O Espadachim de Carvão ou Sobre espadas e medos [resenha]
“No princípio… ”
Livros de fantasia e ficção especulativa em geral são subestimados, pra caramba. Eles representam um desafio de diálogo com elementos comunicativos de alto nível: a metáfora, a representação ou ainda, que seja, uma rede de influências culturais que podem remontar a textos bílbicos (no caso de um Saramago) a a intricada jogatina simbólica da terrivelmente mal-nomeada “cultura pop” dos anos 1980 para cá (no caso de um Ernest Cline). É nessas condições que, honestamente, entendo a literatura do tipo como um vão por onde se observar o mundo dos diálogos de incontáveis tribos modernas. Eis minha condição de introdução a qualquer exame do fantástico literário: uma conversa franca com os intentos, aspirações e inquietações de uma penca de grupos geracionais que, junto com ele, acabam relegados a simplismos injustos.
Sigo também a premissa de que uma resenha plena é uma descrição da experiência de leitura – somos animais de vivências e analisar “friamente” é um exercício até chato, se você observar bem a prática da prática. Dito isso, trago hoje uma leitura de O espadachim de carvão do escritor carioca Affonso Solano e de como ele cria uma pequena mitologia moral do abandono.
(obviamente, o texto não contém spoilers de nenhum tipo).
Kurgala não liga se você não entendeu
O livro conta a história de Adapak, um jovem e inexperiente semi-deus, hábil na luta com espadas, mas ignorante quanto as praticidades da vida real. Ele habita Kurgala, um mundo ficcional cheio de raças inteligentes e pontuado por uma ecologia toda sua (ainda há uma lua, mares, montanhas e florestas, mas a fauna e a flora têm sua própria nomeoclatura, assim como a tecnologia do dia-a-dia deve muito mais aos animais que ao mundo mineral…). Mas o jovem precisa fugir às pressas quando seu lar é atacado por misteriosos inimigos. A partir daqui temos a clássica epopeia do homem em busca de respostas.
Junto com a apresentação do protagonista nos vemos diante, portanto, da apresentação de seu cenário, em um esquema semi-cronológico (a história tem dois tempos, onde capítulos do passado e do presente se intercalam) e uma divertida postura de continue lendo expressa pela falta de explicações sobre os elementos de Kurgala. Essa é a mais corajosa parte do texto: a produção de um cenário autoral, bastante influenciado por mitos do oriente médio da Antiguidade, mas, ainda assim, novo. Kurgala é um mundo dotado de suas próprias leis e isso expressa-se em nomes variantes em um movimento de escrita que não cria explicações detalhadas, atirando o leitor na ação sem lousa ou dicionário. Esse caráter anti-pedagógico é ponto de maturidade neste primeiro livro do autor: há aqui, um reconhecimento de que não há obrigações didáticas em literatura – um reconhecimento que premia a história com verossimilhança (afinal de contas, nós, em nosso próprio mundo, não somos didáticos sobre ele).
O protagonista ingênuo
A ideia de um protagonista que mal sabe de seu mundo é o antigo recurso de imersão do leitor. Ainda que de modo, como disse, não-pedagógico, aqui mora o esforço de Solano em inserir-nos em um ambiente alienígena. Em Adapak temos a ingenuidade, o preconceito, a idealização e o romantismo parcial comum a todos em sua chegada nos jogos do mundo exterior. A interpolação entre as fabulações que o personagem ama (nos livros de fantasia que ele lê dentro da história) com a educação real sobre as coisas, dão margem para um ótimo exercício (que o autor aproveita pouco, preocupado demais, acho, em expressar a inteligência de alguém que também é filho de uma entidade divina).
Embarcamos com Adapak porque ele manifesta inseguranças que partilhamos. Ele é, através de sua fuga e de suas memórias (inclusive amorosas), um canal de reflexão sobre os dramas do jovem tímido, dos introvertidos. Condoído por uma dupla de tristezas, o herói terá de lidar com ambas enquanto enfrenta perseguidores violentos. Felizmente, Adapak não está desarmado: conhecedor de uma forma quase mística de luta (os Círculos Tibaul) o espadachim é mais do que capaz de suportar esse aspecto físico de seu drama.
Mas a história fica divida e perde identidade ao lidar com ambos os aspectos (emocional e de ação). E ainda que O espadachim de carvão seja o primeiro de uma série (prometida pelo autor), não vejo como retirar dele essa responsabilidade: as inquiestações de Adapak, ora em níveis quase infantis ou pré-adolescentes, ora pontuadas por uma sabedoria tensa, não são suficientes para compensar as lacunas que a promessa de ação deixa. Fica claro que o autor prefere dar a ação um sentido pontual, colocando a violência como elemento menor. Mas, no geral, e especialmente em seu desfecho, essa escolha veio fraturada. Adapak e suas emoções transbordam de modo a anular boa parte do espírito inicial da obra. E nesse momento, parte da cortina que diz que o fantástico é desculpa para falar do real, cai. Uma queda rápida demais, penso. A crítica a certa passividade juvenil, o sentimento de superação diante da adversidade emocional e a busca pela maturidade acabam soando nuas demais em um baile de máscaras do fantástico.
Conclusão: Enredo prático e o DNA japonês
O espadachim de carvão traduz uma caixa de diálogo de pelo menos duas gerações: como tornar palatável a discussão sobre nossos medos? Nesse caminho algumas fórmulas tem sido bem sucedidas e este livro encontra algumas delas. Além das influências óbvias de A Princesa de Marte ou Conan, há um forte parentesco das imagens de Solano com toda uma estética que os animes convocam: um senso de mistificação e moralização do ato violento (como arte marcial e reação), uma exposição do mundo como algo dotado de desafios que cabem ao indivíduo enfrentar e uma clara alusão ao diálogo entre opostos (inimigos ou aliados), colocado de modo quase sempre teatral. Nada disso é ruim ou desmerece o trabalho do autor, claro. Mas é útil e interessante identificar como, de que modo, essas coisas ajudam a construir o castelo de fabulações que as diversas mídias modernas popularizaram e que tem afetado o modo de seleção dos dramas juvenis (e adultos, por que não?).
Ficam mais perguntas. Perguntas que só reforçam a validade do texto, a despeito de que ele seja o começo de uma busca do autor por mais autonomia criativa: por que Adapak não é, de fato, negro? Onde estão as personalidades dos demais protagonistas (a jornada do herói é sempre a jornada solitária?)? Sobre o que será a série, tendo em vista que o livro encerra (ao que parece) algumas das lutas internas de Adapak? Será uma série sobre o mundo, tal qual G.R.R. Martin decidiu para si?
Fico aqui na curiosidade e na espera. Afinal de contas, essa me parece ser uma história sobre seguir em frente…
O espadachim de carvão
Olá!
Uma ótima resenha senhor, com um ponto de vista que até então não havia parado para pensar. Já li o livro e digo que ele me foi bastante divertido, mesmo que não perfeito na sua totalidade. A falta de explicações sobre o mundo foi um ponto curioso na obra, mas não posso negar que, como alguém que gosta de entender a dinâmica de mundos de fantasia interessantes, senti a necessidade de mais detalhes. Quem sabe em obras futuras.
Até and Bye…