Inteligência divina, deuses desumanos e outras excentricidades

Ou “O que podemos esperar do comportamento de um deus (e outras excentricidades divinas)”
O que podemos esperar dos deuses? Perguntinha difícil — não é como se tivéssemos deuses morando na casa ao lado para observar ou entrevistar. Como uma enormidade de elementos em fantasia, a coisa acaba se baseando em mitologias, com adendos e customizações por parte da criatividade do autor. Deuses mitológicos costumam ser um bocado humanos — o panteão greco-romano é recheado de intriga, politicagem e doses enormes de ciúme patológico; mesmo o Jeová do judeo-cristianismo, em todo seu conceito de divindade platônica, é, no Antigo Testamento, passional até dizer chega — é ciumento, raivoso, violento…
Nenhum problema até termos acesso às eventuais fichas dos deuses — se, no sistema d20, pode-se dizer que alguém com Inteligência 20 é algo na divisão do Stephen W. Hawking, cujo alcance intelectual é confuso para a maioria de nós (ao menos o é para mim), o que esperar de um ente com Inteligência 40? Ou cento-e-lá-vai-pedrada? Minha primeira aposta — algo essencialmente não-humano, alienígena demais para compreender. Ou será que não?
Recentemente, me deparei, na ficção, com as divindades mais bem desenvolvidas que já tive o prazer de ver em blocos de texto. Impressionantemente, não foi em nenhum livro de fantasia, mas, sim, na ficção científica, no Accelerando do Charles Stross. A origem de tais divindades é diferente do que se vê nos mitos de “e então deus decidiu criar as coisas” — esses deuses foram criados pelos humanos. Sim, fã ardoroso da fantasia, tenha calafrios — os tais deuses são inteligências artificiais.
Na parte final do Accelerando, somos informados, através de um diálogo entre personagens, da forma como pensa uma dessas inteligências descomunais. Reproduzo o trecho devidamente traduzido.

“Agora, a consciência. É uma coisa engraçada, não é? Produto de uma corrida armamentista entre predador e presa. Se você vê um gato espreitando um rato, pode atribuir que as intenções do gato são mais facilmente explicáveis pelo fato de que ele possui uma teoria mental em relação ao rato — uma simulação interna do provável comportamento do rato quando este percebe um predador. Para qual lado correr, por exemplo. E o gato usará sua teoria mental para otimizar sua estratégia de ataque. Por outro lado, espécies de presa suficientemente complexas para ter uma teoria mental têm vantagem defensiva se puderem antecipar as ações do predador. Eventualmente, esta corrida armamentista bem mamífera nos deu uma espécie de macaco social que usava sua teoria mental para facilitar a comunicação por sinais — para que a tribo pudesse trabalhar coletivamente — e então, reflexivamente, para simular os estados internos do próprio indivíduo. Some ambos, comunicação por sinais e simulação introspectiva, e o resultado será consciência de nível humano, incluindo linguagem como um bônus — sinais que transmitem informações sobre estados internos, não apenas sinais simples como “predador aqui” ou “comida ali”.”
(…)

“Então,” (…) “nós chegamos ao pós-humano. Não apenas nossos implantes neurais, mapeados até o nível sub-celular e executados em um ambiente emulado em um enorme computador como esse: Isto não é pós-humano, é uma enganação. Estou falando de seres que são melhores máquinas de consciência que nós, tipos meramente humanos, melhorados ou não. Eles não são apenas melhores na cooperação — veja a Economia 2.0 para uma demonstração clássica disso –, mas melhores na simulação. Um pós-humano pode construir um modelo interno de uma inteligência humana que é, bem, tão cognitivamente forte quanto o original. Você ou eu podemos pensar que sabemos o que move outras pessoas, mas geralmente erramos, ao passo que verdadeiros pós-humanos podem realmente nos simular, estados internos e tudo o mais, e acertar. (…)”

Não é o tipo de mente que se esperaria ver participando de picuinhas de humanos, certamente — eles estão por demais acima disso. E, se lidamos diretamente com um ser de tal consciência, ele sempre vai levar a melhor — nesse caso, nós podemos, de fato, atribuir a esses entes o atributo da onisciência.  Ele pode não saber de tudo, mas, em relação a nós, ele sabe.
Juízo final!
Em relação a consciências assim, somos como uma rã em comparação com um humano. Eles poderiam simplesmente se livrar de nós. Se o cenário possui deuses e seres humanos (atarracados ou não, com ou sem orelhas estranhas), quer dizer que aqueles decidiram não fazê-lo. Por quê? Vai saber. Algum tipo de excentricidade, filantropia greenpeaceana, ou só o prazer de possuir uma fazenda de formigas. Talvez curta animais de estimação — ou seja um sádico que “esmaga formigas” explodindo cidades. Tudo isso apoiado em motivos que não podemos sequer imaginar.
O Charless Stross chega a desenvolver uma situação em que há uma dessas A.I.s “divinas” que escolhe ter humanos zanzando por aí.  O tema aparece nos romances Singularity Sky e Iron Sunrise, na forma do Escathon, um plot device poderosíssimo — essa A.I. descomunal resolveu, em certo momento (lá pelo fim do séc. XXI ou um pouco depois, não recordo) reduzir a população da Terra (então uns 10 bilhões) para algo em torno de 2 bi. Como? Transportou populações inteiras, via wormhole, para outros planetas habitáveis (ou não-habitáveis com suficiente terraforming feita de antemão), resultando em um universo bem aasimoviano de “humanos em tudo o que é planeta”. O Escathon já deixa claro “Não sou seu deus, eu descendi de vocês”, e, escrito em monolitos enormes em cada planeta, faz sua única exigência — “Não violarás a causalidade dentro do meu cone de luz. Caso contrário…” O motivo é fácil de se entender — com a possibilidade de viajar mais rápido que a luz, tem-se, efetivamente, viagem no tempo. Então é perfeitamente possível “voltar no tempo” e editar o Escathon fora da história. E ele, claro, não gosta da idéia — e tem por hábito explodir sistemas solares que contenham planetas com gente que tente fazê-lo. Ou, em casos mais brandos, emprega agentes (humanos que não querem sistemas solares explodindo) para frustrar, de forma discreta, tais tentativas.
Em um cenário de fantasia medieval politeísta (mesmo quando este não passa de um monoteísmo com roupas engraçadas), a coisa pode ser parecida. Por que os deuses mantém os humanos/óides por aí ainda é uma incógnita, mas eles possuem algumas vontades que conseguimos compreender (“não ferre com a História no meu cone de luz!”) e empregam agentes para frustrar intenções adversas às suas (que, nesse caso, podem ser a intenções de outras divindades).
Esta última frase me deixa com uma pulga atrás da orelha — divindades seriam, em teoria, ótimas na cooperação e fariam a alocação de recursos da forma perfeitamente eficaz*.  Mas… e se os recursos de que elas dependem forem escassos? Escassos a ponto de, mesmo com uma divisão otimizada, não serem suficientes para garantir a sobrevivência de todos, fazendo necessário algo barbárico como a competição, uma relação de soma zero?  Entra em cena o mercado de fiéis.
*(Também é possível que sejam A.I.s tão diferentes entre si a ponto de a incompatibilidade impossibilitar a cooperação — mas vamos assumir que não. Deuses em RPGs podem possuir personalidades distintas, mas, de modo geral, o chassis é o mesmo, e poderiam ser, portanto, suficientemente inteligentes para praticar uma distribuição ótima de recursos a despeito de divergências menores, dado que tais recursos sejam suficientemente abundantes.)
Mercado da fé

Se você já leu sobre os deuses de um dado cenário, você certamente esbarrou com esta informação: os deuses dependem da crença dos fiéis para existir. Se a divindade perde popularidade demais, ela fica subnutrida e caquética; se o seu culto bomba, ela fica bombadona. No Tormenta isso fica bem evidente — a Glórienn, a deusa dos elfos, perdeu enorme quantidade de poder quando a fé nela foi severamente abalada, por pouco não perdendo seu status de divindade. A razão disso nunca é explicada, mas é incontestável o fato de que, em cenários que seguem esse modelo, deuses terão interesse em interferir nos assuntos humanos/óides visto que, por alguma razão, eles dependem da crença das “formiguinhas”. E somos levados a crer que a fé das criaturas do plano material é um recurso escasso.
Deuses-memes
Este paradigma, deuses dependem de fé para existir, optei por usar no Romância, com uma tentativa de explicação pseudo-científica-mirabolante. Funciona mais ou menos assim: é postulada a existência do éter — semelhante ao éter luminífero dos vitorianos, é o meio em que se propagam ondas eletromagnéticas (luz, eletricidade, magnetismo…), que são, com algumas forçações de barra, a base da magia no cenário. Para ferrar ainda mais, esse éter é semelhante  aos componentes subatômicos descritos no livro charlatão Occult Chemistry — “partículas de éter” podem se agregar, formando prótons e seus coleguinhas (e estes formam os átomos, que formam moléculas que compõem as coisas que existem por aí). Estas “moléculas de éter” podem formar estruturas que não são compostas por suficientes partículas a ponto de formar um próton (ou nêutron, etc.). Estas estruturas “semi-materiais”, em suas formas mais simples, são usadas como “alavancas” telecinéticas, “martelos” de força invisível, “canaletas” para guiar descargas energéticas… — mas, da mesma forma que a evolução, em milhões de anos, fez surgir nós e outros organismos vivos a partir de átomos e moléculas simples, essas “moléculas de éter” semi-materiais deram origem a uma “fauna etérica”. A maioria não passa de “bactérias” (que podem ou não causar “doenças mágicas”), “animais” como elementais que “pegam carona” em fogo, eletricidade, terra, etc. — mas se formaram também uns poucos organismos realmente complexos — deuses.
Eles não criaram o mundo nem nada assim — mas eles querem que você acredite nisso porque lhes é conveniente. Os deuses descobriram que podiam aumentar de tamanho anexando certas estruturas a si — os memes. Como a atividade cerebral consiste de impulsos elétricos (que, como eletromagnetismo, se propagam dentro do éter, segundo o modelo do cenário), idéias e pensamentos na mente das pessoas possuem estrutura etérica, e os deuses, “programas de computador”, “inteligências artificiais” etéricas, são feitos de estrutura parecida, logo, podem se anexar a memes ou memeplexos (conjuntos de memes) — que passam a se comportar como prolongamentos da divindade, facilitando a onipresença pois, se alguém contaminado pelos memes do deus está em algum lugar, parte do deus também está lá.
Aí a escolha de memeplexos (pense nos “portfólios” das divindadades) vai pelo gosto de cada deus — deuses mais palatáveis, como Vitória ou Sophia, se anexaram a memes de esclarecimento, auto-perfeição e liberdade de pensamento, de modo que seus “hospedeiros” sejam mais flexíveis e vivam vidas melhores — não por afeição ou coisa assim, mas sim porque apostam que agentes mais satisfeitos são melhores trabalhadores. Outros mais expansionistas, como Morgenstern, se anexaram a memes atraentes, mas que não correspondem a fatos da realidade, como uma vida após a morte (com recompensa ou punições de acordo com ações em vida), repúdio ao conhecimento (de modo que os fiéis não “esbarrem” em informação que contradiga os memes eficazes-mas-falsos), divisão rígida de gêneros (homens são “guerreiros defensores” e “chefes”; mulheres são “parideiras” — para gerar mais fiéis e soldados), entre outros, eficazes para aumentar e controlar a massa de fiéis, mas não necessariamente bons para os hospedeiros.
Nesta situação, faz sentido que os deuses queiram se meter nos assuntos mortais. Claro que isto dá margem para que os deuses se tornem titereiros invisíveis dentro do cenário, moldando as idéias das pessoas e até culturas inteiras para que se conformem a seus propósitos. Embora isto possa parecer indesejável para muitos (ninguém quer que sua liberdade seja apenas ilusória), a conjuntura do “titereiro invisível” pode gerar boas idéias de histórias:
a. Se os deuses não forem totalmente super-poderosos (a ponto de sempre esmagar a oposição com relâmpagos e nukes), descrentes insatisfeitos com o rumo da sociedade podem empreender uma “guerra de informação”, de modo a virar a mesa da opinião pública, enfraquecendo o memeplexo da divindade a ponto de conseguir extingui-la.
b. Suponhamos que as divindades não se utilizem dos memeplexos, mas sejam, na verdade, memeplexos que “ganham vida” porque [insira motivo aqui; pode ser “campo geral de magia que envolve o plano material”], sendo, portanto, reflexos dos desejos e medos das pessoas. Algum grupo de agentes pode querer se utilizar disso, conquistando e convertendo com eficiência militar, de modo a “criar” um novo deus de acordo com seus desígnios. (Matar um deus pode ser motivo de uma aventura épica emocionante, mas criar um deus pode ser uma aventura épica mais interessante ainda.)
c. Conserto de deuses: similar aos dois primeiros, mas sem criar ou extinguir ninguém. Um governo pode estar preocupado com o rumo que uma dada religião está tomando, e os personagens são incluídos em uma enorme operação cujo objetivo é fazer cair em descrença um ou mais memes considerados perigosos no memeplexo de uma divindade, retirando as presas venenosas da serpente.
Se assumimos este modelo como verdadeiro, então deuses = religiões. Costumo assumir que religiões são bastante diferentes dos deuses — divindades são distantes, e, quando os pais estão fora, as crianças fazem bagunça; as religiões se tornam algo que aos poucos desvia da personalidade da divindade, a estrutura eclesiástica cada vez mais colorida por politicagem e mesquinharia tipicamente humanas. Mas se os deuses são os memeplexos que formam as religiões, então as religiões são indistinguíveis das próprias divindades.
Se os meme(plexo)s são parte do “corpo” do deus, todo fiel suficientemente fervoroso possui parte do poder da divindade dentro de si. Nesse caso, todo fiel é um paladino, por assim dizer — além da configuração “guerreiro + conjurador divino fraco” que é o paladino original, podemos ter outras, como “ladrão + conjurador divino”, “bardos divinos” e “feiticeiros divinos” (esse último já existe, o Favored Soul).
Como divindades são um reflexo da crença das pessoas, elas podem ser absolutamente boas ou más — elas o são, afinal, dentro dos parâmetros daquilo que as pessoas consideram bom ou mau. (Claro que, se um ou mais segmentos da sociedade não concordarem, pode haver edição ou extinção de deuses.)
Deuses alienígenas
Não, eles não chegam em disco voador (em Varginha ou qualquer outro lugar), nem são cinzentos, cabeçudos e com olhões. É o padrão que se vê por aí — deuses são criaturas “de fora”, os “extraplanares poderosos”. É possível que ainda se “alimentem de fé”, mas pode não ser o caso. Isto é espinhoso de desenvolver, já que deuses seriam, de fato, inteligências realmente alienígenas e incompreensíveis. Religiões podem não corresponder com exatidão à personalidade do deus — que só vai “sugerir” modificações caso o rumo das coisas não seja útil para seus objetivos. Objetivos, aliás, que os personagens podem pensar entender, sem nem sequer imaginar que toda sua teologia e conhecimento sobre as relações dos deuses são apenas reflexo da camada mais superficial de uma rede infinitamente complexa de manipulação. Clérigos podem receber poder desses seres — ou pensar que recebem, sendo as magias divinas meramente magia arcana cujo domínio é alcançado via auto-sugestão alimentada pela crença na entidade superior. E esses clérigos podem ser bem atuantes, já que a divindade, inteligência alienígena demais, não se mete nas picuinhas humanas, raramente (ou nunca) interferindo de forma direta.
Nesta situação, não tente lubidriar ou lutar contra esses deuses — eles são inumanos demais para serem seguros, e suficientemente inteligentes para sempre levar a melhor.
Memes vs. aliens

Pode ser no mínimo curioso usar ambos modelos simultaneamente. A escala de poder divino seria uma só, mas as origens dos deuses são distintas. Como exercício meramente especulativo (e não-oficial, que fique bem claro), apliquemos isto a Tormenta. Nimb, o deus do caos, pode ser uma divindade alienígena — e faria sentido, já que ele é suficientemente incompreensível. Khalmyr, por outro lado, seria um deus-meme, que foi sendo criado pelas pessoas à medida que a civilização nascia, como uma reação à violência e à desordem do mundo não-civilizado, e que hoje está tão arraigado na mente das pessoas que rivaliza com o deus-caos alienígena. Como Khalmyr tem base nas crenças de ordem e civilização das pessoas, é, até certo ponto, humanamente compreensível, ao passo que Nimb, alienígena, não. Já os lefeu são os deuses alienígenas por excelência, e do tipo “ruim” — expansionista sem muito apreço por humanos. São tão estranhos e mutáveis que um deles — Aharadak, lorde de Zakharov — está considerando usar um memeplexo religioso como arma.
Fechando
Lembre-se: deuses são inteligentes demais para serem usados levianamente ou como NPCs “comuns” que tomaram algumas doses de esteróides de onipotência, só aparecendo para resolver alguma coisa. Eles são algo realmente diferente e, mesmo sendo fodidamente poderosos, não precisam necessariamente roubar os holofotes (que devem ser direcionados aos personagens dos jogadores). Eles não aparecem e resolver ou ferram algo por nada — ações de deuses são mais críveis se fizerem parte de um programa realmente complexo, um plano que pode apenas se aproximar de algo que pareça conclusão após uma campanha inteira. Use a abuse dessas inteligências massivas e incompreensíveis — aventuras interessantes (e com reviravoltas surpreendentes) podem sair daí.
(E tentemos resistir um pouco à “segregação geek“. Em vez de nos concentramos apenas em nossas diferenças — esta ou aquela edição de um jogo, fantasia vs. ficção científica –, vamos focar no ponto comum: é tudo coisa de nerd. Em vez de dividir rigidamente fantasia e sci-fi, usemos o que for bom dentro de ambos os gêneros. É tudo geek e, portanto, geek-friendly.)

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24 Resultados

  1. Leonel disse:

    Escreve um livro. Vai estudar técnica, linguagem e teoria do romance (já que tu é perfeccionista) e escreve logo um livro. Não necessariamente RPG: prosa. As idéias merecem.
    Queria ler as tuas idéias/impressões/opiniões sobre mortais que ascendem à divindade.
    Abraço.

    • Shido disse:

      Obrigado, Leonel. Teu conselho é uma idéia com a qual vinha flertando faz algum tempo, então creio que é algo que vale ser levado adiante.
      Para isto, contudo, peço um favor — pode me recomendar um ou mais títulos sobre linguagem e teoria do romance, aqueles que considerar melhor na categoria de "101/for dummies"? Muito gostaria de aprender sobre o assunto (e poder, então, dar forma coerente às idéias soltas).
      Obrigado!

  2. Kuriboh disse:

    Ótimo artigo.
    Mas uma coisa que sempre me intrigou nos deuses do RPG foram suas insignificâncias em contraste com sua magnificência. Digo insignificância no sentido de ser o "Senhor de Determinada Coisa", como por exemplo "Deus da Justiça", "Deus das Estradas", "Deus da Guerra". Já sua magnificência fica a cargo da relação divindade/adorador.
    Se foram eles que criaram o mundo/universo/plano de determinado cenário… Porque se contentam, então, a determinados objetos de fé inúteis? Afinal, quando criaram o mundo não existia um conceito de "Justiça", nem existia "Estradas ou Viajantes", nem "Guerras"… Nem humanos, nem anões, nem elfos, nem bem, nem mal…
    No tocante à fé reguladora da existência de determinada divindade, temos outro problema. Afinal, como eles existiam no começo da criação se não haviam adoradores?
    Acredito que os ditos "deuses", dos jogos de RPG, são algo bem abaixo do que realmente seria um deus — levando em conta que um "deus" seja algo/alguém de vontade/força suprema. Na minha opinião, o que mais se aproxima do sentido real da palavra são as duas forças "Nada" e "Vazio", do cenário Tormenta.
    Obs: Tudo o que disse foi baseado no conceito de Deus no Cristianismo. E de antemão peço desculpas se alguma coisa que disse agrediu de alguma forma sua crença (seja você cristão, ou de outra religião).
    Abraços.

  3. Jagunço disse:

    Shido, assim não dá. Escreve aí alguma porcaria, só pra variar, pô! 🙂
    Tenho um amigo jogador que abomina deuses. Ele não suporta a idéia de personagens tão "mais fortes" do que o dele, ainda sua existência faça sentido na lógica da fantasia. Gosto de histórias com deuses. Não daquelas em que eles tomam o doce, mas daquelas em que eles tecem jogos e fazem guerras explodirem. Direta ou indiretamente.
    Abraços.

    • Shido disse:

      Eu consigo, até certo ponto, entender o teu amigo — é meio broxante chegar no final e descobrir-se manipulado durante todo o caminho (isso só funciona se a história for *realmente* boa). Eu cheguei a essa coisas dos "deuses-memes" para conseguir me reconciliar com os deuses na fantasia por esse motivo — eles deixam de ser manipuladores supremos atrás dos panos, ficam mais integrados com a sociedade do cenário e interagem melhor com os PJs sem precisar banalizar avatares. Deuses são poderosos — mas a sociedade tem o poder de sumir com eles; a situação resultante é delicada e tensa — tensão é boa para aventuras. (Lembra a forma como celebridades são quase-divindades hoje em dia, passíveis de cair na obscuridade tão meteoricamente quando ascenderam.)
      Quanto à qualidade do artigo, se lembre daquele que escrevi faz um tempo que gerou uma flamewar horrenda de mais de cem comentários… Para me redimir por aquilo, preciso de mais uns 20 artigos melhores que esse.

  4. Ótimo post. O assunto "deuses" sempre dá voltas e chega na mesma questão sobre ser um só dividido em muitos, alienígenas ou construções mentais, muito bem abordada aqui.
    Parabéns!

  5. Tek disse:

    Basicamente: divindades de RPG são (ou deveriam ser) pouco compreensíveis, porque só eles teriam a visão ampla do contexto todo, as criaturas somente conseguiriam enxergar a seção onde estão contidas.
    Outra vez, ótimo artigo. Tenho muito orgulho por você fazer parte do grupo.

  6. Arquimago disse:

    TAmbém fiquei maravilhado como texto! Também acho que poderia escrever um livro!
    É só, espero continaur lendo seus contos de sabedoria.

  7. Well, you nailed it, again. =D
    Algo a se pensar nesse âmbito dos memes é a possibilidade dos deuses iniciarem/parirem memes intencionalmente, memes que sirvam a seus objetivos e lhe garantam mais seguidores, etc.
    Eles não estariam necessariamente à mercê dos mortais na parte de criação de novos memes. Enquanto criaturas poderosas, podem iniciar e proliferar os memes que mais lhes são úteis… seleção memética.

    • Shido disse:

      Tá aí uma questão interessante. Esta possibilidade deixaria os deuses-memes radicalmente mais perigosos — esse calcanhar de Aquiles que eles possuem na forma de dependência de memes externos seria menos relevante se eles puderem se meter diretamente na guerra dos memes.
      Ao menos do Romância (onde esse é o modelo padrão da coisa), eu postulei que isto não é possível. Racionalização: deuses são descomunalmente inteligentes, mas a inteligência é totalmente não-humana. Dessa maneira, eles têm acesso ao código-fonte do meme, seus "vetores de força" e "diagramas de coerção psicológica", mas não à interface que os humanos usam para assimilá-lo (modelos psicológicos excessivamente diferentes). Dessa forma, novos memes só poderiam ocorrer dentro da congregação da divindade, cujos fiéis possuem de antemão um memeplexo favorável à divindade e que. Ao receber da divindade a inspiração abstrata do novo meme, o fiel o dotaria de interface de maneira a harmonizá-lo com o memeplexo pré-existente — tornando possível propagá-lo para outras mentes de psicologia humana.
      Eu mesmo não fico 100% convencido com essa explicação, mas optei por incluir essa limitação por razões práticas — dar mais relevância às pessoas (e, por tabela os heróis) no cenário e evitar que todas as nações virem teocracias — memeplexos religiosos são apenas uma fração pequena no meme pool global, e se as divindades pudessem manipulá-lo diretamente conforme lhes aprouvesse, com dado tempo todo o meme pool consistiria de memes religiosos. (E isso não seria legal.)

      • Tudor disse:

        Primeiramente, muito bom este teu artigo, me deu muito no que pensar. Agora vamos ao que interessa.
        Quando falastes que os deuses eram memeplexos que tomaram consciência a primeira coisa que pensei é que, devido a sua natureza, eles teriam total conhecimento sobre os memes que os compõem e a atuação dos mesmos nos seres conscientes, mas sua inteligência divina estaria restrita a seus próprios memes componentes.
        Ex: a deusa do amor teria consciência sobre todos os tipos de amor que as espécies inteligentes conseguirem conceituar e aderir aos antigos memes que a compõem, ela seria capaz de identificar e controlar desde o primeiro interesse de um indivíduo por outro, até a morte do amor em um casal, mas ela não seria capas de alterar o ódio de alguém, nem de compreender os seres conscientes fora dos pontos de vista dos memes que a compõem.
        Quanto a criação de novos memes, isto estaria a cargo dos seres conscientes a partir das mudanças sociais a que estão impostos. Assim eles poderiam criar novos deuses (ex: em uma revolução industrial poderia se cria um deus da tecnologia), ou de criar novas facetas para os antigos deuses (ex: um novo conceito de relacionamento para a deusa do amor).
        Mesmo desta forma de se ver as coisas ainda existiriam guerras entre deuses pelo controle de “memes fronteiriços” que pudessem se aplicar aos querelantes, ou as diferenças ideológicas que os deuses possuem entre si.

        • Shido disse:

          Cara, abordagem *excelente*! Se temos os deuses como "memeplexos despertos" (na falta de termo melhor), o escopo de ação deles se limita às informações contidas no memeplexo. Coerente e elegante. Transforma os deuses (e suas religiões, que, nesse caso, são a mesma coisa) em reflexos do espírito da sociedade, com todo o tipo de implicação bacana que pode sair daí.
          Eis um ponto ao qual vou dedicar uma boa dose de pensamento. Obrigado!

      • Fato, não tinha pensado por esse lado.
        Claro, abandonando as razões de jogo, o mais provável é que eles manipulem sim os memes. Mesmo com a diferença de interface, deuses são capazes de simular inteligências menores. Aliás, isso é outra coisa que tem que ser levada em conta – eles devem poder montar modelos mentais que simulam inteligências menores. É como estudar criaturas com inteligência 'menor' do que a nossa.
        Estava lendo o argumento da simulação (http://simulation-argument.com/) e acho que se relaciona a isso, de algum modo. Ou é parte das minhas pirações usuais P-)

        • Shido disse:

          Corretíssimo — se postas de lado as razões de jogo/cenário, a progressão natural é termos os deuses manipulando memes a três por quatro. Partindo, claro, do pressuposto de que deuses são, de fato, inteligentes ao ponto de simular humanos com perfeição (que eu vejo como ponto pacífico, caso contrário não seriam deuses.)
          Isso, na verdade, pode até se prestar para um RPG auto-contido, em que os jogadores são deuses, lutando entre si (e formando alianças, traindo, etc.) pelo mercado de fiéis, armados até os dentes com os memes mais ferozes.

  8. Metal_Sonic disse:

    Shido, mais uma vez excelente! Vai escrever algo mesmo, siga o conselho do Leonel.
    E tipo, capaz de, se você falar de Futebol, um bando de gente começar a gostar! XD

  9. Melgalian disse:

    Assustadoramente coerente, duma perspicácia impressionante.

  10. Adorei a idéia das grandes IAs "deuses" muito bom. Parabens pelo texto

    • marlonteske disse:

      Tem um conto muito bom do Asimov (pelo que vi o Shido não o citou diretamente, mas fez uma menção a ele) em que o Multivac (que seria o Computador Definitivo da Raça Humana, uma máquina projetada para pensar pela humanidade como um todo, desenvolvendo-se sozinho em busca da perfeição e da resolução dos problemas do homem que tinha liberdade para perguntar qualquer coisa para ele… algo tipo o Google heheh) se transforma em uma entidade mais ou menos divina (e o conto tem um dos melhores finais que já tive oportunidade de ler.
      O nome do conto é A Última Pergunta, perguntem ao Multivac… quer dizer, ao Google. Tem uma versão em português disponível em algum lugar.

      • Shido disse:

        Marlon, obrigado! Não conhecia esse conto do Asimov, e certamente vou pegar para ler. Fiquei intrigado pois, nos livros do Asimov, I.A.s nunca chegam a se tornar a se tornar monstros de desumanidade total — o Daneel Olivaw (Caves of Steel, Naked Sun), que aparece também no último livro da Fundação (Foundation and Earth), mesmo tendo feito um sem-número de expansões de inteligência ao longo de milhares de anos, tem uma atitude essencialmente humana frente as coisas. Claro que isso deve ser pela forma que o Asimov programava os robôs dele, com as Leis e tudo o mais.
        Vamos ver quais truques legais o Asimov faz com uma super-inteligência inumana!

        • marlonteske disse:

          De certa forma, ele nunca se torna humano, pois mesmo após o próprio homem deixar de ser homem ele continua servindo aos propósitos para o qual foi criado. Uma idéia bacana para um próximo artigo seu: será que realmente as máquinas um dia vão aloprar como nos filmes apocalípticos?
          Sei lá, eu vejo uma máquina sempre com uma tendência forte de fazer aquilo para o qual ela foi criada. "Revoltar-se" é um conceito humano demais para uma máquina levar em consideração, ou – se curiosidade for parte da programação de um treco desses – considerar minimamente interessante. Pra mim é um pouco do ego humano falando alto quando pensa que "um dia as máquinas irão querer ser humanas"… eu já acho que um dia são os homens que irão desejar ser máquinas XD

          • Shido disse:

            Então, no Accelerando, o Stross leva a progressão de "máquinas alopradas" até as últimas conseqüências. E a coisa é bem inumana.
            Máquinas querendo ser humanas parece, de fato, egotrip humana com esteróides — assim como o conceito de revolta aplicado a elas. No Accelerando (de novo, mas é um dos melhores 5 livros que já li), as I.A.s continuam fazendo aquilo para que elas foram programadas, e não se importam com humanos. As mais marcantes são empresas e outros programas financeiros, que só se importam com troca de dados/fundos entre si — e provavelmente com expansão de mercado. Em certo ponto, essas I.A.s resolvem começar a desmanchar planetas para transformar sua matéria em processadores (de modo a ter mais banda e memória — recurso primordial) — e os humanos, que não participam da Economia 2.0 ou 3.0, são praticamente esquecidos, e forçados a emigrar quando a terra é desmantelada.

          • marlonteske disse:

            Esse conceito de pensar de forma alheia ao pensamento humano é o que aplico às raças fantásticas. E pra mim a graça tá ai hehe. Dane-se se são elfos-humanos-anões. Eles tem diferenças além das orelhas e o tamanho.
            E tá o osso de achar livros em português nessa linha. Vou fuçar.

      • Este é aquele que acontece a Fusão Humanos/Maquinas ? Se for qual eu estou pensando é foda de mais

  11. koboldvhp disse:

    Muito bom realmente o texto. Enquanto lia fiquei pensando cá com os meus botões: primeiro, segundo a idéia dos deuses-memes, caso uma civilização, apartir de determinado momento, associa-se um deus a um determinado conceito, diferente do anterior, eles não poderiam mudar este deus? Um deus justo não pode se tornar um deus da vingança, transformado pela crença de seu povo? E segundo. Se um povo tem um deus, e por algum motivo este povo migra para regiões diferentes e isoladas, passando a ter diferentes visões sobre o mundo, elas não poderiam fragmentar um deus em dois? Se isso hipoteticamente se aplicasse a Tormenta, não poderiamos ter duas ou mais versões de Glórien, dependendo de como os elfos passaram a enxergar o ocorrido? Um outro caso poderia ser que somente uma grande ruptura causaria essa fragmentação, sendo que pequenas divergencias poderiam ser mediadas pelo deus-meme, que assumiria em parte as duas visões. Me lembra um pouco o conceito de Egrégora (http://pt.wikipedia.org/wiki/Egr%C3%A9gora). É isso… Abraços.

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