Tormenta: preconceito e racismo em Arton
Eu sei o que você está pensando. “Ah, não preciso nem ler esse artigo, o Nume vai falar da xenofobia e racismo yudenianos, do preconceito com magos de Portsmouth, etc, etc, eu tô ligado nessas coisas já!”, não é mesmo? É, só que você está errado. Senta aí e lê, que aí vem novidade pra você: todo mundo em Arton é, pelos padrões morais atuais, um babaca preconceituoso e racista. Sim, isso inclui todos os personagens oficiais de tendência bondosa.
Mas antes de explicar porque até a Niele é uma babaca, vamos começar falando sobre a diferença entre percepção e realidade que já falei num outro artigo de 2015, o resumo desse artigo é mais ou menos que as pessoas em Arton percebem a realidade de uma maneira completamente diferente de nós que temos acesso a informação sobre tudo que existe no cenário. E esse é o ponto central do argumento: ninguém em Arton é muito informado sobre outras pessoas e outras raças e preconceito e racismo são a soma de ignorância e medo. Considerando que todo mundo é bastante ignorante sobre basicamente tudo que não envolva seus reduzidos espaços pessoais (vilarejos, grupo de amigos, religião local, etc), tudo o que é necessário para alguém ser preconceituoso e racista é um pouco de medo. E tem muita, muita, muita coisa para se ter medo em Arton.
Se você é um morador de Arton, a sua vida diária é ameaçada por uma infinidade de coisas que você não conhece: mortos-vivos e monstros em geral, bandidos, clérigos de deuses malignos, magia selvagem, fadas irritadiças, druidas e bárbaros rancorosos da civilização… a lista vai muito longe. É o preço de se viver em um mundo de aventuras. Mas o ponto é que para praticamente toda a população há uma combinação constante de ignorância sobre o mundo e medo, a perfeita combinação para o nascimento de preconceitos.
E preconceitos existem a rodo em Arton. Preconceito contra magia pode ser o ponto definidor da população de Portsmouth, mas isso não significa que ele não exista para todos em Arton. Para o homem comum, a magia divina é muito mais próxima, a clériga de Lena do vilarejo usa pequenos milagres para curar ferimentos e doenças, mas é possível que ele nunca tenha visto um mago ou feiticeiro em toda a sua vida, e histórias de magos malignos não são exatamente incomuns. E o preconceito contra outras religiões, então? A maior parte da população conhece as principais divindades do Panteão cultuados na sua região, em geral Lena, Khalmyr e Tanna-Toh. Todas as outras divindades para ele são estranhas e potencialmente perigosas, mesmo que nós, mestres e jogadores, tenhamos ciência que elas são bondosas. Imagine a reação de um aldeão à chegada de um clérigo de Azgher na sua aldeia. Por quê o clérigo está escondendo o rosto? Quem esconde o rosto não são bandidos procurados? Boa coisa esse Azgher não deve ser, se é que esse deus existe! Melhor ficar de olho nesse estranho encapuzado…
É muito fácil para a gente falar da xenofobia e racismo do yudeniano porque ele é tão extremo, mas para a população artoniana xenofobia e racismo é coisa do dia a dia. O cidadão médio de Namalkah acha o povo de Callistia preguiçoso e presunçosos, os habitantes de Nova Ghondriann sofrem de desconfiança em todo o Reinado por serem descendentes dos habitantes do reino que causou a Grande Batalha, membros de tribos bárbaras sofrem preconceito nas regiões civilizadas. E mesmo que não seja pronunciado, vocês acreditam mesmo que os descendentes dos bárbaros de pele negra que habitavam o Reinado antes da grande migração pós-Grande Batalha não são vítimas de racismo pelos descendentes dos colonos brancos? Em Ahlen isso é pronunciado o bastante para ser descrito como um ponto importante, mas pode ter certeza absoluta que isso acontece em todo o resto do Reinado também.
E o racismo? Ah, o racismo em Arton é um prato cheio. Pro cidadão comum de uma aldeia no interior do Reinado, um goblin é basicamente um monstro e não uma raça senciente, devido as histórias de tribos bárbaras de goblins atacando aldeias. Para o cidadão comum das cidades artonianas, os goblins são uma raça de ladrões e escória que vive nas favelas em meio à sujeira. Elfos? Dignos de pena, fracos, escravos. Lefou? Alguém queime essa aberração! Minotauros? Tem certeza que aquilo não é um monstro? Halflings? Oh, algo tão bonitinho assim nunca pode ser uma ameaça, certo? Ei, cadê minha carteira? Ah, aquele goblin maldito. Todas as raças em Arton são vítimas de estereótipos e primeiras impressões advindas das suas aparências.
Outro problema é a síndrome do “monstro!” que todo artoniano tem. Arton é habitada por centenas, talvez milhares, de espécies sencientes, mas se você parar para pensar, apenas algumas dúzias de raças poderiam entrar em uma cidade artoniana sem disparar todos os alarmes e serem cercadas por milicianos e “heróis” ávidos em defender a cidade contra o “monstro”. Nasceu uma medusa, gnoll, orc, esfinge ou outra raça senciente não “bonitinha”? Boa sorte estabelecendo relações amigáveis com outras raças. Para o cidadão comum artoniano qualquer criatura que não seja esteticamente agradável ou pareça misteriosa demais automaticamente será classificada como “monstro”, independente da realidade dos fatos. Para não mencionar quando encontros com indivíduos malignos de uma raça terminam por determinar o modo de tratamento para toda ela. Sereias, por exemplo, são em geral pacíficas e contam com uma civilização subaquática avançada em sua própria maneira, mas contam com uma fama de destruidoras de embarcações. A verdade? Sereias malignas expulsas das cidades subaquáticas atacam barcos, escravistas do mundo seco capturam sereias, sereias agora odeiam as raças do mundo seco por atacarem elas sem motivo, marinheiros acham que sereias são bruxas do mar e o ciclo de ódio continua indefinitivamente.
“Então tá, Nume, todo mundo é preconceituoso de alguma maneira em Arton. Mas a Niele não, a Niele é uma deusa que gosta de todo mundo. Você não pode estar falando sério que a Niele é uma babaca preconceituosa, certo?” Tô sim, padawan. Veja bem, outro ponto comum é o “preconceito justificado” que rola em Arton (e no mundo real) e tem a ver com o último parágrafo. No caso da Niele é preciso lembrar que ela é uma vítima da Aliança Negra e odeia os goblinóides pelo que fizeram com os elfos. Parece justificado, né? A Aliança Negra é maligna e cometeu atrocidades, não tem nada de errado em odiar eles, isso não é preconceito… e isso é verdade. Como vítima, a Niele tem todo o direito de odiar a Aliança Negra. Mas ela também, como quase todo mundo em Arton, acredita que a Aliança Negra é uma horda de goblinóides bárbaros. Ela não acredita na possibilidade de uma civilização goblinóide. E ela ficaria chocada se chegasse em Ragnarkhorrandor e encontrasse uma cidade dinâmica e organizada. Por que ela é preconceituosa contra os goblinóides ao acreditar que eles não são civilizados quando eles são sem sombra de dúvida uma civilização avançada… maligna, mas avançada.
Eu não estou dizendo que você deve transformar sua campanha num antro de NPCs soltando comentários racistas e preconceituosos. A gente já enfrenta isso no dia a dia e honestamente na maior parte das vezes se joga RPG para fugir da pressão de uma sociedade pobre como a que vivemos. Mas se você quiser incluir um pouco mais de verossimilhança na sua campanha, é preciso lembrar que a sociedade artoniana é muito mais pobre do que a nossa neste sentido.
Bom, uma questão que julgo pertinente: em certos casos (minotauros em particular), esse preconceito não é justificado? Tauron, o Leal e Neutro, é o deus da ESCRAVIDÃO SEXUAL, e qualquer um de qualquer país que os minotauros poderiam julgar “fraco” tem (e teve!) bons motivos para declarar que, se não todos os minotauros, a imensa maioria deles é composta de opressores. Argumentar que a civilização deles é desenvolvida vale pouco quando se vê um imperialismo exacerbado e, na prática, o alinhamento do opressor importa bem pouco; o oprimido tem todo o direito de acreditar que ele deve ser exterminado e pode bem estar justificado nessa crença. Claro, aí estou falando mais de PÓS-conceito, mas gostaria de sua opinião sobre isso.
Opa, é o seguinte: “pós-conceito” não existe. Pelo menos, não como a maioria das pessoas usa. Você pode ter um “pós-conceito” de alguém que você conhece, com base nas experiências que você viveu com aquela pessoa. Quando você usa o “pós-conceito” das pessoas que você conheceu para julgar alguém que você não conhece isso é preconceito, porque você está usando experiências prévias com outras pessoas para julgar alguém que sem relação com aquelas pessoas.
Outra coisa, embora seja justificado o oprimido advogar pela fim de um governo ou sociedade opressora, não existe argumento para o genocídio de uma raça inteira. Então embora você possa justificar uma guerra para trazer o fim do Império de Tauron ou o fim da sociedade táurica como ela existe, se você começar a matar minotauros com o objetivo de exterminar a raça, você perdeu toda a moralidade e ética e é o verdadeiro monstro da história.
Falei “o opressor” deve ser exterminado, não (necessariamente) toda a raça dele. E, mesmo no extremo, uma história dessas incluiria DOIS monstros, não só um, para além do fato de que o oprimido-que-virou-monstro não teria essa reação (digamos, conjurar uma área de tormenta englobando Tapista inteira) se o opressor não tivesse atacado…
Tranquilo, mas é sempre bom lembrar pra esse tipo de erro nunca acontecer dentro e fora das mesas de jogo, sabe? É aquela velha história de que dois errados não fazem um certo.
Bom, eu tenho uma visão mais “eles começaram” da coisa, mas, no RPG – em D&D, onde o mal e o bem são, de fato, absolutos – você está coberto de razão. A outra pergunta é: se as opções fossem “não fazer nada” e “genocídio”, seria mais justo ficar sofrendo nobremente junto com seu povo todo ou matar todos os opressores?
Essa é a escolha que os lefeu oferecem em Arton, uma raça tão depravada, corrupta, maligna e incapaz de negociar que a única opção é o genocídio. Mas os minotauros? Essa não é uma situação tudo ou nada. Nem nunca vai ser.
Admito que minha visão dos minotauros pode estar colorida pelo fato de que meu PC na campanha atual de Tormenta fundou uma cidade Caótica e Boa, com posição estratégica (portais para um monte de lugares), fraca militarmente e próspera, quatro coisas que atrairiam a “proteção” de Tapista… Na verdade, eu até tenho tentado transformar a cidade em suplemento de cenário.
Bem, sobre o genocídio, ele não ocorre durante a guerra necessariamente. Ocorre depois da guerra, e não é uma luta justa. Quando uma das partes já perdeu a guerra, mas a parte vencedora continua matando desnecessariamente, pode-se chamar essa outra parte de imoral e anti-ética, ou, mais próximo da visão medieval, desonrada. Não sei se foi isso que aconteceu nas guerras táuricas, mas está aí minha visão sobre isso.
No caso estava pensando em genocídio por parte de quem PERDEU a guerra contra quem GANHOU. Há meios em cenários de fantasia, afinal.
Todo mundo é, pelos padrões morais da internet, um babaca preconceituoso e racista 😛
Sim e não, a internet parece exagerar mesmo, mas no fundo todo mundo é um pouco preconceituoso e racista em algum aspecto mas não tem a presença de espírito para assumir que não é perfeito.
Acho que as pessoas veem a Aliança negra como monstros porque eles nunca negociaram pacificamente com não-Goblinoides e eles sacrificam pessoas para Ragnar. Mas muito bom artigo ! Saudades de quando escrevia no meu blog kk
Sempre me perguntei como teria sido se os Thwor tivesse conseguido unir os goblinóides através da lógica, que era o plano original.
Legal levantar a questão, Nume.
Outro ponto que eu acho interessantíssimo de se avaliar é que em Arton EXISTEM RAÇAS. Não são apenas etnias de uma mesma raça, com na realidade.
Neste contexto, a questão da superioridade racial ganha uma conotação completamente nova. É preciso reavaliar por completo o questionamento de se a raça A não é realmente superior às raças B, C, D, etc. E isto é algo bem profundo.
De qualquer forma, eu prefiro uma aproximação diferente da questão. A diversidade racial em Arton é abundante. Embora eu ainda trabalhe com preconceito, me gusta mais um mundo onde o cidadão médio irá mais comumente se maravilhar com a beleza exótica de uma medusa, mesmo que tema as serpentes em seus cabelos, do que taxá-la como monstro. Ou, ao menos, quando ela for realmente uma pessoa agradável.
Questão de gosto. =)
P.S: bom ver você na ativa e produtivo de novo. 😉
Tem uma fala sobre isso, do Terry Pratchett. Parafraseando e traduzindo: “Não tinha racismo no Discworld porque, em um mundo com elfos, goblins e fadas, ESPECISMO era muito mais interessante. Negro e branco viviam em perfeita harmonia e atacavam o verde.”
Vocês esqueceram de uma coisa bem simples: RPG é pra ser divertido. Se vc não está se divertindo, está jogando da forma errada. pra q buscar elementos atuais dessa geração mimimi e levar pro rpg? Vamos saber separar as coisas, quando eu vou num bar com os amigos, falamos de tudo, sobre vários aspectos. mas no RPG, sem off-topic por favor.
Opa, Pablo, dá uma lida no último parágrafo. 😉
Escrevi uma história sobre uma vítima de preconceito, que acaba conseguindo usar este a seu favor. A visão mais patente é essa dos goblinoides, mas gosto de usar monstros únicos em campanha, como um observador inteligente, ou um kobolt que comeu essência dracônica demais e se tornou um ótimo feiticeiro.
Acima de tudo, acho que RPG se trata de auto conhecimento e ultrapassar o estereótipo é um grande passo. Mesmo que depois você adote aquela característica como parte de sua identidade.
Afinal de contas, que mal tem ser brasileiro e gostar de futebol, ou ser de Bielefield e ser o quarto Paladino de sua família?
abrir esse link bem esperançoso pesando que seria uma critica de como o cenário de arton é racista e machista no que se tange a ideia de como ele foi feito. tipo, Até hoje fico me perguntando porque raios toda ilustração feminina desse cenário não tem roupa??? wtf??? até achei legal o texto mais foi broxante perto das criticas que eu imaginava ler.
Eu sempre interpretei Alenn Toren Greenfeld como vítima de preconceito racial, uma questão de cor mesmo, ao invés de “raízes bárbaras,” embora a cor dele não deixe de ser. Bem legal o artigo, Nume. Queria um sobre homossexualidade em Arton, será que você consegue?
O Toren sofre uma infinidade de preconceitos, na real. Ele sofre preconceito por ser um plebeu que subiu mais na ordem de cavalaria do que um aristocrata, ele sofre preconceito por não ser nativo de Bielefeld, ele sofre preconceito por ser de uma nação com conflitos históricos com Bielefeld, e finalmente ele sofre preconceito pelas raízes bárbaras, que são um nome bonitinho para preconceito com a cor da pele dele mesmo (os colonos lamnorianos seriam originalmente de pele branca, e os nativos de Ramnor são na grande maioria negros com exceção (até onde sei) dos nativos das Montanhas Uivantes, que são uma mistura de nórdicos com esquimós, provavelmente o que teria acontecido se os vikings tivessem decidido ter uma relação amigável com os esquimós e tivessem ocorrido casamentos entre eles em vez de tentarem matar os esquimós e serem expulsos do Canadá na base da porrada).
Sobre fazer um artigo sobre LGBT em Arton, acho que é possível, mas fica aquele medo de falar besteira que é foda quando tu não é do meio e se mete a falar do negócio, sabe?
Eu entendo. Bom, se você for escrever o artigo e precisar de qualquer ajuda, eu me disponibilizo. Perguntei porque admiro os seus artigos e, sendo gay, adoraria ver o seu ponto de vista nesse assunto que nunca, até once eu sei, foi tocado em material oficial.
Quanto ao Alenn Toren Greenfeld, é verdade, ele sofre muitos preconceitos mesmo… uma pena isso não ser tão explorado, porque tornaria a jornada dele ainda mais inspiradora.
Obrigado por ter respondido ao comentário. 🙂
O Alenn merecia um romance só pra ele, detalhando a jornada dele de guerreiro da União Púrpura até Comandante da Ordem da Luz, ia ser foda pra caralho.
Merecia. Fiquei muito feliz quando ele se tornou sumo-sacerdote, ele e Lisandra foram as jogadas mais dentro daquele suplemento.