Uma questão de equilíbrio
Uma das coisas que mais foram marteladas na minha cabeça (e acredito que na cabeça de muitos de vocês também) nos últimos anos em relação à RPG foi a necessidade de termos um grupo equilibrado, sem que um ou outro personagem roube a cena simplesmente por ter mais poder de combate do que os outros.
O que me pergunto é: será isso mesmo verdade? Grupos desequilibrados não podem contar boas histórias? Resolvi colocar isso à prova em uma campanha de Tormenta (que jogamos desde 2001 e ainda rende algumas aventuras nos nossos verões) e descobri que ela não poderia estar mais equivocada.
Primeiramente: como todos sabem, RPG é um jogo de contar histórias, embora conte histórias diferentes da maioria das outras mídias, como literatura, cinema e o que quer que seja, pois aqui dificilmente teremos apenas um personagem principal: o foco do enredo é no grupo e todos os personagens devem ter oportunidades iguais de brilhar, certo? Certo. Então, fazer com que todos tenham pontuação e poderes mais ou menos equilibrados é um ótimo começo, certo? Errado. É aí que a coisa pega.
Cinco contra um
Colocar todos os personagens alinhados em combate contra um adversário mais poderoso é uma péssima ideia. Se todos estiverem fazendo a mesma coisa, dificilmente um ou outro personagem realizará alguma grande façanha ou atingirá algum objetivo pessoal fazendo isso. Isso pode ser facilmente percebido em grupos onde temos bardos, ladinos (ladinos clássicos, não esses ladinos modernos de MMOs) e outros tipos de personagens não combativos.
Neste caso, trazer desafios diferenciados que se ajustem aos personagens pode ser uma boa ideia. Ok, tomemos como exemplo um grande vilão. Vamos chamá-lo pelo nome de Beltranis, o cavaleiro-lich. Agora suponha que temos um grupo com um guerreiro lutador fazendo o papel de tanque, um sacerdote de Wynna como mago-clérigo e um ladino com pouco poder de combate. Se todos simplesmente partirem para cima do Lich soltando gritos de guerra e trocando dados de combate, teremos uma luta longa, com o ladino causando danos de formiga, o tanque apanhando rodada após rodada o e mago queimando suas magias uma atrás da outra na tentativa de fazer o lich tombar. Eu tenho certeza que todos já passaram por pelo menos um encontro exatamente assim.
‘Ok, mas como eu posso tornar um combate mais emocionante’, você pergunta. Vamos colocar um pouco de desafio que exija mais do grupo aqui. O lich-cavaleiro veste uma armadura poderosa que torna quase impossível um confronto direto, exceto se ela for desativada quebrando uma gema presa ao capacete. Além disso, existe uma armadilha mágica estrategicamente instalada no centro do aposento onde ocorrerá a luta final que, se ativada, vai invocar um elemental que ataca imediatamente a pessoa mais próxima.
Bem, supondo que você tenha deixado os jogadores descobrirem estas informações através de investigação, testes, ou o que for, eles naturalmente começarão a tentar traçar estratégias a respeito do que pode ser feito. Tentar posicionar o vilão na armadilha é uma estratégia válida, assim como tentar desativar a gema que protege a armadura, e são duas coisas que não podem ser feitas através de combate direto.
Testando os jogadores
Testes são uma boa ideia durante um combate, pois ajuda os jogadores a manterem-se concentrados, torcer pelo resultado do dado e comemorar quando as coisas vão bem. Neste caso, seria bom decidir que, por exemplo, o mago-clérigo seja bem sucedido em pelo menos três testes de perícia para saber onde vai aparecer o monstro conjurado da armadilha mágica, assim o combate não corre o risco de acabar cedo demais em um simples teste bem sucedido. Da mesma forma, para desativar a gema, o ladrão poderia ser obrigado a fazer testes para sair do campo de visão do lich e gastar alguns turnos fazendo pontaria para atingir a gema.
Aproveitando pra vender o peixe: nosso vindouro cenário, Penumbra, trará novas mecânicas para o uso de habilidades sociais e mentais que poderão inclusive ser utilizados durante o combate. XD
Isso é um bom exemplo de um combate dinâmico que exige a participação de todos os membros do grupo. Teremos o guerreiro fazendo seu papel de proteger os outros enquanto o mago decifra a armadilha e o ladrão desativa a armadura mágica para que o vilão possa ser atacado pelo monstro conjurado. Cada personagem teve seu momento de brilhar.
Combates deste tipo são vistos muitas vezes em RPGs e adventures eletrônicos, onde cada ‘chefão’ tem uma ‘manha’ para ser derrotado, que depende de como você organiza os personagens dentro do seu grupo. Qualquer desafio que precise ser derrotado em etapas (ao invés de simplesmente debulhar os PVs do cara) torna as coisas mais interessantes.
Desafios do tamanho do mundo
Recentemente na minha campanha de Tormenta um dos personagens morreu de forma que ele nunca mais poderá ser ressuscitado. E estamos falando de uma campanha de dez anos, com personagens épicos que peitam deuses menores com uma mão nas costas. Seria um tanto injusto e ilógico simplesmente deixá-lo fazer um personagem de trocentos pontos e colocá-lo de paraquedas no meio da campanha. Ele concordou em fazer um personagem um pouco mais humilde, com menos pontos, e que seria um dragão transformado em humano por conta de uma maldição, e que gostaria de recuperar sua verdadeira forma.
Aventura vai, aventura vem, mesmo depois de recuperar a verdadeira forma (e ficar com o nível de poder de um dragão branco ancião, aproximadamente), ele ainda estava bem aquém do grupo em termos de poder. Ainda assim, isso nunca o impediu de ser útil em campanha, realizando objetivos importantes para o desenrolar da história. Diabos, em Star Wars Obi-Wan era o cara mais poderoso entre os rebeldes, mas foi Luke – um aprendiz fracote – que salvou a princesa e destruiu a Estrela da Morte!
Novas maneiras de estragar sua campanha
Recentemente li um dos melhores suplementos de RPG de toda aminha vida: Mirrors, suplemento importado do Mundo das Trevas. Nele encontrei uma das sugestões mais estranhas que já vi: trocar os Pontos de Experiência por uma unidade que ele chama de MCB – Magic Character Beans (Feijões Mágicos do Personagem). A grande diferença é que os MCB são distribuídos durante a criação do personagem e NUNCA aumentam. Ou seja, seu personagem já começa o jogo com a possibilidade de ser extremamente poderoso, mas se ele gastar todos os MCB logo de começo ele nunca vai evoluir – passará a campanha inteira com a mesma ficha. Em contrapartida, uma das aplicações dos MCB é a possibilidade de, com autorização do mestre, ‘comprar’ acontecimentos na história, gastando pontos para que algo de interesse do jogador (não do personagem) aconteça. Neste caso, um personagem que já começa poderoso jamais poderia fazer isso, enquanto o personagem que começa fraco, mas reserva uma boa quantidade de MBCs vai ter muito mais possibilidades de alterar o rumo da campanha. O livro inclusive traçar paralelos, dizendo que ‘personagens que começam poderosos geralmente cumprem papéis secundários, como mentores dos personagens principais, por exemplo’.
Considerações Finais
Mesmo que você ainda assim goste de jogar com um grupo bem equilibrado (ou simplesmente tema que de outra forma seus jogadores possam estragar a história), a ideia de desafios diferenciados pode ainda é perfeitamente aplicável em grupos equilibrados, afinal, resolver tudo com dados de combate começa a enjoar depois de certo ponto, não?
O problema é que ‘equilíbrio’ não é automaticamente igual ‘equilíbrio em combate’.
‘Equilíbrio’ significa que todos tenham oportunidades iguais de ‘brilharem’ dentro da sessão. Se isso contabiliza eficiência em combate, depende do conceito do jogo. Em D&D e jogos similares isso é importante pois existe um foco grande em cenas de ação e combate.
Um jogo onde o combate/ação não seja tão importante pode ignorar o equilíbrio em combate em troca de mecânicas que tornem os personagens importantes em outros momentos. Usando um exemplo antigo e muito repetido, Buffy RPG usa um sistema onde os personagens-jogadores são dividos em dois grupos: os ‘heróis’ e os ‘parceiros/aliados’. Os heróis tem mais pontos para gastar e tendem a ser melhores em combate. Os aliados tem menos pontos para construção, entretanto, possuem mais facilidade de influenciar o curso da aventura através do gasto de uma reserva de pontos.
Nota que nesses casos o sistema está garantindo uma forma de equilíbrio, fazendo com que todos os personagens sejam úteis.
É claro que num sistema desequilibrado personagens mecanicamente menos úteis podem ser tornados importantes para a história através da intervenção do mestre, mas ao fazer isso ele só está comprovando que existe um desequilíbrio e que o sistema tem dificuldades em garantir personagens igualmente interessantes. Nota que isso não impede o divertimento, mas aumenta a carga de trabalho do Mestre. Um bom sistema não traria essa carga extra, permitindo que o Mestre se concentre nos outros aspectos do jogo que o mais interessam (seja história, criação do mundo, combates, etc.).
Claro, a idéia é essa mesmo, basicamente. =)