Tormenta: o que significa ser tecnologicamente mais avançado?

O tema central de Tormenta RPG é o choque de civilizações: Arton contra Lefeu. No mundo real, quando duas civilizações se encontram, conflitos estão destinados a acontecer quando essas civilizações disputam por recursos necessários a ambas. O resultado, usualmente, termina em massacre. Especialmente quando existe um abismo tecnológico entre elas. Mas como exatamente podemos identificar quando uma sociedade é realmente tecnologicamente superior a outra? A maioria de vocês deve estar imaginando europeus armados com armas de fogo contra nativo-americanos armados com arcos e imaginando que o primeiro tem a vantagem tecnológica, certo? Heh. Surpresa das surpresas, em termos bélicos o nativo-americano e seu arco é várias vezes mais mortífero que o europeu com a arma de fogo. Enquanto um mosquete poderia levar cerca de um minuto para ser recarregado e o alcance efetivo era de apenas pouco mais de 90m a 130m, o arco poderia disparar uma flecha a cada dez segundos e o alcance efetivo era entre 200m e 350m dependendo do tipo de arco. Armas de fogo só se tornariam mais mortíferas que o arco no século XIX, quando revólveres e fuzis de repetição começaram a ser produzidos.
Mas espera aí. Se o nativo-americano com seu arco e flecha possuía a vantagem tecnológica, como é que eles perderam os conflitos armados e foram massacrados pelos europeus? Bem, nem sempre a sociedade tecnologicamente superior é aquela que possui armas mais poderosas, muitas vezes o que realmente interessa não é tangível como um mosquete ou arco e flecha. O uso de armas de fogo pelas nações europeias a partir do século XV não se trata delas serem superiores aos arcos usados por milhares de anos através do mundo, mas pelo fato de que para treinar um arqueiro são necessários anos, mas para treinar um homem no uso do mosquete só são necessárias algumas semanas. Essa velocidade com que é possível pegar um homem comum e torná-lo num soldado pronto para lutar é onde reside a vantagem tecnológica da arma de fogo na era moderna. Completamente intangível, e ainda assim de um valor imensurável nos campos de batalha. Junte a esta facilidade de repor tropas com as doenças europeias que arrasaram as populações nativas e a instabilidade política dos aztecas e incas e você tem a receita pronta da dominação europeia.
Mas e o que é que isto tem a ver com Arton, então? Bem, para começar, você já percebeu algo sobre aquilo que dá nome ao cenário? A Tormenta é uma entidade estrangeira que deseja utilizar os recursos artonianos (a fé dos mortais) para tomar para si o poder sobre este mundo (tornando-se uma divindade maior), eles atingem isto através da substituição da cultura artoniana (fé no Panteão e deuses menores) pela sua própria cultura (fé nos Lefeu e assimilação) e tem um desprezo absoluto por tudo aquilo que não venha da sua própria realidade que os leva a um comportamento amoral que só pode ser descrito como desumano pelos nativos… Percebeu? A Tormenta é uma gigantesca metáfora lovecraftiana para as invasões coloniais¹.
E é aí onde definir o que significa ser tecnologicamente mais avançado se torna tão importante para a sua campanha. Porque neste momento os habitantes de Arton são os nativo-americanos, e a Tormenta é a inalcançável Europa, cheia de vantagens contra a gente… certo?
Mais ou menos.
O que eu quero dizer é que, embora a primeira vista pareça que Arton está em desvantagem, a verdade é que a situação é muito diferente do que você pode imaginar a princípio. Por exemplo, é fácil notar que a Tormenta é tóxica para o ambiente artoniano, ela chega para ficar e pode apagar completamente partes da existência… até você lembrar que Arton também é tóxica para a Tormenta. Apenas imaginem o que teria acontecido se os europeus fossem destroçados por pragas nativas do continente americano para as quais eles não tinham nenhuma imunidade, teriam eles conquistado a América? Nope. Esta é a primeira coisa que causa verdadeiro terror nos lefeu.
Mas não é só isso. Logo que a Tormenta surgiu em Arton, os deuses maiores decidiram não fazer nada diretamente a princípio, porque eles basicamente não sabiam com o que diabos eles estavam lidando e isso os aterrorizava. Por quê? Sun Tzu já dizia: “aquele que não conhece a si mesmo ou ao inimigo perderá todas as batalhas, aquele que conhece a si mesmo mas não conhece o inimigo perderá metade das batalhas, e aquele que conhece a si mesmo e ao inimigo ganhará todas as batalhas”. Quando a Tormenta veio para Arton, eles sabiam tudo sobre si mesmos e sobre Arton enquanto os deuses não sabiam tudo sobre si mesmos ou sobre a Tormenta (por conta da maldição do esquecimento que caia sobre o Terceiro e a Revolta dos Três). Durante 15 anos Arton perdeu cada batalha que lutou contra a Tormenta. Até que a maldição sobre Kallyadranoch foi quebrada e o conhecimento que os deuses possuíam sobre a realidade lefeu retornou. Agora Arton conhecia a si mesma e ao inimigo. Soma-se a isso o fato de que os Lordes da Tormenta haviam ficado desunidos após a realização de que estavam se tornando indivíduos e, imediatamente, a Área de Tormenta de Tamu-ra foi destruída. O fato de que existe algo sobre sua história que os deuses de Arton sabem que os lefeu não conhecem é a segunda coisa que causa terror nos lefeu.
Ambas estas coisas são intangíveis, não são algo com o qual você pode matar um lefeu diretamente. Mas a primeira coisa que eu expliquei para você neste artigo foi que às vezes não é quem tem a melhor arma quem vence uma guerra entre civilizações, mas sim aquela que tem aquele algo intangível que a torna superior, não é verdade?
¹ Não é incrível que o cenário de fantasia mais popular do Brasil tem como tema central uma metáfora que coloca o colonialismo como o mal absoluto? Bem, isto ou é um daqueles casos que o autor diz que o céu é azul e a gente interpreta que o azul é uma metáfora para a tristeza e solidão da vida moderna mas, na verdade, o autor só quis dizer que a porra do céu é azul, caralho. Até que você atinge a realização que o que o autor quis dizer não faz nenhuma diferença porque o que importa é a sua experiência com a obra. 😉

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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8 Resultados

  1. BehemothKnight disse:

    Eu achei que a Tormenta era o extremo coletivismo (quando o que uma pessoa é importa mais que quem ela é) sendo colocado como o mal absoluto.
    Mas talvez o céu só seja azul, mesmo.

  2. Padre Judas disse:

    O que ocorre é que os autores foram criados em uma nação vítima do colonialismo e mesmo da aculturação estrangeira contemporânea. Mesmo sem intenção consciente, reproduziram isso no material que escreveram.

    • Curioso, né? Mas não acho que é só questão de serem criados numa ex-colônia, mas sim como o colonialismo foi julgado pela História.
      O colonialismo europeu é visto como uma violência histórica por todo o mundo, sejam nas ex-colônias americanas, africanas e asiáticas ou nos próprios países europeus que o praticaram no passado. Para eles os atos brutais coloniais são uma mancha negra na sua história.

  3. José disse:

    Na real invasões de demônios/deuses/abominações é tão comum na fantasia quanto elfos, anões e halflings. Golarian, Forgotten Realms, Dragonlance, Reinos de Ferro, e vários outros, todos eles tem seus invasores prontos pra tacar o terror. Isso não quer dizer que seja um “critica ao colonialismo” depende muito mais de quem lê e interpreta a obra do que quem escreve.
    Por exemplo nos meus jogos de Tormenta, a tempestade e seus lordes sempre foram muito mais lovercraftianos, entidades alienígenas em tudo a Arton, eles não pensam como os Artonianos e seus deuses, eles nem sentem como os indivíduos do lado de cá. Eles estão apenas interessados em roubar o poder infinito dos Deuses e destruir Arton. E seus planos para isso são completamente incompreensíveis para os mortais. A única coisa que pode derrotá-los é bater mais forte. Como Orion fez. Como duas interpretações de um mesmo cenário podem ser completamente diferentes.

  4. Éder Gil disse:

    Que matéria foda, Nume!
    Acabei de reler OCeoC e não tinha parado pra pensar que os lordes começarem a ganhar a característica de indivíduo, pode ser arton os infectando.
    Abraço!

    • Sim, no final d’O Terceiro Deus mesmo tu vê que o caldo azedou pros lefeu: primeiro eles realizam que estão se tornando indivíduos e começa a rolar conflitos internos entre eles, depois tem o retorno de Kallyadranoch e destruição da área de Tormenta de Tamu-ra, que faz com que os deuses lembrem de tudo relativo a realidade lefeu que tinham esquecido. Total mudança de paradigma.
      E a gente vê isso quando abre sumo-sacerdotes mais poderosos empenhados diretamente na luta contra a Tormenta como é o caso da Lisandra que atua na linha de frente de acordo com o texto no Panteão. Ou seja, os deuses agora sabem com o que estão lidando e não tem medo de baterem de frente mais.

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