primeiro momento, especial esteja no lugar certo e na hora certa para realizar grandes feitos e mudar os rumos da narrativa que estamos contanto. Por exemplo, Harry Potter é um garoto normal, mas eventos se alinham de tal maneira que, quando sua história progride, ela acontece de acordo com o que havia sido pré-determinado pela Providência (spoiler: através de uma profecia neste caso). Neste estilo, portanto, são as necessidades do enredo que, até certa medida, guiam os personagens através da narrativa.
O segundo estilo de narrativa é aquele onde os personagens, seus desejos e objetivos, virtudes e falhas de caráter, capacidades físicas e mentais, etc, são a força que guia o enredo ou trama, determinando eventos e decisões, em vez de qualquer necessidade narrativa. Um exemplo deste tipo de narrativa são os livros d’A Canção de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, onde, até certa medida, os personagens e suas escolhas são a única razão pela qual as coisas acontecem no mundo, com muito pouco acontecendo na narrativa por necessidade do enredo.
Note que “até certa medida” está incluído em ambos os exemplos apresentados, e por um bom motivo: não existe narrativa que não possua ambos enredo e personagens, e qualquer narrativa que foque demais em determinado estilo narrativo sofre problemas sérios. Uma narrativa que foque demais no seu enredo acaba sofrendo de personagens anêmicos, sem agência, sem graça. Uma narrativa que foque demais em seus personagens acaba sofrendo de histórias confusas, caóticas e sem direção, sem pé nem cabeça. Uma boa narrativa é aquela que o autor é fiel ao seu estilo preferido, mas ao mesmo tempo mantém um nível aceitável de atenção ao outro lado.
O que tudo isto significa para nós do RPG? Uma das principais características do RPG é que, pela natureza do jogo como uma atividade social, o controle narrativo é, nos jogos mais populares, compartilhado entre um agente da Providência, o Mestre de Jogo, e os desejos, virtudes e falhas dos personagens, controlados pelos Jogadores. A qualidade da experiência de jogo é acometida pelas mesmas restrições que uma boa narrativa literária: se o Mestre de Jogo exercer poder demais sobre a narrativa para manter os personagens dos Jogadores dentro do enredo planejado, cria-se uma situação onde Jogadores sem agência não tem qualquer incentivo para manterem o interesse em seus personagens e assim torná-los interessantes para todos; se os Jogadores exercerem poder demais sobre a narrativa e o enredo planejado pelo Mestre de Jogo é deixado de lado em favor de intermináveis tangentes, cria-se uma experiência de jogo confusa, caótica e sem direção.
A solução, como sempre, está na moderação. O Mestre de Jogo deve utilizar de certa autoridade concedida a ele pelo contrato social do jogo para manter os Jogadores razoavelmente dentro do enredo proposto, mas sem abusar dessa autoridade. Por outro lado, os Jogadores devem utilizar-se de sua agência sobre a história com parcimônia, visando a boa experiência para todo o grupo. Se você está prestando atenção, já deve ter notado que as melhores experiências de jogo acontecem quando o seu grupo de jogo é composto de pessoas responsáveis, empáticas e maduras o suficiente para agirem pelo bem do grupo como um todo. Infelizmente, não há, nos jogos que utilizam dessa dinâmica Mestre de Jogo/Jogadores, muitas ferramentas que ajudem a mitigar a atuação negativa de pessoas irresponsáveis, indiferentes e imaturas no seu jogo. No entanto, nem todos os jogos utilizam essa dinâmica.
Popularizado na última década após o lançamento, em 2009, de Fiasco (Jason Morningstar, pela editora Bully Pulpit Games, lançado em português pela Retropunk, atualmente fora de catálogo no Brasil), uma dinâmica que acredito que seja útil em amenizar essa questão é o que chamo de Estrutura Narrativa (termo que utilizei em meu próprio jogo Cosa Nostra, de 2015, pelo Estúdio V, hoje disponível no Dungeonist). Nessa dinâmica, o papel do Mestre de Jogo é retirado e, em seu lugar, cria-se uma Estrutura Narrativa que tenta simular determinado tipo de história através de cenas, atos, etapas narrativas, etc. Em vez de depender da responsabilidade, empatia e maturidade de um Mestre de Jogo e Jogadores que nem sempre possuem tais qualidades, as regras do jogo dão conta de controlar a narrativa de uma maneira que o criador do jogo considera razoável.
Para atingir essa possibilidade, estes jogos costumam utilizar-se de Estruturas Narrativas já estabelecidas no imaginário popular através de diversas obras culturais. Fiasco tenta simular as Estruturas Narrativas vistas, em suas próprias palavras, “histórias cinematográficas de pequenos golpes que deram desastrosamente errados ─ particularmente filmes como Gosto de Sangue, A Sangue Frio, Queime Depois de Ler e Um Plano Simples” (MORNINGSTAR, 2011, pg 8); Cosa Nostra tenta simular as Estruturas Narrativas de histórias cinematográficas clássicas sobre a máfia de Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Martin Scorsese; Outro nacional que utiliza-se da dinâmica, Violentina (Eduardo Caetano, de 2011, pela Secular Games, edição física fora de catálogo, mas o PDF atualmente é gratuito), é, em suas próprias palavras:
Profundamente inspirado na estética e na narrativa dos filmes de Quentin Tarantino e Guy Ritchie, Violentina utiliza um sistema baseado em cartas e fichas de poker afim de distribuir de forma equilibrada o controle narrativo entre os jogadores, transformando aspectos e características específicas deste tipo de filme em mecânicas de jogo. (SECULAR GAMES, Violentina. Página do produto, grifo do autor. Disponível em <https://www.secular-games.com/produto/violentina-2/>. Acesso em: 11 de junho de 2020.).
A grande desvantagem desta dinâmica, é claro, é que ela depende da existência de um jogo para cada Estrutura Narrativa, construído por um designer de jogos minimamente competente. O que significa que suas opções são muito mais limitadas do que na dinâmica mais tradicional, onde um mesmo jogo pode, com certo esforço, ser utilizado para jogar com diversos gêneros. Você quer mais liberdade criativa da dinâmica tradicional, ou o terreno mais fértil de uma Estrutura Narrativa? É uma escolha, portanto, se você quer fazer seus heróis, ou vê-los nascerem.
Interessante essa tua análise, e as sugestões de sistemas para balancear as coisas. O que me faz tentar imaginar um sistema que por regras controlasse a narrativa de uma campanha longa, como isso seria? Como seria um sistema sem mestre dessa forma?
Eu imagino que teria-se que utilizar duas estruturas narrativas para nortear as regras, uma de curto prazo (para uma única sessão de jogo) e outra para longo prazo (para a campanha em si). De certa maneira a gente já faz um pouco isso com RPGs normais, onde uma aventura ou é inserida num contexto maior da campanha ou fica solta tipo “monstro da semana.” Seria só o caso de definir as estruturas narrativas e inventar as regras para manter os jogadores dentro dessa estrutura.
Pensando dessa forma dá até para considerar um sistema sem mestre. Todo mundo se junta, constrói um plot básico para a aventura/campanha e vai jogando guiado pelo sistema unicamente.
Os sistemas citados são justamente sistemas sem mestre, a ideia da dinâmica em questão é essa mesma, cria-se o sistema como guia e deixa-se os jogadores fizerem o que quiserem dentro da estrutura narrativa proposta.