Resenha: A Cidade & A Cidade

a-cidade-a-cidadeA Cidade & A Cidade é o segundo livro de China Miéville lançado em português, depois do Rei Rato publicado pela extinta editora Tarja. Para quem não lembra, trata-se de um autor britânico que já causou um certo frisson por aqui antes, em um punhado de resenhas minhas e textos do nosso colega Shido Vicious alguns anos atrás. Ele chega desta vez pela editora Boitempo, com o currículo de ter ganho, exatamente com este livro, o prestigiado prêmio Hugo de ficção científica.
O livro começa, como é típico em histórias policiais, com um assassinato, e a investigação do inspetor Tyador Borlú, do Esquadrão de Crimes Extremos da cidade de Bèsz, para solucioná-lo. É claro, no entanto, que o que parecia um caso simples logo se revela bem mais complexo, envolvendo conspirações corporativas e políticas, bem como as complicadas relações de Bèsz com a cidade, podemos dizer, “vizinha”, Ul Qoma. A forma como essa questão é apresentada, aliás, é bastante interessante, sendo sugerida sutilmente nos primeiros capítulos e exposta de fato apenas quando as ligações da vítima com ambas as metrópoles se tornam evidentes; e é então que entendemos do que realmente trata o livro: uma fábula sobre cidades divididas, com ecos d’As Cidades Invisíveis de Calvino, se inspirando em algumas situações históricas, mas exagerando e extrapolando-as na melhor tradição da (boa) literatura fantástica. A própria edição nacional é consciente do fato, aliás, como a leitura dos dados da tiragem na página final bem revela.
Após tantos livros, alguns problemas do Miéville como autor já começam a ficar um pouco evidentes para mim. Em especial, um que já aparecia em Iron Council, o último livro da trilogia de Bas-Lag, que é o pouco envolvimento pessoal de muitos personagens com a trama principal – o próprio protagonista, aqui, é pouco desenvolvido além da sua relação estritamente profissional com o caso que investiga, o que parece torná-lo muitas vezes distante dos acontecimentos, e nos leva a questionar seus interesses e motivações. A Cidade & A Cidade não tem tanto de romance psicológico quanto de metáfora política e social, o que não chega a ser necessariamente um defeito, é claro, mas há de diminuir o interesse de algumas pessoas.
O ritmo do livro também parece um pouco devagar, talvez justamente por esse distanciamento que se nota do personagem principal, com as revelações da investigação andando a passos lentos até os momentos finais, quando se aproxima mais de um filme de ação policial. Novamente, no entanto, este é um problema relativo – a revelação gradual e cuidadosa das pistas, somada ainda à situação peculiar das cidades onde a história se passa, é eficiente, e conseguem mantê-lo interessado na leitura e intrigado a respeito do mistério principal, cuja solução só começa a se desenhar de fato após as últimas reviravoltas.
Por outro lado, é possível notar alguma evolução e amadurecimento em comparação com os romances anteriores, tanto na linguagem do livro, mais acessível e necessitando de menos consultas a dicionários de inglês (ainda que isso se deva um pouco a um certo virtuosismo estético, como bem lembrado na nota final do tradutor Fábio Fernandes), bem como na estrutura da trama, mais redonda e bem-acabada, sem excessos ou grandes experimentalismos. Apesar dos seus elementos de fantasia e surrealismo, A Cidade & A Cidade é um romance policial bem direto e objetivo, que, mesmo confundindo e blefando constantemente sobre a sua resolução, não chega a dar um nó no raciocínio. Apenas a forma como a história constrói certas expectativas só para poder quebrá-las por completo nos capítulos finais já começa a ficar um pouco manjada e previsível para quem leu outros livros do autor.
Para além da óbvia conotação política e todo o aspecto mais formal, ainda, é interessante notar como o livro, da mesma forma que Lugar-Nenhum, do Neil Gaiman, consegue, a partir da fantasia e do surrealismo, nos fazer refletir um pouco sobre a nossa própria realidade. É difícil, após entender como funcinam e se mantêm as fronteiras invisíveis de Bèsz e Ul Qoma, não se pegar pensando um pouco sobre as que existem nas nossas próprias vizinhanças, especialmente nas grandes cidades, e da forma como seletivamente escolhemos não ver ou ouvir pessoas que podem estar bem ao nosso lado, ignorando tudo o que foge aos nossos mundinhos fechados particulares.
Enfim, como saldo final, à parte de todos os poréns, A Cidade & A Cidade é uma obra bastante intrigante e envolvente, capaz de provocar a imaginação e nos fazer refletir longamente após o fim da leitura. Apresenta o amadurecimento de um grande autor, e é certamente uma recomendação. Fica agora a esperança (e o desafio, visto que não será uma tradução fácil) de ver a editora publicar por aqui as outras obras do autor, em especial a trilogia de fantasia weird no mundo de Bas-Lag pela qual ele se tornou mais conhecido lá fora.
A Cidade & A Cidade, de China Miéville.
292 páginas por R$ 45,00.

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2 Resultados

  1. Queldi disse:

    Sei que essa pergunta não tem nada a ver com o post mas como sou (um pouco) cara-de-pau vou perguntar assim mesmo…
    Achei seu site por meio de uma curiosidade da qual eu tinha com RPG, vi um post que você descreve sobre um grupo no whatsapp do qual nunca tinha jogado o mesmo e você os incentivou em uma missão divertida! (Esse link para ser exata: http://rpgista.com.br/2013/05/31/whatsapp-narracao-e-newbies-o-inicio/).
    Queria saber se você ainda tem algum grupo assim pois quero ter a experiência de jogar RPG pelo menos alguma vez na vida! Desde já, obrigada!

    • BURP disse:

      Ok, mas não seria melhor ter comentado isso no próprio post que tu linkou? Aí o Ásbel, que foi quem fez aquela postagem, podia te responder diretamente.

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