Magia sem sistema de magia
Magia nos chega através dos mais variados sub-sistemas — temos feitiços prontos, customizáveis, descarregáveis, abastecidos por pontos de mana e sabe-se mais o que existe por aí. Todos os pratos deste vastíssimo menu costumam ter um tempero em comum muito característico, todavia — um nível enorme de complexidade. Mesmo títulos de sistema leve, como o 3D&T Alpha, possuem um sub-sistema dedicado inteiramente à magia — que o livro não recomenda ser usado por iniciantes.
É inevitável perguntar: é realmente necessário que sistemas de magia sejam assim, sempre complexos e baseados em um sub-sistema à parte do corpo principal de regras? E se a magia pudesse ser gerenciada como são entes mais prosaicos do sistema, fazendo com que jogar como usuário de magia seja tão simples e indolor quanto jogar com um balançador de espada ou batedor de carteiras? É viável ou desejável? É possível ou desejável ter magia sem um sistema de magia? Eu penso que sim. Por quê?
Dólares imaginários valem tanto quanto libras esterlinas imaginárias — nada.
É tão fácil imaginar o personagem decapitando um cara com a espada quanto queimando o mesmo infeliz com uma fireball. Se um é tão fácil quanto o outro, jogar com um deveria ser tão fácil quanto jogar com o outro. Da forma como é feito, jogar como mago quase requer que o próprio jogador o seja — ele precisa se familiarizar com um volume de material muito maior que o exigido dos demais jogadores, e as minúcias chegam a ser literalmente arcanas. E tudo isso porque ele curtiu mais o Galdalf do que o Aragorn quando assistiu a O Senhor dos Anéis no cinema. Não custa reafirmar isto: não se deve confundir personagem com jogador. O personagem mago passa horas decifrando páginas e páginas de grimórios arcanos — o jogador não é mago, e não deveria também precisar fazê-lo.
Economia de sistema.
O sistema em geral já possui ferramentas que realizam o que se exige das magias. Deslocar o personagem fisicamente no espaço imaginário do jogo? Pega qualquer sistema com a perícia Atletismo ou coisa parecida. Fazer um NPC reagir favoravelmente? Perícias sociais/de interação. Enganar? Perícias de trapaça. Inviabilizar metabolicamente? Todo um sistema de combate dedicado a isso. Já temos modelos de efeito, não precisamos de outros. Mais sobre isto depois da (potencialmente necessária) justificativa ficcional.
Magia existe no cenário — logo, é “fisicamente real” nele.
Se um jogo possui um sistema de magia, é seguro assumir que magia é uma realidade no cenário implícito. Parece haver a seguinte motivação por trás dos sub-sistemas de magia: magia viola as leis da física, então funciona “fora dela”; o sistema (perícias, combate, etc.) gerencia coisas dentro do mundo físico; logo, é necessário um sistema de gerenciamento de não-física. Só que a física do cenário que assume magia como real não é a nossa. Não pode ser. Se espíritos/energia elemental/teletransporte ocorrem no cenário, deve ser porque a física dele permite — se não permitisse, não aconteceriam. Para o leitor parece uma violação da física simplesmente porque não conhecemos a física do cenário — talvez não seja relevante para o tema do jogo, ou o autor não teve saco para detalhar isso. Se a capacidade de “controlar Física” (i.e. magia) é algo que os personagens podem realizar, “controlar Física” é uma habilidade como tantas outras que os personagens possuem — e pode, mecanicamente, ser tratada da mesma maneira.
Mas e se magia é super-poderosa/rara/special snowflake? Ela pode ser fisicamente real no cenário, mas é incomum e/ou envolta em mistério (Conan, por exemplo). Se ela é incomum, não pode ser tão prosaica quanto uma perícia ou coisa assim. O que se quer é uma exceção à regra. Isso pode se dar literalmente na regra (parte do sistema) ou apenas no plano da ficção. Não disse o Clarke que uma tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia? Então magia é super-tech — e possivelmente será algo caro/restrito/pouco conhecido.
Está totalmente fora do meu alcance um acelerador de partículas ou uma “mera” máquina de tomografia. Mesmo que estivesse, eu possivelmente não saberia operar. A barreira é praticamente a mesma que separa o “povo comum” da magia em cenários de fantasia. Só ocorre sabermos que magia não é tomografia porque recebemos educação — podemos não saber as minúcias, mas o que aprendemos no colégio costuma ser o suficiente para saber que tomografia não é coisa do outro mundo. Sem tal educação, a notícia de um “homem de avental branco que consegue enxergar dentro de você” poderia ser alarmante. Sem falar que não é incomum ver uma máquina de tomografia na televisão — mas imagine se tudo na tomografia fosse um segredo. Você vai lá, os caras enxergam dentro de você e acertam o diagnóstico — mas como ele faz isso é uma caixa preta. Geraria tanta especulação quanto teorias conspiratórias a respeito de tecnologia alienígena.
(Ocorre que, no que se entende comumente por tecnologia, sempre temos o efeito intermediado por um artefato externo. Magia costuma ser uma capacidade pessoal. Um bom lugar para ver como poderia ser uma sociedade toda baseada em “tecnologia pessoal” é a série de romances de Duna, do Frank Herbert. Não querendo estragar a surpresa de quem ainda não leu, duas palavras: Jihad Butleriano.)
Isso tudo é justificativa “dentro da ficção” e passível de esbarrar em considerações de gosto. Queremos no sistema essa percepção de “especial” e “exceção”. Basta criar exceções dentro do sistema — um sub-sistema dedicado inteiramente à magia é uma exceção, mas uma que me parece excessiva. Há maneiras de se criar exceções nas regras do sistema sem que isso constitua uma barreira para o jogador — a magia é difícil para os personagens do cenário, mas não necessariamente para seus jogadores. Exceções dão complexidade ao sistema, e muitos gostam disso por seu teor estratégico — a possibilidade de combinações que deixa o jogo interessante por mais tempo. Mas complexo não quer dizer complicado. Há um ponto que, se ultrapassado, transforma o “suficientemente complexo para prender a atenção” em “desafiador” ou até mesmo “proibitivo”.
Evitar a “colonização de Marte” — muito impressionante, mas inútil.
(Ou “retorno à questão da economia no sistema”.)
Eu ficaria realmente admirado se conseguissem criar um ambiente sustentável propício à biologia humana na superfície de Marte. Seria um feito notável. E muito caro — combustível de foguete não é gasolina, e a tecnologia para vencer o hostil ambiente marciano teria de ser avançadíssima. E Marte é tão atraente quanto o Deserto de Gobi — se se quer brincar de terraforming, temos ambientes hostis pra dar e vender aqui na Terra mesmo. Interesse/paciência do leitor é um recurso finito e muito disputado por outras mídias muito mais eficazes que nossos livros de RPG. Que meme é mais passível de criar raízes? “Viva emocionantes aventuras em mundos de fantasia” ou “administre formulários super-detalhados”? Se tomamos o RPG como um memeplexo (conjunto de idéias que se armazenam e propagam em conjunto), nosso primeiro meme desejável acaba sendo prejudicado pelo segundo, que “pega carona”. Há quem assimile ambas idéias com igual avidez, mas é possível também sentir que comprou gato por lebre. O título diz “Masmorras e Dragões”, não “Listas e Livros-caixa” — o sistema faz com que você tenha de aceitar um para ter o outro.
Para não dizerem que o D&D está sob perseguição. O sistema de magia do Dresden Files RPG é cabuloso. Junto com os poderes sobrenaturais, consegue transformar o FATE (cujo núcleo é médio-leve) em um peso-pesado. No meio da ação seu feiticeiro quer fritar aqueles demônios com uma explosão mágica e… a ação pára. Vamos determinar a potência da magia, o quanto de stress mental ela causa ao personagem, qual será sua duração. E existe diferença entre evocação e taumaturgia, com procedimentos próprios. Tudo muito bem feito, mas é colonização de Marte. Não sou familiar com os romances em que se baseia o jogo, mas de certo o sistema é assim para reproduzir a forma como a magia é administrada no material de referência. Mas acredito que para termos o clima do material de referência não precisamos reproduzir cada minúcia, como se fosse um modelo físico. Isto fica ainda mais fora de lugar no FATE, cujo caráter narrativo não casa bem com tal tentativa de simular a realidade.
(Aliás, me parece difícilimo que um sistema de fato “simule realidade”. Número mais dado comparado com outro número em nada se parece com “golpear com uma espada” — a decisão de representar desta forma nas regras é arbitrária em essência. Classe de armadura surgiu de uma regra de blindagem de um wargame naval — e aposto que mesmo aí o construto mecânico em nada se parece com a blindagem real, o material que você pode tocar. A regra não é o elemento que ela representa — é uma abstração que usamos para administrar o elemento imaginário nesta ou naquela circunstância. E se percebemos uma mecânica como “se parecendo mais” com o que ela em teoria representa, isto só nos parece natural em virtude do hábito. Sub-sistemas de magia só se “parecem mais com magia” porque assim foi convencionado.)
O Diaspora, que usa o mesmo núcleo de regras do Dresden Files RPG, por outro lado, administra magia de uma forma muito mais econômica, usando apenas partes pré-existentes do sistema. Em vez de adicionar todo um corpo de mecânicas, a magia* funciona como exceção no funcionamento das regras “normais”. É só ver como funciona no SRD do jogo.
*Certo, Diaspora é ficção científica, e o sistema trata de psiquismo (que nada têm de científico, aliás). É tudo questão de aparência — ambos (magia e psiquismo) tratam da mesma coisa, afetar a realidade à distância, via “forças invisíveis” ou coisa que o valha.
A única adição é uma skill, “Psionics”, que chamarei de “Magia” para facilitar nosso exemplo. Essa habilidade cobre o que o cenário considera “normal” em se tratando de magia. Isso cabe ao cenário gerenciar — engloba apenas conhecimento de “teorias mágicas”/alquimia ou permite coisas como se comunicar telepaticamente e mover objetos (tão massivos quanto uma pessoa poderia erguer/carregar manualmente) à distância? É estudo de magia básico, por assim dizer. Os efeitos mais dramáticos usam exceções — o sistema de stunts (como feats do d20) possui uma chamada “substituição de perícia”, que diz que, para um tipo de ação, você pode usar outra perícia no lugar da que o teste normalmente pede. Ou seja, é uma exceção, dá a uma perícia o uso de outra, coisa que a regra normalmente não permite (diferentes perícias fazem coisas diferentes).
Feitiços de fritar gente? Compro substituição para usar minha habilidade de Magia como se fosse Armas de Ataque à Distância (a habilidade que permite ferir gente de longe). A substituição prevê que grande poder custa caro — sem custo, o máximo valor que se pode “emular” é 3, ou seja, se tenho Magia 5 (topo da pirâmide, o que se esperaria de um mago), não consigo usar todo o meu valor. Para tanto, a regra da substituição diz que devo gastar um ponto de destino para ter acesso a valores maiores que 3. Isso cria aquela dificuldade (para o personagem) de que “magos não são super-tudo o tempo todo” sem a necessidade de todo um sub-sistema barroco como faz o Dresden. Sugestão em massa? Substituição Magia-Oratória. Ilusão? Substituição Magia-Enganar. E por aí vai.
E a substituição não é o único recurso excepcional no sistema. Outra stunt dá ao personagem acesso a equipamento tecnologicamente superior ou integrado (i.e. parte do personagem). Podemos usar para ter um mago capaz de lançar bolas de fogo usando Equipamento Integrado-(Arma de ataque à distância de poder apropriado). Uma arma de fogo integrada “não é” uma bola de fogo? O sistema não parece se importar — sistema não enxerga rótulo, só funcionalidade.
Se combinamos outras ferramentas à disposição (como os Aspectos), temos magia ainda mais flexível. Usemos uma que costuma causar problemas em alguns sistemas: vôo. É geralmente apelona, quebra o combate, etc. No Diaspora não tentamos “simular” vôo, mas administrar as coisas que meu personagem pode fazer com ele. Quero um personagem bom nisso, então começo com Substituição Magia-Atletismo (a skill que governa movimento do personagem) — a diferença entre ter acesso a um local difícil via escalada ou levitação é descritiva. Se se quiser mais complexidade, posso realizar uma manobra usando minha skill substituta — rolo contra uma dificuldade X para aplicar ao meu personagem o Aspecto temporário “Vôo”, que posso invocar por um bônus ou mesmo um efeito logo de uma vez — para postular coisas como “meu personagem voa até o alto da torre” ou “meu personagem está fora do alcance de quem tenta atingi-lo em terra”. Claro que, por ser um Aspecto, ele também pode ser explorado de maneira negativa — “fora do alcance” pode significar longe demais para que o personagem possa afetar com precisão alvos em terra (tag), e algum efeito baseado em vento pode simplesmente neutralizar o personagem, impedindo-o de agir (compel).
E fora os sistemas narrativos, onde mais podemos ver isso?
Cito o True20 como exemplo* — o repertório de magias usa a mecânica de talentos (cada feitiço é comprado como um) e sua conjuração é baseada em um teste de perícia (não se trata de uma perícia “magia”, mas nível +3, o que dá no mesmo que uma perícia maximizada) –, bem como o Dragon Age, descendente mais enxuto do True20. O que faz sentido — talentos são uma das formas que o d20 possui para trazer exceções. E, mesmo tendo nestes títulos a magia um tratamento mais leve que em outros RPGs que bebem da mesma fonte de sistema, a execução poderia ser mais econômica.
*Poderia ser qualquer outro sistema tradicional, desde que resolva a magia sem precisar recorrer a um sub-sistema inteiro somente para isto.
O sistema possui perícias de funcionamento bastante detalhado — Saltar vem completa com altura e distância possíveis em um pulo, por exemplo. Poderíamos iniciar com uma substituição — o primeiro talento da árvore “Vôo” permitiria usar Identificar Magia/Arcanismo/Ocultismo para realizar testes de Saltar (aqueles pulos sem impulso que volta e meia víamos na Buffy só podem ser magia); talentos subseqüentes na árvore podem aumentar burlescamente a distância “saltada”, talvez com algum custo limitador. Já uma magia de ataque é um Usar Arma Exótica, com a magia fazendo as vezes de uma arma de ataque à distância (1d6 fogo), por exemplo — tal dano pode ser aumentando com talentos posteriores na árvore (e magias realmente poderosas podem estar disponíveis apenas em aventura, como se fossem itens mágicos). Afinal, o sistema de combate já cobre ataques, e a lista de armas é uma forma de diferenciar entre ataques — se já temos pronta a matriz do que queremos que nossa magia faça (ferir pessoas em combatede maneira diferenciada), qual a real necessidade de incluir uma segunda plataforma para fazer a mesma coisa? A mesma de se colonizar Marte.
perdoável*
Um post muito inteligente.
Gostei das ideias apresentadas, usando magias de dano como armas e as outras como extensão de perícias.
Fantastico o texto, ha muito tempo eu trabalho em um sistema baseado em fudge/fate buscando planificar ao maximo (fazer coisas semelhantes usando a mesma regra) mais eu nunca tinha pensado na magia por esse lado.
Interessante análise. Um sistema de magias simples é algo que me passa pela mente há tempos. Algumas ideias daí são bem úteis, como a de substituir outras perícias por Identificar Magia…