Conto: Jazz After Midnight
Desde quando sou capaz de me lembrar, sempre fui apaixonado pelo Japão e a cultura japonesa. Amo sushi e saquê. Escrevo haicais eventualmente. Adoro assistir vídeos e competições de artes marciais, e até aprendi as regras básicas do beisebol. O Japão domina mesmo resto dos meus gostos pessoais, desde a música da Carmen Maki e Yoko Kano até os livros do Yasunori Kawabata e Haruki Murakami, e mesmo, vá lá, do Kazuo Ishiguro, ainda que ele seja mais inglês do que japonês. Talvez a principal exceção nesse quesito seja o jazz, que aprendi a apreciar e a amar depois adulto, mas mesmo ele provavelmente se deva muito mais à curiosidade despertada após vê-lo descrito com tanta paixão nas histórias de Murakami-sama. Acho que foram os anos assistindo desenhos animados e lendo histórias em quadrinhos, ou talvez as horas perdidas nos videogames vindos de lá, não sei. Não sou descendente de imigrantes nem tive amigos que fossem na minha infância e adolescência. Como não achar que há algo do Jaspion e dos Cavaleiros do Zodíaco aí no meio?
Por isso, desde que me tornei independente e com uma fonte de renda que me permitisse alguns luxos, transformei em um ritual pessoal viajar até o país pelo menos uma vez por ano ou a cada dois anos. Começou, é claro, como simples turismo: após algum tempo economizando, juntei dinheiro para passar cerca de uma semana em Tóquio durante um período de férias. Conheci os principais pontos da cidade – a Torre de Tóquio, o Palácio Imperial, o Templo Meiji, além, é claro, de Akibahara -, mas não me senti satisfeito. Dois anos depois estava de volta, e desde então, sempre que possível, ou quando o stress por aqui ficava insuportável, eu comprava uma passagem aérea e ia passar alguns dias do outro lado do planeta.
É claro, uma cidade só tem tanto de novidades a oferecer a um visitante tão frequente. Mesmo um país, na verdade, ainda mais um de dimensões tão reduzidas. Mas não me interessava conhecer outros lugares; nunca fui um entusiasta do turismo pelo turismo, de gastar horas sem fim em aeroportos apenas para conhecer culturas exóticas e locais exuberantes. Só o Japão me interessava. Era algo no ar, ou nas pessoas, ou talvez no chão mesmo, que me despertava a vontade de voltar e voltar e voltar ainda outra vez.
Não foi o fato de ter conhecido todos os principais pontos turísticos do país, assim, que me fez parar de visitá-lo. Bem pelo contrário, na verdade: conhecê-lo tão bem reforçava a minha vontade de voltar, de revê-lo e senti-lo novamente. Se não haviam mais lugares a visitar, ainda havia a simples vida das ruas, a energia que emanava dos transeuntes e dos prédios e dos ideogramas luminosos nas placas de lojas e restaurantes.
Gostava de sair dos hotéis onde me hospedava sem um rumo definido e apenas vagar aleatoriamente pelas redondezas. Não me preocupava sequer em marcar o caminho que fazia, apenas dobrando aleatoriamente em ruas, dando voltas e voltas ao redor dos quarteirões. Outras vezes perseguia pessoas aleatórias, apenas para ver onde elas me levavam. Quando decidia retornar, bastava chamar um táxi e dar o endereço e pontos de referência – o idioma, depois de tanto tempo, certamente já não era mais problema. Aos poucos comecei também a aumentar o perímetro destas minhas andanças, me afastando cada vez mais do meu ponto de origem.
O resultado desta brincadeira foi que todo um Japão diferente começou a se revelar para mim. Ruas estreitas, prédios sujos, lojinhas de esquina; ao que parece, mesmo um país de primeiro mundo possui o seu lado pobre e sombrio, que não é exposto em guias de viagens. Se havia um pouco de medo em andar por lugares assim, também havia uma emoção particular em desbravá-los e descobrir um país que se ocultava aos demais visitantes.
Certa vez, comecei a perseguir uma moça que andava pelo centro de Tóquio. Ela se destacava com facilidade na multidão por ser mais alta que as mulheres ao redor, vestindo algo como uma versão moderna de um quimono da época dos xogunatos; por mais que não destoasse das vestimentas modernas que a rodeavam, evocava também uma certa aura de magia e mistério, como um brilho místico que emanava das suas estampas de flores e dragões. Seus cabelos eram longos e escuros como a noite, e terminavam próximos aos quadris modelados pelo vestido, balançando como um pêndulo de hipnotismo.
Ela passou por mim e eu fui fisgado por esse balanço, puxado como um peixe em um anzol através de ruas e avenidas. Mais do que na sua atração sobre mim, havia algo de mágico no seu próprio caminhar: os sinais estavam sempre verdes, ou, quando não estavam, eram as ruas que estavam vazias, e as pessoas desviavam do seu caminho antes que ela precisasse fazê-lo. Nada parecia capaz de interrompê-la. Eu, por outro lado, não tinha tanta sorte: esbarrava em transeuntes, e quase fui atropelado ao menos três vezes. Mesmo assim, não conseguia perdê-la de vista. Se era forçado a desviar o olhar por algum motivo, ela sempre estava lá quando retornava-o na sua direção.
Quando dei por mim estava em uma parte desconhecida da cidade, em uma rua da qual nunca ouvira falar, em um bairro que não me parecia de qualquer forma familiar. O local era mal-iluminado – sequer havia percebido que já era noite -, e parecia haver poeira por todos os cantos. Na minha frente estava um par de portas deslizantes tradicionais de bambu e papel de arroz, sob um grande letreiro luminoso com os ideogramas ????. Kappa Bar. Sem parecer ter outra opção, entrei.
O lado de dentro era melhor iluminado e preenchido por diversas mesas redondas ocupadas pelos clientes, com eventuais vasos de plantas para completar a decoração. Eu era o único gaijin, aparentemente. Em um palco pequeno na outra extremidade um quarteto de saxofone, contrabaixo, piano e bateria tocava standards de jazz; Take the A Train estava terminando quando eu entrei, e logo já começavam St. James Infirmary.
Com alguma relutância, escolhi uma mesa vazia e me sentei. Pedi um drinque com saquê e uma porção de tempura a um garçom tão pequeno que parecia ser mesmo uma criança. Em seguida, comecei a olhar ao meu redor em busca de sinais da mulher que me trouxe até aqui. Não a encontrei em nenhuma mesa.
Decidi relaxar e apenas aproveitar o ambiente. A banda era bastante boa, assim como a comida. Quando reconheci as primeiras notas de Round Midnight, chequei meu relógio: além de bons, eram também pontuais. Acompanhei a execução da música, uma das minhas favoritas, balançando a cabeça e batendo os pés no chão no ritmo dos acordes. Chamei o garçom e pedi outra bebida. Por um instante achei estar sendo observado, mas, ao virar o rosto, tudo o que vi foi a parede de bambu e papel que estava ao lado da minha mesa.
A música seguinte foi Sophisticated Lady. Não havia como esquecê-la: além de tocada com uma maestria incomum, como se o próprio Duke Ellington tivesse descido dos céus para regê-la, bastou os primeiros acordes ressoarem pelo salão para que uma salva de palmas se espalhasse por todas as mesas. Uma mulher caminhava por entre elas em direção ao palco, então subiu e posicionou-se à frente da banda. Sim, era ela: a mesma que havia me hipnotizado na rua e trazido até o bar. Pude reparar com mais atenção as suas feições agora que a via de frente, a pele pálida como arroz, os traços delicados como se pincelados com nanquim. Seu rosto arredondado era modelado com um queixo fino, dando por vezes, se olhado por um ângulo específico, uma impressão de profundidade, como se eu estivesse olhando para o focinho de uma raposa.
Ela acompanhou em silêncio o fim da música, apenas balançando o corpo suavemente no seu ritmo, e então aproximou os lábios do microfone à sua frente, tocando-o com delicadeza. Quando a voz saiu, tinha a potência de uma onda quebrando na costa, uma força da natureza que invadia o mundo dos mortais.
– Once I lived the life of a millionaire…
Foi um choque: a sua aparência frágil em nada sugeria o vigor bruto que eu sentia ao ouvi-la. A força da sua voz me fazia até mesmo ignorar a sua beleza; eu fechava os olhos e me imaginava ouvindo a própria Bessie Smith ressucitada. Pela segunda vez me sentia hipnotizado, agora pela audição.
O set vocal foi pequeno, com apenas três músicas. Ao fim delas, acompanhada pelos olhares de todos os presentes, ela desceu do palco e voltou a caminhar pelo salão. Senti um calafrio percorrer a minha espinha: ela mantinha os olhos fixos nos meus, vindo devagar em direção à minha mesa.
Sentou-se ao meu lado sem pedir permissão, e sem que precisasse pedir um garçom colocou um drinque à sua frente. A banda voltara a tocar, alguma faixa do Kind of Blue do Miles Davis. Um turbilhão de coisas passava pela minha mente: lembrava da perseguição no centro, os seus quadris balançando, a entrada no bar, os olhos dos outros clientes virando-se na minha direção. Senti meu rosto enrubescer, sem saber o que ela diria a respeito. Quando falou alguma coisa, no entanto, parecia estar alheia a tudo isso.
– Gostou da apresentação?
Demorei alguns segundos para responder, o que não pareceu surpreendê-la. Balbuciei que sim com alguma dificuldade. Ela então tomou um gole da sua bebida e seguiu falando sobre a qualidade dos músicos, a acústica do salão, a execução de standards famosos. Eu balançava a cabeça eventualmente, e de vez em quando dava alguma resposta monossilábica apenas para continuar a conversa.
Não sei exatamente quando percebi que havia alguma coisa… Diferente naquele bar. Em algum momento, entre um comentário sobre a vida pessoal de Charlie Parker e um sobre os improvisos dissonantes do Thelonious Monk, eu me virei rapidamente para o palco e percebi que não haviam músicos sobre ele. Mas a música continuava a ser tocada – os instrumentos simplesmente o faziam sozinhos! O saxofone flutuava enquanto cantava as suas notas, e o contrabaixo vibrava as suas cordas sem que ninguém as tocasse. As teclas do piano se moviam sozinhas, da mesma forma que os pratos e tambores da bateria.
Olhei para o meu copo, me perguntando o quanto já havia bebido, mas a verdade é que não me sentia embriagado. Aos poucos, comecei a perceber os tipos que ocupavam as mesas ao meu redor: logo ao meu lado uma moça com duas bocas, uma delas no lado de trás da cabeça, no meio dos seus cabelos, devorava um combinado de sushi e sashimi; um grande pescoço se contorcia por trás dos clientes, terminando em uma cabeça que roubava batatas fritas de uma mesa vários metros distantes de onde estava o corpo da sua dona; um menino de um olho só molhava os lábios com um língua enorme, enquanto olhava com um sorriso assustador para um prato de torta de chocolate na sua frente.
Olhei para os vasos que decoravam o ambiente, e percebi que as plantas tinham frutos que pareciam cabeças humanas. Os quadrados de papel nas paredes de bambu tinham olhos que observavam tudo o que acontecia no salão. Em algum momento eu me desculpei com a minha acompanhante e disse que precisava ir ao banheiro; chegando lá, no entanto, dei de cara com um menino assustador de pele vermelha e apenas um dedo em cada pé. Dei meia-volta e resolvi voltar para minha mesa, mas no caminho acabei pisando sem querer em uma das caudas de um gato que se apoiava sobre duas patas em frente ao balcão do bar. Ele soltou um grito e eu tentei me desculpar, mas antes que percebesse já estava recebendo uma chuva de tapas das suas patas dianteiras.
Quando retornei encontrei a cantora conversando com o garçom, que só então reparei ter pele esverdeada e escamosa, com uma espécie de casco sobre as costas e um rosto alongado e reptiliano. Ela me disse que a conta estava paga e um táxi nos esperava do lado de fora. Consenti, e não questionei quando ela entrou comigo no carro e me acompanhou até o hotel.
Logo que entramos no meu quarto ela me jogou sobre a cama e começou a se despir. Não sei se era a minha imaginação ainda em choque pregando peças, mas na sua silhueta na escuridão eu podia jurar ver um par de caudas sendo soltas quando ela se desfez das peças inferiores. Só sei que ela veio por cima de mim e começou a morder o meu ombro suavemente com seus dentes afiados. Pouco depois eu me virei e fiquei sobre ela, deixando-a me abraçar e arranhar com unhas que pareciam garras. Seus gemidos soavam de alguma forma como uivos para o luar.
Acordei na manhã seguinte me sentindo cansado e fraco. Não havia qualquer sinal dela pelo quarto, exceto por uma profusão de pelos finos sobre a cama. Ao checar no espelho, ainda podia ver as marcas de onde ela me arranhara e mordera na noite anterior.
Gastei o resto da viagem procurando aquele bar. Tentei refazer meus passos, lembrar de pontos de referência, até perguntar para nativos se o conheciam, mas nenhum jamais ouvira falar dele. Outras vezes apenas caminhava sem rumo pelo centro de Tóquio, esperando que a mesma mágica que me fez encontrá-la daquela vez acontecesse novamente.
Voltei para casa. Retomei minha rotina. Isso foi há… Dois anos? Três? Por algum motivo, no entanto, não tive coragem de retornar ao Japão desde então. Mais de uma vez busquei uma passagem na internet, mas sempre no último instante algo me fazia fechar o navegador sem completar a compra. Era como se tivesse perdido algo naquele dia – algo que, mais do que me fazer falta e motivasse a minha busca, na verdade me enchia de medo de ser recuperado.
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