Três Exércitos: forças militares para fantasia medieval
Salve, mundo.
Após um período estranho de semi-hibernação criativa e falta de tempo hábil – ambos provocados por causos da vida lá fora – retorno a este espaço para apresentar algumas idéias para RPGs de fantasia.
Espiando aqui a coluna “Visões de Arton” do amigo Arma, decidi abordar o tema militar mais uma vez, procurando, contudo, trazer sugestões de forças armadas para mundos medievais fantásticos de um modo geral, pensando além do universo de Tormenta. Dessa forma, aqui vão algumas possibilidades de organização militar em mundos onde feras mitológicas são coisas tão práticas quanto cavalos e lanças (ou até mais). Aviso que a inspiração adicional para o texto é o recomendado livro A Arte da Guerra de Nicolau Maquiavelli (não, eu não errei o autor. Estou falando realmente de um livro do grande M que é menos conhecido do que Il Príncipe). Passada essa parte de “olha, eu li!”, aviso ainda que qualquer outra referência pode muito bem ser fruto de ótimas coincidências. 🙂
Em minhas narrativas de D&D e similares sempre me pergunto sobre a composição de um exército fantástico (como muito bem recomenda o Livro do Mestre lá em sua edição 3.0). É um velho engano retratar exércitos de fantasia nos termos de nossa própria história européia, sabemos. E muito embora eu tenha certeza que isso não é novidade para mestres e jogadores deste gênero, acho que não faz mal acrescentar alguns exmplos práticos ao mundo de referências possíveis. É nesse sentido que decidi criar alguns exércitos fictícios para minhas campanhas. O resultado dos primeiros esboços segue abaixo.
A Horda de Ganos
Ganos é um chefe tribal monstruoso. Trata-se de um ogro negro, distintamente trajado de túnicas claras e portando uma espada prateada – conhecida por seus seguidores como Icharya ou “Vingativa”. Mais do que isso, trata-se de um líder educado, cortez e paciente que já controlou outras forças ao longo dos anos (supostamente criado em comunidades de hobgoblins ou de gigantes civilizados). A monstruosidade de Ganos mora em sua teimosia militar. Ele se tornou conhecido por manter sítios durante meses e vencer generais oponentes através da brutalidade da investida em campo.
Estandarte: Uma cabeça de touro coberta de chamas.
Mote: “Somos o estandarte do pesadelo! Temos o poder de rasgar a coragem dos fracos! Lança, machado e furor! Lutem por suas vidas e destruam as demais!”
Contingente:
- Infantaria leve: 400 hobgoblins, 400 orcs.
- Infantaria pesada: 100 minotauros, 50 gigantes das colinas.
Formação: Os minotauros, armados de machados e alarbardas, compõem as primeiras fileiras (em uma ou duas linhas, dependendo do terreno e do inimigo). Não costumam usar escudos, mas trajam versões de cota de malha feitas de anéis de ferro e aço. Atrás, os hobgoblins e orcs se posicionam entre oito e dezesseis linhas intercaladas, distribuidos de modo que os defensores da frente não recuem. Eles usam espadas longas, machados e escudos de ferro. Os hobgoblins preferem armaduras de couro ou cotas de malha (especialmente os chefes). Os orcs usam gibões e tem a fama de abandonar seus escudos em meio ao frenesi da batalha. Os gigantes são a última força da tropa. Usam clavas pesadas, lanças grossas e escudos grandes (feitos de madeira, ferro e bronze). Eles controlam as últimas fileiras de goblinóides e orcs, impedindo o recuo, e representam a defesa pessoal de Ganos. Entram em batalha quando as linhas inimigas já foram destroçadas e as fileiras de orcs e hobgoblins já se espalharam pelo coração da formação rival.
Estratégia básica: Ganos gosta de aterrorizar oponentes. Ele aprendeu fragmentos de organização militar o suficiente para montar sua horda em filas de soldados. Ele usa os minotauros como linha de ataque primária, seja em forma de “cunha”, seja como uma investida rápida e disciplinada. Essas primeiras fileiras tem ordens de abrir espaço na medida do avanço, de modo que as fileiras de trás possam penetrar no exército inimigo. Poucos contingentes não se abalam diante da carga de minotauros enfurecidos!
Ganos aprendeu também, com o tempo, que seus comandados menores – leais ao medo de sua figura – não perdem a oportunidade de quebrar a formação se estiverem em desvantagem. Para evitar que algum pânico inicial dissolva sua vitória, o general ogro optou por estruturar suas fileiras como uma “armadilha contra o medo”. Seus comandados têm ordens de matar possíveis desertores e todos os covardes. Embora isso explique a solidez atual de seu exército, não se sabe por quanto tempo orcs e hobgoblins não se destruirão bem no meio de um conflito. Mas Ganos não se importa tanto com isso a ponto de desistir de sua estratégia. Ele usa uma força militar como um objeto dispensável. Uma filosofia resumida por “Quando não for mais útil, melhor mesmo que não exista neste mundo” como costuma dizer…
Anyarda-Laellos
Keniamus é um elfo das florestas que já viveu quatrocentos invernos. Ele lidera uma força temida por boa parte das tropas humanas ocidentais que passaram a repetir o nome criado pelos filhos do Belo Povo: Anyarda-Laellos, os Arqueiros de Lâminas. Pouco se sabe sobre suas origens, além do fato de que falamos de um exército que não se limita a táticas de guerrilha e que já foi visto protegendo várias fronteiras de florestas.
Estandarte: Um bandeira alva com um arco negro e uma cabeça de lobo pintadas.
Mote: “O tempo é nosso, meus amigos. Nossos inimigos o temem e nos temem por isso. Ergam suas armas, brindem ao dia e cumpram seu destino. O Arco canta a música escrita por nossas mãos!”
Contingente:
- Infantaria Leve: 600 elfos espadachins.
- Arquearia: 600 elfos arqueiros.
Formação: Todos os elfos envolvidos usam corseletes de couro, cimitarras ou espadas longas (com pequenas adagas arremessáveis presas aos cabos), arcos incomuns (armados com lâminas na parte posterior da estrutura de madeira), aljavas e nenhum escudo. Eles se vestem com as cores do ambiente, para usar de subterfúgios de ocultação, caso seja necessário. São treinados igualmente no uso da lâmina e do arco e estão prontos para combates acrobáticos (uma tática comum é “subir nos inimigos”, atacando fileiras de trás enquanto seus companheiros surpreendem as da frente). Os elfos preservam seus segredos acima de tudo e evitam ao máximo que suas armas caiam em mãos inimigas.
Estratégia básica: Os Anyarda-Laellos lutam com doze fileiras de arqueiros à frente e doze fileiras de espadachins atrás, todas em forma de meia lua. Antes de um embate direto, as primeiras fileiras atiram nuvens de flechas sobre o inimigo, destruindo sua formação frontal. Em um segundo momento, os arqueiros passam seus arcos para os grupos posteriores, sacam espadas e avançam. Essas fileiras de espadachins atacam o exército inimigo nas laterais das fileiras centrais ou nos flancos. Elas “abrem” a formação da meia lua para que alguns dos arqueiros do fundo atirem novamente, com alguma surpresa, no centro das linhas inimigas. Antes que qualquer “cunha” invasora atravesse a formação ou as flechas acabem, as últimas linhas sacam suas espadas. É muito comum que as fileiras de trás das formações continuem atirando flechas mesmo após o encontro dos exércitos, explorando a habilidade élfica da precisão para evitar atingir aliados.
A Legião de Dranare
Na costa oriental, junto ao mar, homens aprenderam a domar aves de todos os tipos. Dessa aliança surgiu uma força militar respeitada por inúmeras cidades-estado e reinos maiores, desejosos de seu poder. A Legião de Dranare, nomeada assim em honra a uma heroína do passado, é chefiada por um triunvirato de mestres-generais: Argoth, o vermelho, Cizar, o velho e Launa, a lanceira. Trata-se de uma força mercenária, mas dotada de honras particulares, tais como o respeito à natureza, aos druidas e à palavra.
Estandarte: Uma bandeira vermelha com asas de águia abertas em dourado.
Mote: “Juntos! Matem e vivam. Não há morte mais honrada do que a de hoje e não há vida sem honra! Glória, poder e ouro para nós e nossos filhos! Nós seremos os senhores deste dia se merecermos a vitória!
Contingente:
- Infantaria leve: 500 lanceiros humanos.
- Infantaria pesada: 300 guerreiros humanos.
- Cavalaria: 200 cavaleiros humanos.
- Arquearia: 200 arqueiros halflings montados, 100 arqueiros elfos ou meio-elfos.
- Força Alada: 50 cavaleiros em pássaros gigantes.
Formação: As forças de Dranare se organizam de forma semelhante a outros exércitos humanos: fileiras de combatentes armados de escudo e lança à frente (precedidas apenas pelos arqueiros, nos momentos iniciais) seguidas por linhas de homens de escudo e espada. Todos usam armaduras de couro ou cota de malha. Os grupos são leais a oficiais em campo e se movimentam através de códigos de chifres-de-sopro. A cavalaria fica nos flancos ou vai à frente caso o inimigo não possua força semelhante.
Estratégia básica: As seis linhas iniciais da formação são compactas, cerradas. As posteriores tem espaço maior para permitir o recuo dos contingentes e se agruparem à frente, recompondo o “corpo” principal. A cavalaria recua (quando necessário) pelas laterais do exército. Os arqueiros montados também atacam pelos flancos, para desorganizar o inimigo. Eles são ágeis e tendem a se afastar, quando possível, atraindo atacantes para desmantelar as linhas oponentes. Os demais arqueiros lutam à frente até o momento do embate direto, quando recuam. Os cavaleiros alados atacam a todo momento, atirando flechas incendiárias e óleo nas últimas linhas, visando fomentar o caos e derrubando o moral.
Mais algumas palavrinhas
Pensar exércitos fictícios é sempre um desafio. A própria história e a arqueologia do mundo real ainda batem cabeça quanto a algumas das organizações e estratégias de povos antigos. Claro, é inegável a influência de gregos, romanos e macedônios nas formas de batalha da Idade Média. A despeito disso, não preciso dizer que histórias diferentes produzirão diferenças nos mundos de fantasia. Contudo, é bom lembrar que isso vale não só para o que toca o conhecimento, mas também para o que toca a ingenuidade. Gosto de pensar a tecnologia e a ciência militar nestes termos: contextos diferenciados não criam apenas possibilidades diferentes, mas geram algumas “impossibilidades viáveis”. Por exemplo? Quem disse que a cavalaria é fundamental a um exército? Até que uma grande derrota seja produzida pela mesma em seu cenário essa é uma verdade duvidosa. Reinos inteiros podem ter desprezado o uso de cavalos em batalha (que podem até ser caros demais para valer o emprego em larga escala). Isso vale para outras coisas. Muralhas são inúteis contra personagens voadores? Mas quem disse que alguém já pensou nisso em um determinado cenário? Quem disse que magos usam esses feitiços em soldados barbudos e sujos?
Em outras palavras, quando pensamos em exércitos imaginários e em suas dinâmicas é válido pensar no contexto da história militar do mundo. Isso é uma das conclusões provisórias a que chego quando reflito sobre a elaboração dessa parte da narrativa dos mundos de campanha. Meu plano é continuar pensando um pouco nisso. As perguntas, no fim são: “Até então, neste mundo, o que foi inventado em termos de batalha? Que táticas já foram usadas e deram bons resultados? Quem são os grandes sábios desta matéria neste universo?”
Bem, estas são as linhas gerais… por enquanto. Sugestões são bem-vindas. Espero poder voltar ao tema e melhorar alguns pontos que ainda podem ser desenvolvidos (o que sobrevive a essa máxima?).
Até logo. 🙂
Jag, ótimo artigo, mas me preocupam outras coisas. Vamos pegar por exemplo a A Horda de Ganos. 400 hobgoblins, 400 orcs, 100 minotauros, 50 gigantes das colinas. 950 criaturas vivas compõem o básico deste exercito, mas não pode ser só isso. Deve haver um pessoal de apoio por atrás deles: serviçais, curandeiros, empregados, ferreiros, gente que cuida dos bastidores… gente enfim, que deixa tudo pronto para os primeiro urros de batalha. Mas não me incomoda o fato deles não serem citados no artigo ou mesmo deles não existirem – sei que existem exercitos auto-suficientes sem serviçais. O que me incomoda é: quem vai financiar essa farra toda? Quer dizer, esses soldados precisam ser pagos. precisam comer, beber e vestir. É um gasto bem elevado. Se vc levar em conta tudo o que tem de ser pago Ganos deve invadir uma cidade por M~es para se manter e ter pelo menos uma base fixa para conseguir alimentos.
Bom, ele falou da infantaria, formação e estratégia. O pessoal de apoio invariavelmente existe aí no meio, só não era o foco da matéria, creio eu.
E não é toda cidade invadida que é completamente saqueada, queimada e derrubada. Normalmente se faz o suficiente para derrotar e expulsar as tropas. Ainda existirão moradores e a cidade vai continuar a produzir
Bom, ele falou da infantaria, formação e estratégia. O pessoal de apoio invariavelmente existe aí no meio, só não era o foco da matéria, creio eu.
E não é toda cidade invadida que é completamente saqueada, queimada e derrubada. Normalmente se faz o suficiente para derrotar e expulsar as tropas. Ainda existirão moradores e a cidade vai continuar a produzir
Direto na questão, Betão. 🙂 Bom, como o Renato disse, a proposta geral, nesse momento, era começar a pensar as formações e estratégias. Cheguei a pensar em incluir custos, mas isso levaria a uma discussão que, penso, poderia ser melhor desenvolvida (e para a qual eu gostaria de pensa mais um pouco) :). Concordo plenamente com a relevância desses custos pra pensar enredos (assim como da referência ao pessoal de apoio).
Sobre a viabilidade econômica dos exércitos nos cenários de fantasia é preciso lembrar que estes cenários permitem a existência de Hordas de centenas de milhares de criaturas (que nunca duram muito, mas que existem lá). Ou mesmo que, na nossa História antiga, as legiões romanas sustentavam 7, 9, 11 mil pessoas por muitas semanas em campo. Não gosto de pensar "isso é impossível" nos termos da fantasia. Prefiro tentar entender como seria possível (acho que é o seu ponto-de-vista, também).
Vou tentar organizar as idéias em um texto, ok?
Abração.
Excelente artigo sobre militarismo em cenários de fantasia medieval. É sempre bom tentar refletir esses conceitos de guerra e formações militares em jogos medievais fantásticos. É um detalhe importantíssimo para enriquecer a história de um cenário.
Agradeço, Caetano. O mais divertido aqui, penso, é imaginar as condições de possibilidade em realidades alternativas e colocar isso como parte da coerência que sustenta cenários e histórias. 🙂
Realmente um ótimo texto.
Muito completo e com referências boas, aconselharia também a Arte da Guerra do Sun Tzu apenas como obra de apoio filosófico. Eu também estou com alguns problemas em pensar em estratégias militares para um futura campanha no cenário de Tormenta mas isso me ajudou bastante. o
Bacana, Thiago. O grande chinês citado é outro bom clássico que não pode ser deixado de lado. 🙂 Espero trazer novas idéias sobre o tema, logo, logo. Desejo muita guerra na sua campanha (no bom sentido, claro…). 😀