Uma Conversa em Malpetrim

Aquela era uma cidade inconfundível. O cheiro salgado do mar era acompanhado por um aroma de aventura formado por uma miríade de elementos que incluíam a tensão de uma cidade sob constante ameaça de um exército invencível, cujo dia-a-dia era tresloucado devido à enorme população de heróis, e ao mesmo tempo sombrio graças às freqüentes visitas de piratas em busca de diversão e um porto seguro do Império.
Aquela era Malpetrim. A cidade livre. A cidade dos heróis. A cidade da aventura. Aquela era a cidade que ele amava acima de todas as coisas, embora não admitisse isto para si mesmo. Ele não pertencia a Malpetrim, não era livre, muito menos herói ou aventureiro. Era um goblin, um ex-escravo fugitivo e um trambiqueiro covarde. Isto era o que ele queria acreditar.
? E não volte mais aqui, sua coisa asquerosa! – Gritou um indignado taverneiro ao arremessar para fora o incômodo cliente, que foi se estatelar no chão a alguns metros da porta. Ele levantou com dificuldade, o nariz sangrando enquanto cuspia um dente.
? Foda-se você e sua taverna de merda, imbecil, espero que morra e meu pau cresça! – Ainda teve a audácia de xingar contra a porta fechada, que não voltou a abrir – Aí, caralho, onde é que vou dormir agora? Pra quê arranjar briga com a porcaria dos minotauros? Libertar um escravo, que merda estava passando pela minha cabeça?
Enquanto discutia consigo mesmo, batia de leve com as mãos espaldadas nas roupas para tirar a poeira, era um goblin bem asseado, afinal. Tinha orgulho de tomar um banho a cada dois ou três dias! O que, verdade seja dita, era mais do que a maioria dos humanos que xingavam-lhe de fedido, mas muito menos que os minotauros que todos consideram monstros bárbaros.
? E você pensa se ele ficou agradecido? Não, claro que não, gritou como uma besta ensandecida e me chutou a cara, o filho da puta, mas quê merda há de errado com os elfos? – O goblin continuou e acendeu seu charuto preferido, feito de ervas de Galrasia, que custavam uma fortuna que felizmente podia pagar.  Por enquanto.
? Talvez eles apenas estejam perdidos demais para entenderem que todo mundo tem altos e baixos na vida – disse uma voz vinda de um poste sem iluminação, cujo óleo de baleia provavelmente se esgotou na madrugada – ou talvez apenas precisem se afogar em cerveja e acordar ao lado de uma rapariga feia como um orc para entenderem que nem estão tão no fundo do poço assim.
? É bem provável, mesmo – respondeu o goblin, desde o princípio ciente do homem nas sombras e sorrindo com os dentes quebrados – E você fala de raparigas feias com conhecimento de causa, não é, seu pilantra azarado?
Ambos riram e começaram a andar pelas ruas estreitas enquanto discutiam impressões e informações sobre a movimentação dos minotauros dentro e fora da cidade, sempre nas sombras. Ainda falaram um pouco mais sobre bares, mulheres e elfos antes de se despedirem.
? Aqui – disse o homem nas sombras, arremessando uma chave para o goblin que a apanhou e pôs no bolso em um único movimento – Fale com o Rud nas docas, ele vai lhe arranjar um quarto para dormir, boa noite e boa sorte, Kirk.
? Claro, claro. Boa noite para você também, seu saco de bosta. Não vá morrer antes de me apresentar essa tal mulher, se ela tem coragem de se deitar com você posso estar próximo de encontrar a pessoa perfeita para limpar minha latrina – disparou o goblin dando palmadinhas no antebraço do amigo e rindo em seguida.
? Ela acabaria com você num piscar de olhos! – Ainda respondeu o homem antes de sumir por um beco.
Um bom homem, com certeza, pensou Kirk, o goblin. Educado, respeitoso, e com dinheiro para gastar. Dirigiu-se para as docas, onde conversou com o tal Rud e conseguiu chegar até o quarto, que abriu sem problemas com a chave que havia recebido. Em cima da mesa, o dinheiro combinado.
Os minotauros, é claro, já sabiam de cada palavra da conversa dos dois. Exatamente como planejado. Kirk não sabia como haviam pensado naquilo, mas era possível ter uma conversa normal sobre praticamente qualquer assunto e, inserindo palavras-chave e referências, passar uma informação muito diferente. Era o que haviam feito. Conversar sobre a movimentação dos minotauros era a cereja do bolo – chamava a atenção e dava a entender coisas demais para ser realmente útil, aí então, desanimados, desistiam de procurar mais e nunca encontravam o código.
Kirk e o homem haviam enganado completamente os minotauros, com toda a certeza. Só precisavam evitar serem capturados.
? Ora, Justin – pensou o goblin enquanto contava as dezenas de tibares de ouro na bolsa sobre a mesa – é claro que você pode contar comigo, enquanto o ouro continuar brilhando assim. Um dia ainda vou ter coragem de sair numa dessas suas aventuras e arranjar minhas próprias moedas. Um dia.
Segundos mais tarde, quando um centurião e alguns legionários à paisana arrombaram discretamente a porta, não encontraram ninguém no aposento. Num canto, um pavio terminava de queimar e alcançava o barrilete de pólvora. Nenhum minotauro sobreviveu.

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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5 Resultados

  1. Nume Finório disse:

    Opa,
    Valeu pelo aviso, Rodrigo. Apesar que juro que já vi gobliM em algum lugar de Tormenta.

  2. Djalma Lúcio disse:

    Ao autor, parabéns pela obra, um bom conto

  3. VANH disse:

    Parabéns! Gostei do conto! O goblin está perfeito em suas falas hahahaha, sempre imagino assim tb!

  4. Di Benedetto disse:

    Boa noite e boa sorte.

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