Resenha: Faroeste Caboclo
Quando eu tinha lá meus treze ou quatorze anos (parece que foi semana passada), você podia dividir os alunos em qualquer turma escolar em dois grupos: aqueles que sabiam cantar de cor a música Faroeste Caboclo, da Legião Urbana, e os que não sabiam. De minha parte, tenho que confessar que até hoje pertenço ao segundo grupo (nada específico contra Legião, tem lá suas músicas legais, mas eu sempre fui muito mais da turma dos Engenheiros do Hawaii [blé pra quem não gosta]); mas isso ilustra bem a importância da música, provavelmente a mais conhecida da banda, e que consegue isso mesmo sendo um épico de quase dez minutos sem refrão, contando a tragédia de João de Santo Cristo desde a sua saída do interior baiano até a morte em um duelo com o traficante Jeremias na periferia de Brasília.
Dada essa importância e popularidade, transformar a história em um filme soa até um pouco óbvio, e surpreende que tenha demorado tanto para acontecer. O que surpreende mais, no entanto, é que o resultado não tenha sido um mero filme comercial de verão, mas sim uma obra de bastante personalidade e originalidade, que entretém de verdade e com inteligência, de um jeito que o cinema nacional parecia ter esquecido como se faz.
Muito se deve ao trabalho do diretor Renê Sampaio, que já no longa de estreia se mostra incrivelmente seguro e cuidadoso nas suas escolhas, bem como toda a sua equipe. Da montagem à fotografia, tudo se combina para formar uma narrativa ambiciosa, em que o passado e o presente do protagonista se misturam em cortes de cena muito bem executados, aproveitando, por exemplo, o subir de um balde de poço ou o levantar de uma arma para ir e voltar no tempo de forma fluida, sempre surpreendendo e por vezes quase enganando o público. Cenas extremamente tocantes e sensíveis, como a da morte silenciosa da mãe do protagonista, se misturam com outras ríspidas e duras, que buscam sua ascendência na crueza dos faroestes italianos, em especial os do mestre Sérgio Leone.
Coroando estas qualidades, o roteiro do filme faz uma adaptação até bastante fiel à história contada na música. Claro que são necessários alguns ajustes – em especial ampliando o papel e a importância de Maria Lúcia, até para que a Ísis Valverde possa adicionar, ahem, esteticamente mais ao filme -, mas de maneira geral você encontrará todos os elementos principais da letra de Renato Russo lá, da morte do seu pai com um tiro de soldado, passando pelas luzes de natal de Brasília, até o duelo final épico em um campinho de futebol de várzea. A música original também se faz presente de diversas formas, através de trechos soltos que funcionam como trilha sonora em alguns momentos, às vezes dando um clima até um pouco tarantinesco para o filme, até a presença de uma certa banda em uma festa em Brasília que claramente está lá para representar os primórdios da Legião Urbana.
O resultado é um legítimo western feijoada contemporâneo, que se estrutura dentro de todos os elementos do gênero, dos cenários semi-desérticos e desolados até a vingança como força motriz do enredo. Se a atuação de Fabrício Bolineira como protagonista não é exatamente muito virtuosa, a sua força está em incorporar este elemento, dando ao seu João de Santo Cristo ares de um Franco Nero negro (ok, outro Franco Nero negro), sempre raivoso e objetivo na sua busca pela retribuição do que sofreu. Felipe Abib também merece destaque no papel do traficante e aprendiz de sociopata Jeremias, bem como o uruguaio César Troncoso e o tarimbado Antônio Calloni como os respectivos parceiros / mentores dos dois personagens principais.
Acho que poucas coisas realmente destoam do resto. Fosse eu o diretor, por exemplo, talvez eliminasse as narrações em off do personagem principal ao longo da maior parte do filme (manteria apenas a da apresentação), o que foge da simplicidade e objetividade que ele consegue imprimir ao desenvolvimento da trama na maior parte do tempo. Senti falta também do discurso final de João de Santo Cristo para Jeremias, sobre como ele é homem e não atira pelas costas, que é bastante forte na música e poderia ter sido representado também no filme. De maneira geral, no entanto, nada disso chega a arranhar as qualidades que ele possui.
A soma final é que Faroeste Caboclo é realmente um filme ótimo, que quebra de forma muito positiva todas as expectativas a seu respeito. Entretém e satisfaz de verdade, sem cair nos clichês do cinema de arte ou denúncia e muito menos naquela acefalia das comédias nacionais mais recentes.
Tava pensando… será que rola uma versão de Faroeste Caboclo pra algum RPG indie? Tipo sei lá, Dust Devils, Fiasco, ou Violentina?
Até que um Dust Devils combina bem com a história, acho.