Caim: um curioso livro sem vampiros

Caim

Capa de "Cain", de José Saramago


O escritor lusitano José Saramago dispensa apresentações. Com o bem aceito filme Ensaio sobre a Cegueira, do diretor Fernando Meireles, sua obra literária ganhou uma adaptação aparentemente respeitável, demonstrando que suas histórias tem chance nas mais variadas linguagens – isso, claro, sem retirar o mérito dos envolvidos na produção da película.
Mas o que me traz aqui hoje é o mais recente livro do nobelesco contador de histórias: Caim.
Publicada este ano, a narrativa já inspira fúrias e devoções para com o autor, mundo afora. Desta vez, tomando outro caminho bíblico como cenário para sua composição – como já fez antes em O evangelho segundo Jesus Cristo ­– Saramago escolhe recontar o drama de Caim, filho de Adão e Eva, a partir de uma leitura irônica e propositalmente anacrônica da lendária personagem. Somos levados, dentro de suas páginas, a viver os tempos primeiros de um mundo caótico, governado por uma leitura do Deus do Antigo Testamento recheada de crítica e humor sombrio – uma entidade tirânica e sem muitos argumentos. Caim, por sua vez, é retratado na história – que pode muito bem ser lida com um conto longo – como sendo a triste vítima de uma série de desvarios desta divindade contraditória.
De um lado o “primeiro assassino” e protagonista é o observador de inúmeras ocorrências fundamentais da história religiosa judaico-cristã, andando pelo tempo sem regras. Do outro é o ponto de contato entre uma humanidade absolutamente livre (e castigada por isso) e um conjunto de leis divinas em desenvolvimento que “colocarão as coisas no lugar” – em tese… No correr da noveleta, Saramago amarra o caminho de Caim a diálogos curtos e propositalmente confusos que beiram a comédia, mas marcam um estilo cuidadoso. Temos a descrição vaga de um mundo vago, ainda em construção, assim como um conjunto de rápidos exames dos contatos e dos poderes que o formam.
No fundo, o livro é uma crônica satírica ou semi-séria de crenças tradicionais do Ocidente, assim como um pequeno manual de “que Deus é esse?” escrito sem grandes pretensões. Uma leitura rápida, mas não leve, recomendada pelo talento do escritor em fazer dialogar o inacreditável e o cotidiano.
Deixando de lado essa tentativa de quase-resenha, lembro que ao ler o livro, me ocorreram duas coisas possivelmente válidas para o mundo das narrativas rpgísticas. A primeira, é que a divertida e polêmica construção de Saramago serve facilmente para uma autocrítica narrativa: quando você mestra, que tipo de “deus” você é para os personagens? O quanto é capaz de contar uma história onde eles tenham a liberdade de decidir sobre os rumos da coisa toda? O quanto, honestamente, está disposto(a) a rasgar o seu precioso roteiro e abrir caminho para as audaciosas idéias dos demais? O quão despótico somos na organização de nossos cenários e de nossas histórias e que prejuízo isso traz para sessões e campanhas?
A segunda coisa também válida é parte de idéias até mais antigas (presentes, de outra forma, em outro artigo): quais as implicações de se narrar em mundo 1.0? Como é a vida em cenários recentes, sem grandes lugares, sem grandes personagens que não as dos jogadores? Como contar uma campanha no começo do seu mundo?
A leitura de Caim não é parecida com nada muito tolkeniano, mas cria alguns pontos curiosos no que diz respeito ao exercício geral de imaginar cenários e relações entre personagens. Não é, também, um “grande livro”, no sentido da originalidade ou das questões que coloca. Retoma a crítica à religião e polemiza dentro de um campo de debate já movimentado. Articula um pouco os pontos-chave de antigos dogmas para negá-los, “tocando na ferida” religiosa e agregando valor enquanto faz isso (uma moda literária que não ainda dá sinais de envelhecimento, pelo visto). Serve mais como passatempo passageiro, ainda que carregado de alguma densidade por conta do português incomum que Saramago gosta de criar – e onde reside o verdadeiro valor do trabalho. Como último ponto a se destacar temos o preço: no Brasil sai, em média, por R$ 36,00. Isso por um livro de 172 páginas formato “bolso”. É o peso do nome (e, infelizmente, ele pesa).
Saudações narrativas. 🙂

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7 Resultados

  1. Muito interessante o texto, Mário. Pensei que ia ser uma resenha do livro e me surpreendi quando tu começou a falar sobre a forma como se mestra uma campanha "em cenários 1.0". Bem bacana mesmo!

  2. Ouvi falar desse livro essa semana! =D
    A idéia me pareceu bem inusitada e se ficou uma narrativa coerente, então deve ser bacana ler. Vai pra minha "lista da liberdade" (coisas q vou ler qndo acabar a graduação =P). Parabéns pelo texto!
    Sem querer entrar no mérito da questão religiosa – mas já entrando – como estudioso do comportamento humano acho interessantíssimo como duas pessoas diferentes podem ter opiniões tão diversas sobre o mesmo tema: Saramago, de fora da religião, retrata Deus como um carrasco, um tirano, etc. Eu, de dentro da religião, enxergo a humanidade como sem caráter. Se vc ler a bíblia verá que a maior parte das vvezes que "um grande castigo" aparece é pq o povo quebrou algum acordo que fez com Deus.
    Nas outras vezes entramos na questão de "o que é uma divindade?" que o Shido até trouxe em alguns artigos. Será que ela vê o mundo como nós humanos? Dissecando mesmo a coisa – e sem puxar brasa pra minha sardinha, perceba que não estou impondo, só explicando como vejo a coisa – a concepção judaico-cristã de Deus é que, entre outras coisas, ele é onisciente. Ou seja, ele JÁ SABE, por exemplo, quem vai fazer merda e que tipo de merda vai acontecer. O dilúvio, por exemplo, entra aí. A humanidade estava se destruindo aos poucos como cães raivosos. E isso está escrito para nos servir de exemplo.
    E claro que há muitas distorções. A bíblia nao diz que Deus "manda as pessoas pro inferno", mas sim que nascemos numa condição de afastamento de Deus e Ele nos TIRA de lá quando queremos aceitar a alternativa que Ele nos dá. É uma completa mudança de perspectiva, sacam?
    pow… vou botar "escrever sobre isso no meu blog" na Lista da Liberdade =P
    braços!
    E espero não levantar muita polemica!
    té +!

    • Jagunço disse:

      Salve, Math!
      Em primeiro lugar, agradeço pela visita e pelo comentário. 🙂
      Em segundo… bem… também tenho lá meus receios de abrir / incentivar debates religiosos… X)
      Gostaria apenas de dizer que seu raciocínio da oniciência faz sentido, sim, para pensarmos sobre o conceito. Mas vale acrescentar também aqui que a crítica de Saramago é, na minha interpretação, uma crítica aos homens – às igrejas ou a determinados tipos de práticas religiosas (ou a "formas de ver Deus"). A crítica ao "deus do velho testamento" me parece mais uma crítica a um tipo de tradição bem específica e a uma história de violências na Antiguidade – história essa que poderia servir como justificativa ou "modelo" para violências contemporâneas. Mas aqui entra minha dose pessoal de visão dos trabalhos do portuga. 🙂
      Abração.

      • Sim, sim! =D
        Nesse sentido que você trouxe concordo com você.
        Muita porcaria sempre se fez (e ainda se faz) em nome de religião e isso é lastimável. Meu medo com relação ao Cristianismo (e não posso falar por outra religião porque conheço muito pouco) é a quantidade de distorções que impedem até as pessoas de realmente se aproximarem do texto e lerem criticamente.
        Mas que bom que o caso aqui é outro =D
        Parabens de novo aí pela escrita!
        Falow!
        Braços!
        fikem com Deus!
        té +!

  3. Tek disse:

    Adoro a história do verdureiro homicida.

    • Jagunço disse:

      Os jogadores de Vampiro: A Máscara quase sempre fugiam dessa denominação!
      Imaginemos a noturna cena de crônica:
      "Somos crias do Primeiro Assassino, filhos da longa linhagem de predadores punidos por Deus (Ventrue de sétima geração)
      "Vocês são crias é do primeiro colhedor de alfaces, branquelo! (Ruppert MacCoy, caçador de vampiros do Brooklyn).
      😀
      P.S.: Pelo menos Caim não brilhava!

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