Romância: Vampiros e Lemurídeos

Recentemente escrevi sobre a antropomorfização excessiva, e a discussão gerada me fez pensar um bocado no assunto agora que estou elaborando as ilustrações para as raças do Romância. Se a linha é humanóide demais, acabamos com klingons (pessoas com testa engraçada) ou gente com orelha de bicho; se animalesco demais, corre-se o risco de descambar pro furry. Deve haver suficiente familiaridade para que o leitor possa ter algum grau de identificação e, ainda assim, deve ser suficientemente exótico para parecer algo não-humano, ainda que humanóide. Entre a cruz e a espada, decidi tentar chegar a um meio-termo satisfatório, o que me levou a uma tonelada de esboços e, sendo esses insatisfatórios, finalmente a um campo novo para mim, o de reconstituição anatômica através da escultura.
Como já escrevi anteriormente, o tempo e a diversificação de leituras acabaram por transformar o Romância de fantasia para sci-fantasy, o science fantasy, uma estranheza que tenta apresentar a fantasia sob moldes de ficção científica ou ficção científica com estética de fantasia ou sei lá eu. Nunca fui bom com essa coisa de gêneros. Como o Romância já era, desde o início, suficiente estranho pra afugentar qualquer adepto da fantasia tradicional tolkeniana, não ia doer levar a estranheza um passo à frente.
Para o design das raças, decidi usar outros primatas como “base” — de modo que fosse mais fácil justificar o fato de terem aspecto bem humanóide, mãozinhas de cinco dedos com polegares, etc. Como desde o início havia a presença de raças feéricas, acabei escolhendo o lêmur, também um primata, como base. Afinal, eles são suficientemente “macacóides” e, ao mesmo tempo, estranhos, logo, pareceu apropriado. O lêmur é um animal de hábitos noturnos e estrutura social matriarcal, ambos temperos interessantes e apropriados. Como os vampiros são uma variedade de onírico — leanan sidhe, que, no mito, são descritos como de certa maneira vampirescos –, os hábitos noturnos ficam ainda mais apropriados. A palavra em latim lemures significa “espíritos da noite” ou “fantasmas”, o que também é adequado a vampiros ou fadas noturnas que raptam crianças e dão origem a lendas entre os humanos.
Com toda a base e traços raciais definidos, era preciso definir-lhes a aparência. E um terreno instável se tornou. Espera-se de fadas e vampiros um grau bastante grande de familiaridade. Espera-se que possuam traços delicados e beleza alienígena. Tudo isso sem eles serem humanos. E esse é um dos pontos que fiz questão de manter: não são humanos, e as ilustrações deveriam sempre frisar isso. Quando ficou difícil traduzir isso com os esboços (ou saíam humanos demais, ou bichos demais), tive a idéia de deixar a evolução seguir seu curso.
Idealmente, eu teria um crânio de lêmur modelado em 3-D e contaria com um software que aplicaria um algoritmo de evolução nesse crânio e, a seguir, cobriria com toda a anatomia de músculos faciais e pele. Não é o caso. Cabe definir como agiriam esse algoritmo hipotético. Na discussão que citei no início, descobri um livro do Desmond Morris, The Naked Ape, que trata do animal humano. Segundo ele, nosso aspecto advém da neotenia, a retenção de traços infantis na vida adulta. Entre outras coisas, esse alonga a infância e o desenvolvimento cerebral, ampliando a janela de tempo na qual podemos aprender novas habilidades — diferentemente de um macaco que, passada a infância, parece incapaz de desenvolver novas habilidades. Em termos de aparência, compare um chimpanzé filhote com um adulto — o rosto do filhote é mais chato que o do adulto, e sua cabeça é maior em comparação com o rosto. Nossos lábios virados para fora, inclusive, que não são vistos em nenhum outro macaco — mas são verificados nos fetos de chimpanzés. Há toda uma gama de considerações, como a relação disso com nossa postura ereta, e, se você tiver curiosidade, recomendo o livro.
Sem as ferramentos sofisticadas de computação 3-D que citei, fiquei com a segunda opção: mãos e argila de polímero. Puxei da memória documentários em que a partir de um crânio, fazia-se esculturalmente a aplicação de músculos e pele para saber que aspecto teria a criatura em questão em vida, e pensei ser um exercício interessante. Para começar, eu precisava do crânio de um lêmur hipotético. Pesquisa revelou a reconstituição do fóssil de um lêmur gigante extinto. O tamanho é plausível, e o melhor é o fato de ele já possuir um rosto achatado. Usei como base conjunta o crânio de um lêmur Potto, que possui um maxilar mais delicado e focinho mais alongado. Com uns ajustes aqui e ali, bem como o aumento da caixa craniana (pra poder amazenar um cérebro suficientemente grande; não queria penalidade de Inteligência para eles!), cheguei a um crânio satisfatório de “lemurídeo evoluído”. Os aspectos técnicos da coisa e o fato de estar mexendo com uma caveira contribuíram para certo distanciamento, evitar deixar que meu julgamento influenciasse muito o rosto final.
Com o crânio pronto, pus-me a aplicar os músculos faciais e, a seguir, cobri-los com uma camada de pele. Um focinho deixaria a coisa furry demais, então optei por um nariz mais humanóide. Idem para os lábios — não consegui encontrar nenhuma imagem de um feto de lêmur para saber se há ou não lábios parecidos com os que conhecemos, então, em nome da familiaridade, pus-lhe lábios. As orelhas são as de um lêmur (que terão, tufos de pêlo em suas pontas). Depois de meia hora no forno caseiro em potência média-baixa, eis o resultado final (a foto não é lá essas coisas, mas serve pala ilustrar).
Romância: Vampiros e Lemurídeos 1
Só consegui encontrar imagens de bebês lêmur depois de finalizar, mas, para a minha alegria, a cabeça que compus possui semelhanças com a de um filhote de aye aye — cujo tom de pele e cor dos olhos (e a coloração preta em volta dos mesmos) são tão apropriados que serão usados.
Romância: Vampiros e Lemurídeos 2
O procedimento e seu resultado me pareceram satisfatórios. Ao menos para meu palato, ficou suficientemente familiar e ainda suficientemente alienígena. Fiquei meio encanado por se parecer com um elfo (seria irônico; varri os elfos para dar lugar aos lemurídeos e o lemurídeo se parece com um elfo…), mas revi a ilustrações no Livro do Jogador 3.5 (que tive de resgatar debaixo de uma enorme pilha de livros), e também pedi para outra pessoa comparar ambos e, no fim das contas, não são tão semelhantes quanto minha paranóia insistia que eram.
Um artista mais hábil provavelmente não precisaria deste procedimento. Muitos devem estar pensando se tratar de toda uma encanação desnecessária. Mas eu gosto de detalhismo, e foi interessante como experimento (e tentativa de uma técnica artística nova, é sempre legal expandir), e pretendo fazer o mesmo com os trolls e onis (“babuinóides”, no caso). E vocês, que pensam?

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12 Resultados

  1. Heitor disse:

    O “Lêmure Evoluído” ficou parecido com um elfo. E ficou bem feito.
    Bom, também sou do tipo “biólogo”. Mas confesso que às vezes é entediante procurar soluções plausiveis para tudo…

  2. Heitor disse:

    E discordo que um focinho ficaria uma coisa “furry” (mesmo não gostando de tais coisas). Possuímos ainda vários traços vestigiais que nos classificariam assim.

  3. Tem certeza? Vou considerar um nariz mais, hã, “focinhesco” pra compor a imagem definitiva. Estranhamente, o nariz da escultura tem me incomodado desde hoje pela manhã; talvez algo diferente dê o aspecto mais plano do rosto do bebê de aye aye. (Ou talvez até faça outro modelo desses, agora com mais familiaridade com o material.)
    Quando a mim, eu não me entedio fácil com a caça por plausibilidades — chega até a ser terapêutico. Eu normalmente não iria tão longe, mas estava caindo nos formatos de rosto de sempre, e a coisa em três dimensões poderia ser oportuna. A pesquisa em si não é nada que um google-fu não dê conta. 90% dessas informações acabam ficando fora do texto final mesmo…

  4. Fábio disse:

    Olá Shido, parabéns pela iniciativa achei muito interessante, sinceramente seu texto me surpreendeu positivamente. Achei o Lemurídeo suficientemente diferente de elfos, acho que isso não deve te preocupar.
    Quanto ao nariz, não vi grandes problemas, talvez se vc o fizer um pouco mais largo… não sou biólogo nem nada, mas em relação ao focinho, acho que só seria viável se a reça tivesse algum tipo de resquício da habilidade de faro ou algo assim.

  5. Arquimago disse:

    Gostei do resultado, na hora que bati os olhos me lembrou um elfo, mas só porque você tinha faldo no texto, olhando bem me lembrou mais o Nosferato do filme classico.
    E realmente lembra o fulhote(achei bem interessante, fofinho rsrsrsrsrs). Mas serio o trabalho foi bem executado e nunca tinha visto tanta dedicação, ou pelos tão fisica para com um universo de RPG!
    O focinho eu não sei… para mim focinho é narisde cachorro de bichos, cortado, molhado e quadrado, e costuma ter pelo externos. A foto não temosi sso, mas se a pela tiver pelos pode ficar bom, lembrando mesmo um morcego, algo mais bestial, focinhos são bestiais, mesmo nas gatinhas sexys poster de oficina… eu vejo assim.
    MAs colca um por cima e manda a imagem para ver mos quem sabe.
    Só o faça pequeno.
    Gostos de acombanhr o cenário! E de ver sua dedicãção.
    Fica um dica, escreva esses procedmentos e depos lance um livro, algo como “Romancia, por tras da cortina, a crição”( apesar que com esse titulo dá para fazer livros com outras coisas, como suplementos tradicionais), aposto que o publico e outros autores, ou donos de editoras iram se interessar!
    Abraços!

  6. Fábio, primeiramente obrigado e, seguindo, pensei no que disse sobre o focinho estar associado a faro (que inexiste no bloco de estatísticas da raça e nem é interessante incluir, visto que já foi meio russo deixar balanceado como está), e optei por manter o nariz no re-projeto, indo para menos comprido/mais largo.
    O re-projeto, aliás, vai partir direto do crânio do aye aye (http://www.glendale.edu/skull/aye-aye/left.htm), verticalizando um pouco — faz mais sentido que usar o potto ou o ring tailed, já que é o aye aye que é mais noturno, tem um vasto banco de imagens infantis (já que se quer neotenia) e ainda visão noturna (que os lemurídeos possuem em regras). Essa estrutura dá menos problemas na hora de definir o nariz.
    Arquimago, acabei por abandonar a hipótese do focinho — ao menos pros daoine/leanan sidhe, que se espera mais “humanizados”. Pros outros lemurídeos, acho que vou incluir, e com pêlos mesmo.
    Quanto a um livro com isso, é impossível. Pouquíssima gente se interessa por esses processos (como evidenciado aqui pelo tópico). Provavelmente eu venha a jogar isso num site ou coisa assim.

  7. Keldorl disse:

    Show!!
    Parabéns!!
    Me empolguei com o resultado final.

  8. Keldorl disse:

    Uma idéia interessante seria dar a eles a habilidade de mover a orelha para captar melhor os sons da direção desejada, como os lemures fazem e isso poderia se refletir em termos de jogo num bônus para escutar…
    Pensei isso vendo o vídeo que está no link do aye aye que vc postou.
    Abraço e continue com o bom trabalho.

  9. Oriebir disse:

    Shido, não desmereça seu trabalho. Ele está indo muito bem e este tipo de texto além de ser muito, MUITO legal (adoro os extras dos dvds! 😀 ) é instrutivo. Eu, por exemplo, como pretenso candidato a futuro autor de material, tenho a oportunidade de ver como é o processo de criativo de um outro autor.
    Isto, aliado às demais facilidades da internet pode facilitar uma troca de impressões bastante válida entre aqueles interessados (outros pretensos-pseudo-autores, como eu, ou apenas aquele mestre de campanha que está afim de sair do anão/elfo/humano), ou então pode inspirar outras pessoas que sempre tiveram uma boa idéia, mas que julgavam ser muito difícil “parar pra pensar” em tudo.
    Esta ‘desconstrução construtiva’ (Uia, me puxei agora!) é válida SIM!
    Parabéns e continue!

  10. Concordo contigo, Oriebir, esses textos de bastidores são bacanas (eu próprio já aprendi um truque ou dois com aqueles que o Cassaro às vezes liberava na DB).
    Mas como um livro independente ou coisa assim, não se presta — como tu mesmo disse, é um extra de DVD, o tipo de coisa que se presta melhor pra aparecer em revista (impressa ou virtual), website ou coisa assim.
    Se não vira picaretagem — como a Wizards cobrando por aquele “Wizards presents Races and Classes” (ou coisa assim), em que apenas apresentavam as classes e raças do (na época novo) D&D 4e e rolava algumas informações de bastidores.

  11. Hakma disse:

    Apesar de eu gostar de raças animalescas eu acho batido demais. O seu cenário como um todo está ótimo, mas acho que colocar homens-lêmures iria constrastar com o cenário. Tá certo que não seriam bem licantropos, mas realmente eu não achei mto bom.

    • Colega Hakma, primeiramente obrigado. Quanto ao, hã, “animalismo”, talvez essa impressão possa ter sido passada em virtude de a figura da reconstituição não estar mais no artigo (o link quebrou, pelo visto; preciso achar um lugar melhor para hospedar…), mas pode ser visto aqui: http://shidovicious.deviantart.com/art/Evolved-Lemur-115871792 . Os lemurídeos devem, em teoria, ser tão animalescos quanto um humano — com a diferença de traços mais “lemuróides” e menos “macacóides”, por assim dizer.
      Ainda assim, acabei por pegar um desgosto por essa tentativa, e estou trabalhando em outra, agora com uma relação mais harmônica da posição da testa e coisas assim. Animalescos mesmo só os katze/felinos.

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