Arconte

A escavação durou 12 dias. Quatrocentos e vinte e dois mineiros se revezaram, sob o frio cauterizante das montanhas à oeste de Ókya. Em um primeiro momento, os mestres de obras enviados pelo conselho julgaram que a nevasca inutilizaria os esforços. Mais de oitenta e seis cavalos de tração sangraram e morreram na remoção das pedras, abalando o moral e a decisão de todos. Mas no fim acabou. A sepultura havia sido desfeita e, no fundo oco e gelado o Corpo foi encontrado.

Mestre Kamino Or, sob o qual pesava a chefia final da expedição, enlouqueceu de imediato. Uma guarnição de cem homens foi convocada do forte da floresta para proteger o acampamento e evitar a debandada dos trabalhadores. Os mestres Elao e Nadros assumiram o controle da turba e acalmaram a maioria dos homens e mulheres alarmados com o estado de Kamino e as implicações da descoberta. Havia a tarefa ainda mais dura de retirar o Corpo e levá-lo.

“Escrevo no décimo quinto dia de trabalhos e agruras. Peço, por meio desta missiva, a compreensão do lorde cavaleiro da Grande Cidade, senhor das Forças de Ókya e Protetor Jurado das terras sob Ela. Nós o encontramos. O gelo e a neve talvez tenham forte papel em sua conservação, mas os demais mestres julgam que há mais nela. A Criatura está morta, se a morte Dela é tal qual a morte de todas as coisas outras que a sabedoria diz. Não é como relata o mito e a lenda. É possível que o tempo, magnânimo sob tudo, a tenha subvertido e corrompido de modo a mudá-la. Mas é mais provável, e peço perdão pela conjectura, que Ela o seja assim, ao contrário das falas dos antigos.

Jaz caída como que de braços abertos e fronte aos céus. Mas tanto braços, como fronte são diferentes e difíceis de aceitar. Mede trinta e sete metros de uma extremidade a outra, no que seja sua altura, uma vez de pé, se algum dia o fez. Os braços, articulados em mais de meia dúzia de lugares, lembram as grandes patas das aranhas do deserto. Terminam, contudo, em arremedos de mãos alongadas e fortes, de quatro dedos articulados e grossos. Há, em tudo, carne firme e seca e músculo e tendões, no que a vista de longe permite ver.

O peito é forte e bulboso, carregado de marcas e cascas as quais não sei precisar se naturais ou frutos de ferimento antigo. O torso se avoluma mais em direção ao inferior, como o caule de uma árvore se avoluma a saia das raízes. Não há pernas, mas galhos grossos ou mesmo raízes potentosas, que partem do fim do tronco em três dúzias e se ramificam muito mais. Algumas estão partidas e faltantes, outras, retorcidas e secas.

A fronte é coberta de pele, que em todo o corpo é cinza-e-branca. Não há olhos, apenas uma bocarra cerrada, de dentes expostos e escuros, com um palmo de tamanho. Não há asas ou apêndices que se veja aos ombros. Não tem pescoço, sendo a cabeça uma protuberância abaulada que parte do tronco na direção oposta às “raízes”. Não vejo como poderia andar, dada as dimensões e o peso imaginado do torso e a insuficiência relativa de tantos músculos dos membros de cima ou a precariedade no que deve haver de ósseo nos de baixo. É uma abominação aos olhos e causa inquietude a alma”.

Os esforços de mover o Corpo foram em vão. Sete tentativas fracassaram diante de um peso não imaginado. Novos reforços chegaram, no décimo oitavo dia, desta vez de homens e mulheres convocados do Forte de Porto Baixo: mais duzentos soldados e cinquenta cavaleiros; entre os quais o próprio Dako Adran de Calaumitar. O receio maior do conselho em Ókya era de que forças do norte se intrometessem na expedição. Os mestres de obras, contudo, tinha novo medo: a de que a violação da sepultura e a exposição ao frio aberto comprometessem o Corpo de algum modo. Os mais supersticiosos simplesmente temiam seu despertar abominável.

No décimo nono dia batedores inimigos foram vistos nas colinas do norte. O Dako Caulamitar deu ordem para a construção de uma fortaleza de terra e uma paliçada ao redor do acampamento e da escavação. Doze mineiros foram presos durante a noite, tentando fugir para as aldeias do sul.

No amanhecer gelado do dia seguinte, mestre Elao alertou os comandantes militares de que uma vibração permeava o Corpo.

Nenhum dos mestres ou cavaleiros convocados para se aproximar da tumba confirmou o fato. Mestre Nadros atestou a imobilidade após longas observações. Até o momento a Criatura não fora tocada de forma direta, sob ordens expressas do conselho. Lorde Calaumitar, temendo que o caos se instaurasse, descretou a prisão de mestre Elao em sua tenda, até segunda ordem. Na manhã no vigésimo dia, Mestre Kamino Or, também retido em uma tenda, sob os cuidados de adeptos e curandeiros, roubou uma adaga do guarda que o vigiava e, segundo relato do mesmo, perfurou o próprio peito repetidas vezes.

No vigésimo primeiro dia, uma comitiva de Ókya chegou ao acampamento como novo apoio: trezentos e trinta e dois cavaleiros e quatrocentos infantes vieram, liderados pelo Primeiro Lorde Elah. As paliçadas e fortificações de terra ainda estavam sendo erguidas, o que irritou o comandante-em-chefe. Fazendo uso de suas prerrogativas junto ao conselho, Lorde Elah dispensou o Dako do comando de suas forças e o enviou à Ókya para contar sua narrativa. Em seguida, deu ordens para que o Corpo fosse desmembrado e retirado.

Houve pânico. Recusando-se, os mineiros imploraram para que a Criatura fosse novamente enterrada. Alguns soldados de Porto Baixo ameaçaram partir, destituidos de seu senhor direto. Lorde Elah determinou a prisão de seis deles e a execução de dezoito mineiros que se negaram a iniciar os trabalhos. Mestre Nadros apelou ao Lorde, mas foi recusado. O desmembramento começaria na manhã do vigésimo terceiro dia.

Uma nevasca chegou na madrugada anterior. A paliçada foi irremediavelmente arrasada pelos ventos. A escassez de comida começava a tornar-se um problema. A urgência tomou o coração de Nadros. No negrume daquela noite profunda, ele desceu novamente à tumba, junto de sete soldados. Vislumbrou o Corpo em seu descanso gelado e quieto e deu ordens para que o comandante fosse chamado.

A alvorada do vigésimo terceiro dia cortou a tormenta de gelo. O acampamento despertou cedo para o início das atividades. Cavalos foram alimentados, fogueiras reanimadas, sopas preparadas e grandes machados afiados. Todan, velho entre os mineiros, foi o primeiro a notar os pássaros. Havia milhares deles, nos céus sobre o acampamento, centenas e centenas de metros acima. Um pontilhado de brancura entre nuvens ainda semi-abertas. Não demorou para que a notícia da partida de Lorde Elah fosse comentada. Ele e cento e vinte cavaleiros haviam voltado à Ókya ainda durante a tempestade de neve. Um jovem Kaidro chamado Telasan fora incumbido de chefiar o enorme destacamento, uma honra demasiada para uma patente tão baixa. Mestre Elao não fora encontrado em sua tenda-prisão. As ordens gerais do novo e tenso comandante eram para que o Corpo fosse deixando em paz, durante o dia, e que ninguém dele se aproximasse.

As horas frias transcorreram com medo e incerteza, até que os gritos irromperam de uma das tendas, com os soldados que a protegiam fugindo para as fileiras do entorno. Os mineiros confusos testemunharam o velho nu que rasgava as mantas do abrigo e caminhava trôpego para o centro da fogueira. Atônito, correu e nela se atirou, queimando parcialmente e gritando além do incomum. Foi uma das mulheres que, aos prantos, reconheceu a voz de Mestre Nadros. Os mineiros o socorreram para logo em seguida o largarem. Ensandecidos, golpearam-no com marretas e picaretas até que o sangue cobriu mãos e rostos. Um novo pânico tomou conta da turba, que dessa vez correu contra os soldados e por eles foram recebidos a golpes de espada e lança. Correram, lutaram, choraram e foram mortos. A brigada resistiu ao ímpeto dos homens, até que um deles, coberto de sangue e fúria, veio andando até o comandante em chefe, trazendo consigo a cabeça de Mestre Nadros. Uma cabeça cujos olhos agora jaziam recobertos de pele e cujos dentes se mostravam negros, sorrindo eternamente na boca fechada.

Aos nobres e graves e grandiosos membros do Grande Conselho de Ókya, soberana cidade,

O caos irrompeu e devorou a paz da expedição. Fracassamos. Que esta mensagem chegue com rapidez à sabedoria dos monsenhores e nova força seja trazida aos pés da montanha tão logo seja possível. São muitos os mortos, ainda mais os feridos e ainda não tenho conta dos que partiram. O que viemos buscar ainda está lá, em seu sono frio. O temor maior, que me assola como soldado e como homem, é que isso seja mais a marca de seu mal do que qualquer alento de ilusão.

– Telasan de Merédia, Kaidro de Terceiro Inverno”.

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6 Resultados

  1. Armageddon disse:

    Conto foooda! Ótima estréia =D

  2. Di Benedetto disse:

    Bem legal, Jagunço.
    O conto transportou bem o feeling “chtulesco” pra um universo medieval. E o texto é curtinho, ideal de ler por aqui. 🙂
    Pelo que vi dos seus outros contos acho que você gosta de narrar de uma perspectiva interna do cenário e simulando um pouco o linguajar dos habitantes. É um ideia interessante mas eu não gosto muito de fazer isso por que acho que no final acaba confundindo um pouco o leitor mais casual. Mas é só uma preferência pessoal.
    PS: Fiquei um pouco confuso com o título e temo ter perdido a referência. (Mas aí é burrice minha mesmo)

  3. dibenedetto disse:

    PPS: no comentário anterior a repetição das palavras “Mas” e “acho” assim com a rima escrota de “casual” com “pessoal”, foram completamente não intencionais.
    Relevem -__-‘

  4. Jagunço disse:

    Opa.
    Agradeço as boas vindas. 🙂
    @Di Benedetto A inspiração é essa mesmo, ainda que eu prefira evitar a responsabilidade do termo “lovecraftiano” (ainda sou “muito criança”. XD). Alguns vão achar intenções, outros não, e isso é bom.
    Sobre a perspectiva interna: sim, é sempre um esforço meu, esse de brincar e imaginar a linguagem de um mundo. Primeiro pelo desafio do exercício de escrita, segundo porque acredito que dá uma coerência positiva. E, nesse ponto, apesar de achar que a clareza é uma coisa boa em um texto, tento não me preocupar muito com a confusão do leitor. Gosto de provocar quem lê. Uma vez li uma filosofia do tipo e gostei: “o escritor de ficção não tem nenhuma obrigação de ser pedagógico; ele tem a obrigação de retirar o leitor de sua preguiça eventual, de sacudi-lo”. Eu tento. Um dia chego lá. 🙂
    Abraço.

  5. Jagunço disse:

    Ah e sobre o título: eu curto uma ambiguidade na redação, também. Coloquei aí por uma razão, claro, mas cada um que me diga a sua. 😛

  6. Dan Ramos disse:

    Esse Mário é um danadinho! Também senti um pouco de dificuldade em incorporar os títulos, talvez porque estejam em maiúsculo, mas logo peguei. No geral, o conto ficou legal, e seria interessante que algumas perguntas fossem respondidas no futuro, com outras narrativas!

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