Amor-e-ódio pela tecnofantasia

A publicação de Numenera, novo jogo de Monte Cook, reavivou um velho dilema para mim: qual o lugar da tecnofantasia no imaginário nerd-rpgístico de hoje?
Estou aqui escrevendo uma história maluca sobre viagens no tempo, cidades de metal e dragões e decidi pensar com vocês no tópico.
Crescemos (os filhos dos anos 1980, pra começar) assistindo coisas como He-Man, Thundercats e Flash Gordon (abraços, Mara Maravilha!). Os heróis estavam lá, intercalando lasers e espadas e aquilo era fantástico. Star Wars veio e tornou-se popular como Star Trek não conseguiu (minha teoria, você pode discordar). Um mundo de séries japonesas da família Jaspion e uma era inteira de Herculóides e Inumanoids (saudade) levou as crianças daquela geração a naturalizar o casamento entre magia, aventura e naves espaciais ou armaduras avançadas.
Mas, desde a publicação de D&D o Brasil RPGista viu uma rejeição (um raro aproveitamento, pelo menos) por tudo aquilo que lembrava ciência. A fantasia de ação tomou o reino do pensamento nos jogos de interpretação, só ganhando rival com os jogos de “horror” (como Vampiro e Lobisomem), que todo mundo sabe eram jogos de fantasia de ação disfarçados.
Calma, calma. Sei que não é tão simples. Mas começa simples.
A paixão desperta pelos desdobramentos de D&D e World of Darkness/Storyteller virou febre, enquanto o outro rival, GURPS, foi morrendo de fome. E GURPS mesmo, o Poseidon dos RPGs iniciais (aquele que é poderoso e bacanudo, mas que é sempre o terceiro grande deus lembrado) tinha na fantasia seu maior poder. Os jogos de ficção científica vinham em segundo, talvez (e estou falando mais de impressão qualitativa, de um ávido de leitor das antigas revistas vendidas aqui, que de estatística).
Mas a tecnofantasia não estava lá.
As séries A Princesa de Marte e Darkover são ainda o melhor exemplo do gênero, que conta também com Duna e, talvez, Conan e os contos de Lovecraft. Falo de histórias de aventura onde o mistério, o poder e o fantástico tinham aquela pitada de ciência impossível e espetacular. Mas onde elas estão no RPG brasileiro?
3D&T e Daemon, tentaram. E conseguiram, em vários graus. 3D&T Megaman e o próprio Manual Vermelho do Jogo tinham todo um clima de mistura que respeita esse espírito de John Carter. Do mesmo modo, Invasão (em sua segunda edição) transitava bem entre a ficção científica e a fantasia aventuresca com robõs (mas aqui estou forçando um pouco o lastro). Há mais tentativas, todas feitas por pequenos tentadores: Ópera (um sistema genérico próprio para a mistura), Mago: a Ascensão (que entra graças a seu teor filosófico e graças ao meu amor por ele)…
Há uma única contraprova (cujo desaparecimento ainda me entristece): Shadowrun. Um jogo tão brilhante que é injusto que não ganhe (mais a frente) um artigo só pra ele, nesta minha aventura de pensar o tema. Mas Shadowrun foi deixado de lado e isso é doloroso de muitos modos.
A era explosiva do d20 não seguiu o caminho. Dos mundos traduzidos para D&D não havia um único neste espírito (e Eberron, o mais próximo disso ficou no limbo). Não é curioso que um gênero tão popular em outros contextos não entre no mundo dos dados?
“São coisas que não casam bem” é um argumento que ouço muito, até em minhas mesas. Não entendo bem o que ele quer dizer, uma vez que Munn-Ha grita em meu inconsciente em meio a cenas com um tanque e tiros de raios. Não me convenço bem da ideia, porque os Jedi continuam vencendo em minha cabeça, cada luta.
Lembro das várias iniciativas híbridas da turma da primeira Dragão Brasil. Lembro de bioarmaduras, de resenhas de Spelljammer, de Cainitech (cuja recepção foi… dura). O teor poderoso da mistura estava lá, em iniciativas criativas teimosas e artesanais. Por que ele nunca vingou nas publicações maiores?
Minha teoria segue para o tema “desinteresse pela ciência”, passando pela sacralidade dada ao fantástico a lá Tolkien. O problema é que ambas as respostas falham. A primeira fala de algo estranho, porque antes e hoje a ciência sempre foi parte dos debates sobre realismo no RPG – sem falar que, a tecnofantasia não é, exatamente, sobre ciência. A segunda morre no que muita gente tem dificuldade de aceitar: não temos um RPG tolkeano.
Resta a resposta mais pobre: o medo da galhofa. As histórias tecnofantásticas surgiram em um contexto mais ingênuo, mais pulp e menos preocupado. Há uma chance de parte do público que gosta de seriedade recusar essa alma de bravatas e hibridações malucas. É estranho, mas é um palpite. Um palpite insistente.
E você, o que acha? Por que diabos não temos histórias sobre planetas onde cavaleiros atiram com pistolas e onde monstros terríveis nadam pelo espaço atrás de naves prateadas?
 
 
P.S.: A imagem usada no artigo é um uso descarado de Frank Frazetta. Todos os direitos e louvores e abraços aos donos dela.
 

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27 Resultados

  1. Lanço de volta a pergunta dando um outro contexto: num mercado cada vez mais fácil de se publicar, porque você não lança um jogo de tecnofantasia?
    BTW, dois comentários, 1. tu esqueceu de citar o Crônicas da Sétima Lua, sei que a história por trás do lançamento dá vontade de esquecer do cenário, mas conta como tecnofantasia. 2. tu podia definir melhor o que é tecnofantasia pra ti, porque quando tu cita Conan como um possível exemplo do gênero, fico confuso.

    • Mário Castro disse:

      Porque acho que esse negócio de “por que você não lança” não fala sobre nosso mercado profissional (no que ele existe ou existiu) Não estou falando do futuro, entende? Mas tentando entender um processo, as lacunas nele, ao longo dos anos. Todo o respeito aos indies, mas eles são ainda mais nicho e eu estava tentando pensar, principalmente, sobre as grandes editoras ou sobre as grandes marcas até aqui, mesmo.
      Conan entrou forçado, sim, unicamente pelas referências a alienígenas e pelo teor pseudo-antropológico que Howard tenta dar a Era Hiboriana.
      Bem lembrado do Crônicas. Realmente, a polêmica em torno da publicação me deixou resistente. Eu o comprei, na época, até, antes de saber algumas coisas. Eu até soube do projeto original, que falava de deuses caídos de uma nave. E fiquei tentando entender, num debate de fórum, porque as pessoas diziam “caramba, que ideia horrível! Ainda bem tiraram essa parte!”. É isso que quero entender, além do mercado. O que há de errado na mistura?
      Agradeço a sacudida.

      • Certo, entendi então, lendo o artigo me soou como se você estivesse se perguntando porque não temos mais jogos de teor tecnofantasy.
        O que, aliás, acho que não acontece. Além do já citado Crônicas da Sétima Lua, tem também os Reinos de Ferro, com seus gigantes movidos a vapor e magia e magos de combate com armaduras com chaminés. E mesmo Tormenta carrega alguns elementos ali no meio: engenhoqueiros goblins, robô gigante do Mestre Arsenal, o Povo das Torres lá nos Reinos de Moreania.
        E sobre rolar uma resistência em comentários de fóruns às vezes, é preciso lembrar que Tormenta tem um tópico de seiscentas páginas de gente falando mal do cenário num fórum, e ele ainda é o mais vendido do Brasil. Reinos de Ferro é tecnofantasy e é um dos cenários mais amados da era d20, então me parece meio óbvio que não tem nada de errado com a mistura.

  2. Mário Castro disse:

    Reinos de Ferro entra mesmo na conta e é uma ilha boa. Mas foi esquecido, não foi? (Admita, foi).
    Agora… Tormenta? hmmm… Ele tem sim elementos do gênero, porque sempre teve gente ali, como o próprio Cassaro, que é fã declarado da mistura. Mas o canon do cenário foge deles (os robõs gigantes sumiram, certo?). E as histórias não são sobre eles, acho. Ainda que a ideia de invasão case.
    Não acho tão óbvio assim essa aceitação. Ao contrário. Talvez porque vejo comentários diferentes e mais ácidos quanto a qualidade de tudo que contém elementos “estranhos” à fantasia padrão (que é mais MMO que Tolkien, até).
    Acho válido debater sobre o ponto, portanto.

    • Esquecido o Reinos de Ferro não foi. Só entrou em hiato porque a própria editora nos EUA deixou de lançar coisas pra ele durante um bom tempo por se dedicar ao jogo de miniaturas. E mesmo com esse hiato, se trata de um cenário tecnofantasy com nove livros lançados em português, dez se contar as duas edições d’A Mais Longa das Noites, apenas um pouco menos que Tormenta.
      Aliás, tocando em Tormenta, pô, tu considera Conan porque tem um ou outro elemento que aparece de vez em quando nas histórias, mas não vai considerar Tormenta porque faz exatamente a mesma coisa?
      Agora, sobre os comentários ácidos, de novo: acidez na internet é igual água salgada no oceano. E, mais importante, não tem nada a ver com aceitação ou não de um gênero. Quer saber como é a aceitação de algo, veja quão bem sucedido comercialmente ele é, não quantos trolls de fórum de internet gostam dele. Trolls de fórum de internet não gostam de nada. Nem um dos outros eles gostam, vide brigas intermináveis por qualquer merda.

  3. Leo Lima disse:

    E o Space Dragon? Aliás até o próprio Old Dragon de forma mais sútil com seu bestiário cheio criaturas alienígenas e menções a estranhas tecnologias. A próxima aventura clássica (CL3) do OD vai trazer ainda mais diretamente esses elementos, como acontecia bastante em AD&D.

    • Mário Castro disse:

      Duas excelentes citações. As Crias Estelares e o modo como OD trata os clérigos (homens com poder dado por “criaturas ou entidades” já é o bastante para trazê-lo para o campo, um pouco. Mas, como em Tormenta ou Conan: uma coisa é ter elementos, outra é ter isso como centro.
      Space Dragon já entra MUITO mais nesse mundo e é uma ideia fantástica.
      Perceba que não citei os dois porque estava com os anos 1990 na cabeça, mesmo (quando o RPG explodiu). Jogo OD justamente nessa pegada (intercalando com sessões de FATE).
      Mas você tem razão quando diz que existem sim coisas aparecendo, Léo. Só continuo matutando que elas são ilhas num mar de fantasia sem naves. Mas estou ponderando aqui.
      Abraço.

  4. Valberto disse:

    Fantástico. Um ótimo artigo sobre o assunto. Muito bom mesmo com ponderações justas e empolgantes.

  5. hackbarth disse:

    Cainitech não foi mal recebido por que era technofantasia, foi mal recebido por que era uma ideia ruim mesmo.
    Amei as referências à John Carter e os Livros de Marte de ERB. Um dos melhores cenários de pura tecnofantasia!

  6. BURP disse:

    Ah, eu adoro tecnofantasy. Fruto de uma infância assistindo He-Man e Capitão Harlock e a Nave Arcádia e uma adolescência jogando Final Fantasy. Aliás, acho que um pouco da rejeição que existe a esse gênero cabe também naquele conflito que se inventou de RPGistas tradicionalistas X otakus / jogadores “estilo anime.” De um jeito ou de outro, ela é muito identificada com esse público, porque é um gênero muito comum em jogos e séries animadas de origem japonesa. Até os RPGs de lá abusam muito disso – procura os meus textos do Tenra Bansho adaptados aqui pra 3D&T se quiser uma prova.

    • Mário Castro disse:

      Totalmente de acordo que há um parentesco tecnofantástico no estilo japonês. Não há como negar. E realmente isso os colocou, muitas vezes, dentro de uma esfera de preconceito bobo e insistente.

  7. BURP disse:

    Aliás, recomendo que leia Saga, HQ do Brian K. Vaughan. Tem a resenha que eu fiz aqui no blog mesmo não faz muito tempo. Tecnofantasia espacial da melhor qualidade.

  8. Demian disse:

    Ótimo artigo meu caro. Bom você incluir Conan. Além de seres alienígenas, nunca me esqueci de uma história em que ele enfrenta uma monstro colossal, que na verdade é mecânico e carrega dentro de si uma cidade.
    Acho que a premissa ainda é válida, tecnofantasia não é assumida na maioria dos RPGs citados. Só o Numenera “soltou a franga” e embarcou no gênero assumidamente.
    Reinos de Ferro é mais fantasia com encontrando tecnologia steampunk. Tudo bem ele coloca coisas como sistema solar do mundo de fantasia e referências ao espaço sideral, onde parte dos templos de Cyriss se localizam. Mas isso nunca foi o foco do jogo, fica por conta do narrador explorar a deixa.
    Boa relembrar a má recepção de Cainitech. Desde aquela época até hoje, dogmas no RPG continuam sendo de matar…

  9. Alexandre disse:

    Olha, eu posso dizer que a linha entre ficção científica e tecnofantasia pode ser muito, muito, tênue. Eu citei Patrulha Estelar como uma das influências da Brigada Ligeira Estelar. Mas olhando bem, patrulha estelar, na versão original, flertava muito com a fantasia, com suas deusas espaciais cujos espíritos se projetam pelo espaço – ele tinha um forte componente místico e religioso (e acredito que esse tenha sido o motivo pelo qual ele pegou no Brasil). Os Newtypes em Gundam, que se conectam ao espaço, em tese são ficção científica, mas quando morrem e deixam fantasmas circulando por aí após suas mortes, começamos a pisar em um terreno um tanto espírita. A lista é enorme, mas se tratarmos todo elemento mais fantástico em um cenário de ficção científica como fantasia, acabaremos limitando a FC à sua versão hard… e pessoalmente eu acho FC Hard um gênero que não desce para todo mundo e que pode ser um porre em mãos menos habilidosas. :\

  10. Mário Castro disse:

    Referências excelentes que vão exatamente na ótica do que penso. Lembra-se também de Outlanders, séria de mangá de Johji Manabe?
    Valeu pelo comentário, Alexandre. 🙂

  11. Alexandre disse:

    Claro que lembro! Outlanders é um dos mangás mais legais e menos lembrados de seu tempo!
    E obviamente, para quem considera que toda ficção científica depende da sua relação com a ciência, é de arrepiar os cabelos. XD
    Eu vou dizer apenas: muitos dizem que a ficção científica é a fantasia do possível. Eu diria que ela é a fantasia do PLAUSÍVEL. O que é bem diferente. 😉

  12. Targos disse:

    Lendo esse post deu uma nostalgia de quando jogava Spelljammer

  13. André disse:

    Também ouve um, que tbm não deu certo,chamado Gaia 4000x (se não me engano).Foi lançado em uma DB, a muito tempo atrás, e era pequeno,mas bastante interessante

  14. Rafael disse:

    Muito interessante o artigo, vejo da mesma forma a dificuldade que temos para encontrar quem aceite o gênero. Tenho até dificuldade para recriá-lo. Eu e meu grupo criamos um sistema e adaptei para ele Rokugan, só que queria jogar com um cenário tecno fantástico, tipo Afrosamurai ou samurai 7. Porém, vejo uma grande dificuldade, por incrível que pareça, da minha parte, para conseguir adaptar isso. Aberto a sugestões.

    • Mário Castro disse:

      Afro Samurai é uma das melhores coisas dos últimos anos. 😛
      Particularmente prefiro sistemas genéricos para tudo. Eles tem a propriedade de entender os elementos do jogo de modo semelhante. Por exemplo, veja Daemon ou GURPS ou 3D&T. Cada um mistura elementos de ambas as fontes e os trata de modo igual (espadas mágicas ou espadas energia, são diferentes?). O próprio D&D incluia armas de raios na listagem (Livro do Mestre). E, bem, elas não eram muito diferentes (além de um dano maior).
      Gosto ainda mais de Mutantes e Malfeitores e, ultimamente, do FATE para mestrar. Mas, penso, que qualquer sistema funciona – quando a destrava imaginativa está operando. 🙂

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