Conto: Despertar

 
Dizem que há paz e serenidade na morte, que a transição é tranquila e suave…
Porém, são os vivos que o dizem!
Para ela, a morte era um sofrimento infinito…
Subjugada por diversas criaturas nefastas e asquerosas, lutava. Os insetos subiam por sua carne enquanto ela resistia. As baratas faziam cócegas enquanto escalavam sua panturrilha. Os vermes albinos cobriam sua pele com uma secreção virulenta. Centopeias e outros que ela desconhecia invadiam sua intimidade e seu corpo. Moscas zuniam ao seu redor e tentavam pousar em seus olhos e em sua boca. Adentravam em seu nariz, mordiam suas córneas e urravam em seus ouvidos. Ela queria gritar, mas estava sufocada pelos horrores que a invadiam.
Então veio a dor. Milhares de anzóis agarraram sua carne e a desfiaram. O sangue ferveu, evaporou e fugiu pela carne, que foi incapaz de contê-lo. Um rufar enlouquecido explodia em sua cabeça.
Ela havia ouvido que se vê uma luz no fim do túnel quando se está morrendo, por isso mesmo tinha certeza que fora mandada ao inferno. A luz que cauterizava suas retinas penetrava seu interior como fogo líquido. Os insetos se inflamaram e explodiram. O sofrimento era demais para suportar! Aos poucos, começou a ouvir um novo rufar, como se dois cavalos corressem, um mais depressa, mais voraz, e o outro, mais calmo, mais contido. Conforme a corrida alucinada acontecia, o cavalo contido passou a excitar-se. Crescia em fúria e suas batidas se tornavam cada vez mais frenéticas e selvagens. O primeiro foi se cansando. O rufar foi ficando cada vez mais lento, mais cansado, mais esgotado. E a dor era mais intensa que tudo. O ar em seu pulmão tornava-se água, que a afogava em dor e loucura.
Ansiava pelo fim. Entretanto, seu martírio foi interrompido repentinamente. A dor desapareceu, a luz se apagou.
Estava sozinha em todos os lugares e em lugar nenhum. Sentiu medo. Aquele era o fim? Estaria morta?
– Não ainda – uma voz, assustadora e profunda que cobria a tudo, se pronunciou. – Mas estará em breve.
– Eu não quero morrer… – ela conseguiu dizer entre sussurros.
– Não sou Deus para doar-lhe vida, minha criança – foi a resposta da Voz cavernosa. – Somos filhos da perdição, portanto, condenados à finitude. Contudo, posso oferecer-lhe uma alternativa. Jamais estarás viva novamente, criança, mas não serás tocada pela morte, se
aceitardes minha dádiva macabra. Sabei desde já: muitos consideram meu dom um fardo demais pesado para carregar – avisou a voz.
– Eu aceito – foi tudo o que conseguiu dizer.
Seus lábios foram forçados por algo duro e frio como mármore e então um líquido foi derramado em sua boca. Fosse o que fosse queimava como fogo líquido, e sua carne gritou de dor. Contrário ao sofrimento, um perfume inexplicável e perfeito tomou o seu ser, elevando-a ao paraíso. Era doce, saboroso e inebriante. O melhor dos vinhos, a melhor refeição, o cheiro de seu namorado e do doce favorito que sua mãe fazia especialmente para ela. Era um cheiro de lembranças e amores sublimes. Arrebatado pelo aroma de plenitude, seu corpo ainda queimava, mas a dor virara ardor. O prazer consumia cada célula de seu corpo. Sentia-se liquefazendo, queimando, congelando, tudo em perfeita sincronia e ao mesmo tempo, de maneira caótica e absoluta. Então seu corpo foi tragado para a terra e ela abriu os olhos, para contemplar a completa escuridão.
O negrume era total, assim como o silêncio. Somente seu olfato sentia o odor de terra revolvida e ferro. Ela tentou se mexer e percebeu que estava confinada, aprisionada numa caixa que não lhe permitia se mover. Esmagada pelo medo, passou a golpear a tampa. Fechou os punhos e rompeu a madeira tomada de uma força que não sabia possuir. Sentiu a terra cair e se deu conta que fora enterrada vida. Enlouquecida pelo pânico, se debateu e cavou até se libertar.
Tossiu e vomitou, mas nada saiu de seu estômago. Sentia o corpo feder. Fezes e urina empesteavam suas roupas. Ainda mais enojada, afastou-se da cova improvisada, que até há pouco a envolvia como um útero profano.
Ela olhou ao redor. Estava num estranho galpão. Paredes de blocos de concreto estendiam-se por quase dez metros de altura. O teto era de algum material transparente. Conseguiu ver o negrume da noite e suas parcas estrelas. O chão era de terra batida.
– Olá! Alguém aí? – sua voz saiu rouca e arranhou sua garganta como um felino se espreguiçando. Tentou ficar de pé, mas estava fraca e faminta. Um cheiro delicioso permeava o ar. Ela não sabia o que era, mas trazia à sua mente seus pratos e bebidas favoritos, todos de uma só vez. Confusa, olhou ao redor.
Estava num dos cantos do galpão. Uma parede fora erguida e somente uma pequena portinhola podia ser vista bem ao fundo. Não havia luz, mas a noite parecia incrivelmente clara. Colocou-se de pé e tentou entender como chegara ali.
Tudo o que conseguia se lembrar era que saíra com Lucia, sua melhor amiga, na noite anterior e bebera bastante. Estava triste com o fim do relacionamento com Jonatas seu noivo. Era esse o seu nome? Jonatas? Sim… achava que sim. Lembrava-se dele e tentou se lembrar quem ela mesma era. Seu nome veio-lhe à mente: Vilma. Sim, esse era seu nome, embora a desagradasse.
Olhou para o céu confusa. O cheiro de fezes ainda lhe provocava ânsia. Olhou para si mesma. As roupas da noite anterior estavam completamente imundas com seu próprio excremento. O gosto amargo do vômito veio à boca, mas não havia nada para ser expelido.
Olhou mais uma vez ao redor e viu uma pequena mesa de plástico. Sobre ela havia lenços umedecidos e roupas. Ela se aproximou e percebeu aterrorizada que eram roupas suas que estavam ali. Vilma viu um bilhete sobre os lenços. Pegou-o.
O papel era grosso, a caligrafia empregada era rebuscada e a tinta era escura, lembrando marrom. Quando ela moveu o papel, seu estômago revirou faminto. Um aroma que a encheu de prazer exalou da nota.
“Limpe-se. Vista-se. Siga pelo caminho. A ruína espreita ao amanhecer.”
Ela obedeceu à nota. Limpou-se com os lenços e colocou o vestido escolhido por seu captor, era uma peça exuberante: um longo vestido negro de veludo com um ousado decote nas costas e outro na frente. Colocou no pescoço uma joia saída de livros: uma peça magnífica, com um enorme rubi no centro guardado por dois dragões. A joia alojara-se entre seus seios médios. Ela seguiu pelo caminho. O traje parecia absorver a luz, assim como seus cabelos negros com mechas azuis. Ela olhou para os braços, que pareciam de marfim. Reluziam. Nunca se vira tão pálida.
O estômago torceu-se de fome mais uma vez.
Caminhou. Seus olhos escuros fitavam as paredes sólidas e o chão de terra, que pareciam intocados e imundos por vários anos. O aroma indiscernível e saboroso cada vez mais forte a assaltava e despertava seus desejos. Dava-lhe apetite e excitação simultaneamente. Pensou mais uma vez no namorado, em suas carícias, em seus beijos, e seu corpo reagiu com intensidade. Inspirou profundamente o cheiro. As emoções se fundiram num amálgama prazeroso e excruciante. Ela se focou no caminho.
Ela percorreu o caminho, sendo cada vez mais dominada pelo aroma que a preenchia com dor e prazer em igual intensidade. A curiosidade a moveu adiante e, numa sucessão de corredores em direções opostas, ela avançava pelo galpão. Quando suas pernas se firmaram, acelerou o passo.
Os corredores serpenteavam como um labirinto. Vilma achava que seu caminho não teria fim. O aroma enlouquecia seus sentidos e a fome esmagava suas entranhas, que se conflagravam em agonia. Era dominada pela sede, que bloqueava sua garganta e embaçava a visão. Suas pernas frouxas a enganavam e algumas vezes precisou se apoiar para não cair.
Finalmente, o labirinto terminou depois de mais uma porta e o restante do galpão se revelou. Vilma cobriu a boca para abafar o grito de horror.
Ao fundo, via uma grade que a trancava no local, porém o que a aterrorizava era a figura no centro do ambiente. Havia um homem aprisionado por correntes e estacas. Sem camisa e cheio de feridas pelo corpo, era mantido em pé pelas correntes. Vilma percebeu que o aroma delicioso vinha dele.
Ela se aproximou assustada e cuidadosa. Ele gemeu e Vilma o reconheceu: era Jonatas, seu noivo! Deixando toda a cautela de lado, correu até ele.
– Jonatas! Jonatas, o que aconteceu? – perguntou aflita. Ao se aproximar, o aroma assaltou-a de tal maneira que quase desmaiou. Sentia como se uma fera estivesse dentro dela arranhando e dilacerando suas entranhas tentando se libertar.
Jonatas gemeu aparvalhado e tentou olhar para a garota. Estava muito ferido, cheio de cortes pelo corpo e o sangue fluía vermelho e vívido.
Vermelho. Quente. Cheio de vida.
Exalando seu doce aroma.
O aroma!
O sangue de Jonatas era a fonte de todo o aroma.
Um véu desceu sobre seu raciocínio. Jonatas falava, mas ela não ouvia. Observava sua própria mão rubra pelo sangue do amante. Olhava para os dedos melados como se estivessem cobertos de chocolate. Aproximou-os do nariz e inspirou profundamente. Em seguida, levou o dedo aos lábios e lambeu. Suas papilas gustativas explodiram de prazer, enchendo todos os seus receptores neurais de um orgasmo intenso e avassalador. Ela curvou-se tomada de êxtase, como nunca sentira na vida. Nunca experimentara nada igual. Era sublime.
Passou a lamber os dedos freneticamente sem se dar conta do que estava fazendo. O sabor! O sabor a consumia. Tinha vontade de mastigar os próprios dedos, tamanha voracidade!
Queria mais! Ansiava por mais! Precisava de mais! Desejava-o por inteiro!
Voltou-se para o noivo. Tudo parecia mais claro, mais vivo, como se estivesse vendo através de um monitor e alguém aumentasse a saturação ao máximo. Todas as cores eram vívidas e pareciam emitir luz, mas nenhuma tinha tanta força como o vermelho ferroso do precioso sangue.
Num lampejo, ajoelhou-se e começou a lamber o corpo dele num frenesi luxurioso. Queria que ele a possuísse, ali mesmo. Queria mordê-lo, queria sugar todo o seu sangue delicioso.
– Vi, o que está fazendo?! – a voz de Jonatas finalmente foi percebida pela garota, que se afastou. Em um piscar de olhos, cruzara o cômodo. Cruzara uma distância de cinco metros num instante.
– O que está acontecendo comigo? – perguntou em voz alta, aterrorizada. Um vento frio soprou vindo das grades, e ela viu um pesadelo vivo se arrastando em sua direção.
Era uma massa de insetos e roedores, todos se arrastando como um único ser. A massa grotesca ficou de pé e tinha mais de dois metros de altura. Sua forma era humanoide e parecia saída de pesadelos. Quando falou, o som era gutural, formado por guinchos de roedores e zunidos de insetos.
– És uma filha das trevas agora, Vilma. Recebestes de mim a dádiva da eternidade, mas ela tem um preço! Creio que já percebestes o que deves fazer. Esse mortal é teu alimento. Considera-o o último passo para abandonar tua vida anterior. Dê fim agora à agonia do mortal e sacie tua sede. Bebe do mortal e abraça tua nova vida. Mas cabe, contudo, um alerta: anda depressa, pois o sol não tarda a raiar e somos criaturas da noite. A luz do astro rei nos é fatal.
– Por favor, me deixe sair daqui – ela implorou.
– Nada te impede, exceto ti mesma. Vê as grades a tua frente? O sangue deste mortal dar-te-á forças para dobrá-las. Bebe e vem comigo. Tua nova vida te espera.
– Eu não farei isso! – bradou desesperada. Os guinchos se tornaram furiosos.
– Então perecerás! – a Voz ralhou furiosa.
Vilma tentava se recompor, mas o medo a tomava. Ajoelhou-se no chão chorando e levou as mãos aos ouvidos.
Aos poucos começou a ouvir tambores, como cascos de cavalos. Ela prestou atenção, tentando descobrir de onde vinha aquele som, que, por alguma razão, a acalmava. Caminhou até o som e percebeu que ele vinha de Jonatas. Ela abriu os olhos e compreendeu: o som era o coração do noivo.
O aroma mais uma vez a preencheu. Os guinchos pararam. Somente o coração de Jonatas rufava alto.
TUM TUM
TUM TUM
TUM TUM
O céu começava a assumir tonalidades anis e lilases, com toques de laranja. Tudo era tão rico, tão vivo.
TUM TUM
Agora Vilma sentia os aromas separados. Sentia o suor, o cheiro da terra, o fedor azedo do esgoto vindo dos roedores e o perfume ferroso e soberano do sangue.
TUM TUM
O sol ainda não despontara no horizonte. Levaria pelo menos mais uma hora para surgir, mas sua fraca luminescência ardia, como se estivesse em pleno verão.
TUM TUM
Ela fechou os olhos. Estava cansada, faminta, sedenta.
TUM TUM
Quando abriu os olhos, sabia que estava chorando. Jonatas a olhou.
– Seus olhos… Eles estão sangrando… – choramingou e ela o abraçou.
TUM TUM
– Shhh – sussurrou. Vai acabar logo, meu amor – sussurrou. O homem apoiou a cabeça em seu rosto, beijou os riachos rubros que corriam por sua face.
TUM TUM
Seus lábios se encontraram em um beijo salgado e cheio de lágrimas.
TUM TUM
Ela beijou o pescoço de Jonatas e o êxtase a consumiu.
TUM TUM
Suas presas surgiram involuntariamente. Ela mordeu e o líquido fluiu para seu interior.
TUM TUM
Foi como se sua língua se enchesse de chamas. O prazer intenso a consumiu. O líquido desceu por sua garganta e espalhou-se por seu corpo como uma onda de choque e orgasmo. E se repetiu a cada gole. Ela tentava parar, mas não conseguia.
TUM TUM
O rufar explodia seus tímpanos. Era divino. Era profano.
TUM TUM TUM
Outra batida passou a acompanhar o ritmado, e ela percebeu que era seu próprio coração ansiando por vida. Era sublime.
TUM TUM TUMTUM
O prazer a invadia a cada gole. Estavam unidos. Estavam completos. Eram um só. E assim permaneceriam por toda a eternidade.
Tum tum
Ela o amava e nunca o amara tanto. Sentia seus medos, seus desejos, seus sonhos… Eles estariam sempre unidos.
tum…
– Seja bem-vinda, Filha das Trevas – a voz de guinchos falou. Fez-se silêncio. Ela se afastou extasiada e apaixonada. Olhou o amado nos olhos cheia de cumplicidade.
Ele olhava o vazio, sua pele branca e seca, os olhos baços. O coração, silencioso…
Um silencio que a dominara, e a esmagara.
– Não… sussurrou.
– Vamos – a voz comandou. Ela não se moveu. Abraçou o amado ainda mais forte, quase partindo-o.
– Venha! Agora! – a voz rugiu. Ela colocou-se de pé. A mente e o coração estavam vazios de vida e alegria, mas o corpo exultava frenético com o sangue do amado. Ela caminhou. Cada passo era um martírio eterno. Nunca se sentira tão plena, mas sua alma agora estava vazia.
Então houve um espasmo. O corpo de Jonatas tremeu. Ela se virou para trás, vendo os últimos impulsos moverem o corpo morto do amado. O corpo convulsionou-se duas vezes, como se acertado por um choque. O rapaz abriu os olhos. Sentou puxando o ar ansioso e gritou.
Sua voz sem vida ecoou pelo galpão e só os mortos puderam ouvir.
 
Imagem de capa – T.C. Oaks

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