Tormenta: o comércio no Mar Negro ou o Curioso Caso de Luvian

Em O Mundo de Arton, na descrição do Mar Negro e as Ilhas Piratas, nos é dito que que os principais portos e centros comerciais do Mar Negro são Calacala, Malpetrim e… Luvian?! A minha surpresa, leitores, se resume a uma coisa muito simples: Luvian não é uma cidade costeira. De fato, ele se encontra a centenas de quilômetros do mar, e a pelo menos 50km do rio navegável mais próximo. Sua citação é obviamente um erro, mas um erro tal que me deixou pensando sobre como funciona o comércio no oeste de Arton.
Você pode estar pensando agora: mas Nume, o que isso importa pro meu guerreiro de sexto nível? E te respondo o seguinte: ah, para de putaria, vai! Meus artigos viajando na maionese sobre coisas completamente não relacionadas com matar monstro estão entre os mais populares do blog. Senta aí e lê que eu sei que tu gosta! Hahaha!
Na academia (não aquela onde tu pode virar monstrão, ô seu Stronda, tô falando da universidade), uma dos acontecimentos mais incomuns é um economista liberal de direita concordando em alguma coisa com um historiador socialista de esquerda. Curiosamente, ambos concordam com a citação clássica de Adam Smith de que “o comércio é a força vital das nações”. O comércio é, na opinião de historiadores e economistas, mais importante para determinar o futuro de nações do que todos os outros fatores, incluindo a guerra. Mas o comércio é facilmente influenciado por, bem, quase tudo. Guerra, pragas, má administração, boa administração, o peido do zé da esquina no momento errado. Comércio é um carinha muito sensível, mas bastante poderoso também. Se o comércio não vai bem, isso afeta a política de toda a região, governos ascendem e caem, guerras começam e terminam, alguém enfia uma rolha no cu do zé da esquina, a pressão econômica de uma crise do comércio é o bastante para forçar mudanças que visam corrigir os problemas em quase qualquer sociedade.
Por exemplo, vamos pensar no caso de Gorendill. A antiga cidade do leitor da Revista Tormenta foi descrita como uma cidade próspera com boa localização e uma fruta única da região como principal produto de exportação. Mas isto foi em 1400, quando ela ficava às margens de um rio navegável que lhe dava acesso ao Rio dos Deuses e ao Mar Negro, que então dão acesso a portos da maioria das nações do centro-oeste de Arton. Conforme o tempo foi passando, a situação de Gorendill foi ficando mais complicada e hoje em dia sua antiga prosperidade já deve ter desaparecido por completo. Duas razões principais para isto. Em 1402, a formação de uma área de Tormenta em Zakharov cortou a ligação direta de Gorendill com o Rio dos Deuses, agora um navio saído de Gorendill teria que descer até o Mar Negro, transferir sua carga para um navio capaz de viagens marinhas (com mais armas, o Mar Negro é famoso por seus piratas, afinal de contas), que então cruzaria o oeste de Arton até encontrar novamente o Rio dos Deuses. Uma viagem mais longa, perigosa e cara. Mas pelo menos eles ainda tinham acesso ao rio mais importante para o comércio em Arton. Só que em 1406 aconteceram as Guerras Táuricas e então em 1407 com a vitória de Tapista foi fundado o Império de Tauron, forçando Gorendill a transportar suas cargas através do território de outra coalização, pagando impostos extras, para alcançar território que nesse ponto chega a ser mais barato transportar por terra. Com tantos problemas, é pouco provável que o prefeito esteja contando com muito suporte dos nobres locais…
Mas embora seja interessante por si só, a situação de Gorendill é importante para determinar qual é a cidade que tem o terceiro porto mais importante do Mar Negro. Na minha opinião, esse porto é, provavelmente, Nilo, em Ahlen. O que faz todo o sentido se pensarmos que Calacala é o principal porto do Império de Tauron, Nilo é o único porto digno de nota no Reinado continental (Collen tem bons portos, mas é uma ilha), e Malpetrim é uma cidade-estado que é capaz de fazer comércio com ambas as coalizões, além de ser o melhor porto para se alcançar Galrasia. Além disso, Vectora passa por Nilo uma vez por ano, e as duas outras cidades visitadas por Vectora no Mar Negro são, adivinhem, Malpetrim e Calacala.
Agora que temos nossa trindade, vamos analisar o comércio no Mar Negro com mais detalhes, começando por Nilo. A cidade ahleniense é o entreposto comercial perfeito para o Reinado, é próximo o bastante para receber e enviar cargas para Collen e Tyrondir no Mar de Flokk, mas também fica na extremidade do Mar Negro, onde pode intermediar o transporte de cargas para e do Império de Tauron. Além disso, é o porto marítimo mais próximo de Valkaria por terra, através da rota através de Cosamhir, capital de Tyrondir, e também por via fluvial através de Gorendill. De Nilo, temos uma rota de comércio marítima principal visível no mapa: Malpetrim. Várias outras rotas conectam Nilo com Var Raan, Gorendill e Molok, mas Malpetrim é a principal por um motivo muito simples: é o entreposto comercial entre o Império de Tauron e o Reinado.
Como cidade-estado livre, Malpetrim tem uma posição especial dentro do Mar Negro, ela é a conexão comercial entre o Reinado e o Império, somada à sua função original como porto de saída e retorno para aventureiros que exploram e recuperam artefatos históricos, biológicos e mágicos de Galrasia, a atual encarnação de Malpetrim é facilmente uma das cidades com o maior volume de tráfego comercial de Arton depois da própria Vectora. Da cidade saem rotas que a ligam com os principais portos do Império: Trandia, Hocky e Calacala.
A posição de Calacala é especial, pois é um porto que fica na entrada para o Rio dos Deuses, o maior de Arton, e a partir do qual a cidade obtêm acesso fluvial aos portos de todos os países da Liga Independente e à Namalkah e Yuden. Se considerarmos que existe um embargo entre Reinado e Império, isto coloca a Liga Independente em uma posição como intermediária entre os dois, o que deve ter garantido certo enriquecimento dos países da coalizão (Erov Kadal deve ter escolhido onde por seus esforços diplomáticos a dedo).
Mas espera aí. Vocês notaram como as áreas de Tormenta alteraram o fluxo do comércio? A de Trebuck corta o comércio fluvial de Sckharshantallas com o restante de Arton, aumentando a ambição de Sckhar por terras ao sul para aumentar suas riquezas. A de Zakharov corta o acesso fluvial de Deheon ao Rio dos Deuses (e diminuindo então sua autoridade sob os países que mais tarde formariam a Liga Independente), forçando as rotas comerciais a passar por Tapista e a enriquecendo os minotauros o bastante para eles pagarem por uma guerra de conquista… é quase como se os Lordes soubessem exatamente onde posicionar suas forças para enfraquecer as estruturas de poder artonianas num momento em que o que Arton mais precisasse fosse união… ah, é, foi exatamente isto que eles fizeram.
A Tormenta é extremamente inteligente, afinal de contas, e deve saber que o comércio é a força vital das nações. E vocês achando que não ia ter nada interessante pra usar em jogo, hein? Olha o tamanho do plot. 😉

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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5 Resultados

  1. Caio disse:

    o.O maldita Tormenta que já entende tanto assim das sutilezas das relações artonianas! Lembrando que comércio é um tipo de interação social associado a espécies “avançadas”, que já entendem uma estrutura social definida e desenvolveram o mínimo de linguagem e entendimento sobre produção, necessidades e posses materiais. Pra uma cultura que já transcendeu isso há muito tempo os lefeu estão bem versados em estratégias de combate militar, político, econômico e financeiro!

    • Eles conseguem compreender essas coisas porque, em sua jornada para a perfeição, devem ter passado por um período onde comércio foi um desafio. Se não, o objetivo deles em Arton, de encontrar algo “novo” para fazer, não seria se tornar deuses, mas se tornar os donos de todas as empresas da Forbes 500. XD
      Porra, como seria se dominar o comércio fosse o objetivo da Tormenta em Arton? Hmm…

  2. Vitor Faccio disse:

    Passando só pra parabenizar mesmo, Nume!! O loot de ideias que suas viagens à Terra Mágica da Maionese trouxeram está sendo bastante útil em minhas aventuras!! Obrigado!!!

  3. Bruno Kopte disse:

    Hmm, interessante. Área de Tormenta já é o meu suplemento favorito, mas nuances assim teriam sido maravilhosas.
    Mas e quanto às localizações propícias para portos? Não se pode acomodar qualquer embarcação em qualquer lugar.
    (Aliás, as galés de Tapista são polirremes como o império romano, ou pelo menos eles usam dromons, liburnas e até galeaças de acordo com a idade média?)
    Uma coisa que explorei e talvez tu pudesse aplicar em Arton era uma maneira de fortalecer e acentuar Marah: a idéia de que paz favorece comércio e vice-versa.

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