O Continente do Santo Elo
Hoje, dia 22 de Abril, para quem não sabe, se comemora a data do descobrimento do Brasil. Independente da sua visão sobre isso – se foi de fato um “descobrimento”, ou se assemelha mais a uma conquista de uma terra que já era habitada por outros povos -, é uma data relevante, pois, de uma forma ou de outra, é o início da nossa história enquanto povo. E, em meio a tanto desdém que existe a respeito à história e folclore nacionais como temas de RPGs e histórias de fantasia, é interessante resgatar um evento como esse e mostrar como ele pode, sim, dar margem a histórias muito interessantes. Pensem na aventura que foi para os próprios europeus saírem do conforto de suas terras e desbravar o oceano, muitas vezes sem muita ideia do que poderiam encontrar; só isso já não daria uma campanha e tanto?
Enfim, foi pensando nisso que, algum tempo atrás, na época da Iniciativa 3D&T Alpha, eu desenvolvi este pequeno mini-cenário, que toma como base as origens da nossa história para criar um ambiente de fantasia e aventuras: o Continente do Santo Elo. É um continente fantástico que pode ser adicionado em qualquer cenário – de Tormenta a Meliny ou Tagmar ou qualquer outro -, inspirado na história do descobrimento e colonização iniciais do Brasil. Pense nele mais ou menos como o que aconteceria se os habitantes teu cenário da fantasia européia padrão preferido de repente descobrisse um continente novo, como aconteceu mesmo com a América nos séculos XV e XVI. Ele é descrito em três textos curtos, sendo este o primeiro, dando as diretrizes gerais do que ele é e como incluí-lo em uma campanha; o segundo falando sobre os personagens que o habitam, incluindo uma nova vantagem única e alguns kits; e o último falando dos seus perigos, incluindo algumas novas criaturas para colocar nos jogos.
O Continente do Santo Elo
Saindo do continente mais a oeste do seu mundo fantástico preferido e atravessando centenas de quilômetros de oceano na mesma direção, uma embarcação eventualmente chegará até uma grande massa de terra. Quem estiver de vigia no momento da aproximação verá primeiro um grande monte, muito alto e redondo, e serras baixas ao sul dele, de terra chã, com grandes arvoredos – é o continente do Santo Elo que se aproxima no horizonte.
Desembarcando na costa, os descobridores estarão de frente para uma vasta floresta tropical, dominando todo o horizonte de norte a sul, até onde a vista alcançar. Adentrá-la é perigoso: há toda sorte de animais selvagens, além de perigos invisíveis como mosquitos e outros insetos venenosos. Contorná-la, no entanto, é impossível – ao norte, ela simplesmente ocupa todo o contorno do continente, virando-se junto com ele para o oeste; e ao sul, seriam várias semanas de viagem até a vegetação começar a diminuir, e ela gradualmente se converter em um grande deserto gelado.
Felizmente, há quem ajude os nobres navegadores a sobreviverem nesta terra desconhecida. Todo o litoral é habitado por uma raça de humanóides nativos locais, com quem provavelmente travarão contato assim que descerem. Pela sua baixa estatura e traços gerais, com olhos amendoados e orelhas pontudas, é fácil reconhecê-los como uma variante dos elfos do velho continente. No entanto, a pele avermelhada, a aparência rude e os hábitos selvagens e primitivos em pouco lembram as finas tradições da raça élfica – são os elfos vermelhos, como virão a ser conhecidos.
Estes elfos são a raça dominante do novo continente, ou ao menos é a impressão que se tem ao explorar a região mais próxima à costa. São divididos em dezenas de pequenas tribos de caçadores e coletores, e estão espalhadas por toda a área de frente para o mar. Apesar da divisão política, no entanto, possuem uma cultura comum, com uma mesma língua, apenas com pequenas variações locais, além de uma religião unificada fundamentada na adoração de pequenos deuses da natureza, como o deus das chuvas, dos rios ou da floresta. São eles que, muito provavelmente, recepcionarão os descobridores, e o primeiro contato travado definirá muito do que acontecerá a partir daí.
Os limites do continente não são muito claros, pelo menos para quem chega da costa. Pelo norte, ele faz uma curva gradual para oeste, e segue por quilômetros nessa direção, passando por um pequeno conjunto de ilhas que formam a foz de um grande rio adentrando a floresta. Ao sul ele também segue por quilômetros de forma relativamente constante e retilínea, até a vegetação começar a diminuir. Por fim, atravessar a floresta, em um primeiro momento, parecerá uma tarefa impossível, tanto pela densa vegetação, que dificulta muito a travessia, como pelo seu extenso comprimento, adentrando o continente por centenas de quilômetros. Além disso, há de se levar em conta os perigos das matas, desde predadores sorrateiros até as tribos de elfos selvagens que nela habitam, muito temidos pelos elfos da costa. Uma expedição que se empenhe em atravessá-la, no entanto, eventualmente chegará, após meses de viagens e inúmeras baixas, em uma grande cordilheira de montanhas, que marca a sua fronteira mais a oeste.
Aventurando-se no Santo Elo
Você deve notar que o continente do Santo Elo é descrito de forma bastante superficial, basicamente uma idéia central e alguns materiais de apoio. Isso é feito de forma proposital, por dois motivos principais. Primeiro, por questões de tempo e espaço – como ele é apresentado em pequenos artigos, e não em um livro de cenário completo, simplesmente não haveria como detalhá-lo profundamente. E segundo, para que o próprio mestre possa desenvolvê-lo com mais liberdade, à medida que as campanhas envolvendo ele se desenvolvem – afinal, para os personagens, se trata de uma terra completamente estranha e desconhecida, repleta de mistérios e possibilidades, e os jogadores deveriam ter a impressão de nunca saber o que enfrentarão a seguir. Assim, cabe ao mestre definir exatamente o que se esconde nas profundezas da floresta e além dela, e que tipo de aventuras e tesouros poderão ser encontrados, desde a procura por minas de ouro no coração do continente até o contato com a exótica civilização de elfos da montanha que vive nas cordilheiras a oeste.
Isso posto, há incontáveis possibilidades de histórias e aventuras em um novo continente. Os elfos do litoral possuem diversas lendas sobre o que se encontra na floresta, de monstros impressionantes a civilizações perdidas e riquezas escondidas, e o contato com eles pode ser o bastante para instigar a curiosidade de explorá-la a fundo. Mesmo ficando na costa, as tentativas de colonização (ou de evitá-la), bem como as intrigas e conflitos entre as diversas tribos élficas, podem ser o bastante para campanhas inteiras. A seguir, no entanto, discorro um pouco sobre dois cenários principais de como o Santo Elo pode ser aproveitado em jogo.
O Descobrimento
A primeira forma de se aventurar no continente do Santo Elo é envolvendo os jogadores no seu próprio descobrimento pelo velho mundo. Isso pode ser feito dentro de uma campanha inteiramente nova, com personagens criados já tendo em vista esse objetivo, ou como o desdobramento de um jogo em andamento, com personagens experientes que, após inúmeras aventuras em terra firme, se lançam ao mar em busca do desconhecido. De todo modo, será certamente um acontecimento marcante – um continente novo não é algo que se descobre todo o dia, e isso deve trazer grandes conseqüências para um mundo pequeno em termos de extensão, como Arton ou Tagmar, por exemplo. Colocar os jogadores no centro de um evento desse porte seria uma experiência única, dando aos personagens a chance de escreverem seus nomes na história do cenário.
É pouco provável que o descobrimento seja intencional. Viagens marítimas são caras, e a tecnologia para cruzar oceanos não é desenvolvida por acidente. É possível que algum nobre excêntrico aceite financiar um empreendimento desse porte apenas pela curiosidade sobre o que existe além dos mares mais distantes, dando a um grupo de corajosos aventureiros a oportunidade de ir audaciosamente onde nenhum artoniano/tagmariano/allansiano jamais esteve, mas isso é improvável. Uma possibilidade mais verossímil seria a de já existir indícios de que algo possa ser encontrado, de forma que a viagem aconteça em cima de uma possibilidade real – em Arton, por exemplo, existem as histórias e lendas sobre a origem da raça élfica, que não teria sido criada no continente mas vindo pelo mar de uma terra distante; isso poderia bastar para um grupo de elfos, desencantados com as tragédias recentes que se abateram sobre a raça, ter a idéia de se lançar ao oceano atrás das terras ancestrais do seu povo.
O mais plausível, no entanto, ainda seria um descobrimento acidental. Muitas podem ser as razões: desde um empreendimento científico para provar que o mundo é redondo, com uma tentativa de chegar à costa leste navegando para oeste sendo bloqueada por uma massa de terra desconhecida; até navegações comerciais ou militares desviadas por tempestades e correntes marítimas inesperadas, que acabem chegando às novas terras contra a sua vontade. Uma tentativa de circunavegar um continente, por exemplo, por qualquer razão que fosse, poderia ser facilmente desviada, acidental ou intencionalmente, e se ver perdida em alto-mar, até que, após dias de viagem, quando os suprimentos já começassem a acabar e a tripulação ameaçasse se amotinar, a terra-firme fosse avistada.
Qualquer que seja a forma e a razão da descoberta, no entanto, a navegação até lá já preencheria facilmente uma campanha inteira. O dia-a-dia em alto-mar tem grandes possibilidades de conflito, do combate contra monstros marinhos até tentativas de motins da tripulação, especialmente se houverem indícios claros de que estão em uma viagem insana em busca de um continente que talvez nem exista. Outras terras desconhecidas também podem estar espalhadas pelo caminho, como pequenas ilhas habitadas por povos exóticos com quem os personagens podem travar contato. Eventualmente, no entanto, chegarão ao novo continente, entrando em contato com as tribos que habitam o litoral.
A partir daí, tudo dependerá dos jogadores. Os primeiros contatos poderão ser pacíficos, realizando trocas e tentando criar laços com as tribos de elfos vermelhos, ou violentos, enfrentando-os e dominando-os logo que chegarem à costa. São eles que definirão os rumos da colonização, seja o de uma ocupação e povoamento das novas terras, dizimando os antigos habitantes, ou de uma exploração dos seus recursos naturais, inclusive a mão-de-obra nativa escravizada.
Terão a oportunidade também de dar um nome ao novo continente: este material genericamente sugere o nome de Santo Elo, que pode significar qualquer coisa – desde o elo perdido da raça élfica até alguma profecia antiga envolvendo civilizações ancestrais adoradoras de deuses esquecidos; os personagens que o descobrirem, no entanto, podem nomeá-lo de outra forma se preferirem, homenageando deuses de que sejam devotos ou personagens e símbolos que sejam marcantes para as suas histórias pessoais (inclusive, se for o caso, eles mesmos). E não se esqueça, é claro, de todas as implicações políticas, econômicas e religiosas da descoberta no velho mundo, desde o envio de missões de diversas igrejas para catequizar os novos devotos em potencial até a reação dos elfos comuns à descoberta dos primitivos elfos vermelhos, que podem ser seus ancestrais há muito esquecidos. Aí, no entanto, já nos encontramos no cenário seguinte.
A Colonização
Uma segunda forma de realizar uma campanha no Santo Elo é com o continente já descoberto, seja pelos personagens dos jogadores ou por NPCs, e a sua colonização tendo se iniciado. Ela pode começar e se desenvolver de forma completamente diferente dependendo de como forem os primeiros contatos com os nativos, e que tipo de ocupação do território se seguiu.
Uma colônia de povoamento seguiria os moldes da região mais ao norte da América do Norte, que daria origem aos Estados Unidos. Seria feita, provavelmente, em uma região pobre, sem grandes recursos naturais, ou por nações mais voltadas para assuntos do velho mundo, sem interesse em explorar diretamente um novo continente – por exemplo, um reino envolvido em muitas guerras, ou com grandes problemas internos que desviem sua atenção. Seus ocupantes viriam de grupos perseguidos e desgarrados, que se sentiriam mais inclinados a buscar a sorte em um novo mundo, livre dos preconceitos e amarras da sociedade tradicional; em Arton, por exemplo, os elfos sem pátria seriam bons candidatos a se arriscar em uma empreitada desse tipo, bem como as raças mestiças, como meio-elfos ou meio-orcs. Outra possibilidade é que o novo continente se transformasse em uma espécie de prisão, para onde seriam enviados os condenados ao exílio, como aconteceu na Guiana Francesa e na Austrália, por exemplo. Em todo o caso, a campanha provavelmente se desenvolveria com os personagens tentando se estabelecer e adaptar às novas terras, formando pequenas comunidades agrícolas, e travando contato amistoso ou violento com aqueles que já ocupavam a região.
O mais provável, no entanto, dada as riquezas naturais visíveis já da costa, é que a colonização do Santo Elo se desse com fins de exploração. O melhor modelo, aqui, seria o mesmo da primeira ocupação do Brasil pelos portugueses, com a divisão do território em capitanias concedidas a donatários para explorarem a produção agrícola, com o compromisso de pagar um quinto dos rendimentos à coroa no velho continente. É fácil imaginar nações expansionistas e imperialistas, voltadas para a conquista de novos territórios, como Tapista, por exemplo, realizando uma ocupação deste tipo, abusando da mão-de-obra escrava, em um primeiro momento buscada entre os próprios nativos do continente e posteriormente trazidas de outras terras próximas ao velho mundo. Nações mercantis, atrás de novos produtos para vender e oportunidades comerciais, também poderiam desenvolver colônias com essa função. E, mesmo em uma colônia de povoamento, tudo mudaria, é claro, se fossem encontrados certos tipos de riqueza no interior do continente, como jazidas de ouro, prata e outros minérios preciosos, o que levaria a um esforço de colonização e exploração destes recursos muito mais pesado e violento.
Uma campanha em um cenário assim poderia acontecer de muitas maneiras. Os personagens, por exemplo, poderiam receber sesmarias para explorar, tendo que lidar com os custos e problemas da sua administração; ou apenas um deles poderia ser o donatário, enquanto os demais seriam seus capangas e feitores. Poderiam ser, também, escravos trazidos de outros continentes, que eventualmente fogem de seus senhores e estabelecem sociedades tribais em meio à floresta, buscando resgatar suas tradições antigas enquanto sobrevivem às investidas para recapturá-los. Ou, ainda, poderiam ser meros aventureiros do velho mundo em busca de fama e fortuna, montando base em uma grande cidade portuária e adentrando as matas atrás de tesouros de civilizações perdidas e jazidas escondidas de minérios preciosos.
Também não se pode esquecer da política e intrigas das metrópoles, que certamente influenciarão a colonização. Mesmo que a descoberta e a primeira ocupação envolvam um único reino, é improvável que os demais se mantenham alheios à ela por muito tempo. Especialmente se houverem muitas riquezas a explorar, o mais provável é que a cobiça de muitos deles se volte para as novas terras, seja para dividir a sua ocupação, gerando longas guerras pela conquista de territórios, seja apenas para predar em cima da prosperidade alheia. Todo um universo de pirataria pode facilmente se desenvolver nos mares entre os continentes, com corsários e bucaneiros atacando os navios que levam as riquezas do novo mundo para o velho, criando muitas oportunidades de histórias e aventuras.
E no meio de tudo isso, é claro, as sociedades coloniais se desenvolverão, misturando as raças do velho mundo às do novo. Aos poucos, as novas elites locais, frutos dessa mestiçagem cultural, podem começar a se questionar o quanto de fato precisam da metrópole, e verem um desejo de independência começar a crescer entre alguns dos seus líderes. Pequenas revoltas podem ocorrer em alguns pontos específicos, fragilizando o poder central. E tudo culminaria em… Bem, aí, no entanto, já estaremos em um outro cenário.
Fontes de Inspiração
Existem muitas fontes onde você pegar o clima do continente do Santo Elo, se estiver com dificuldades de imaginar histórias e aventuras dentro dele. Qualquer livro de história do Brasil irá lhe dar um retrato detalhado dos primeiros anos da colonização do país, que você pode usar para organizar o cenário de maneira geral, definindo as principais cidades (provavelmente localizadas próximas ao mar, para servir de porto, como Salvador e Olinda), bem como detalhando melhor a cultura das diversas tribos de elfos vermelhos. A literatura da época também é cheia de relatos a respeito dos primeiros contatos dos europeus com os indígenas, desde a carta de Pero Vaz de Caminha até os diários de viagem de Hans Staden, que são relativamente fáceis de encontrar nas livrarias em edições baratas.
Já na literatura mais contemporânea, uma ótima sugestão é a série de livros de bolso Duplo Fantasia Heróica, da editora Devir. Os dois volumes já lançados trazem cada um duas histórias, sendo uma delas estrelada pela dupla Gerard van Oost e Oludara, os protagonistas da Bandeira do Elefante e da Arara criada pelo norte-americano radicado no Brasil Christopher Kastensmidt, e a outra pelo índio Tajerê e seu universo pré-colombiano de borduna & feitiçaria, que também aparecem em outras obras do autor Roberto de Sousa Causo.
O tema também é razoavelmente explorado no cinema. A superprodução internacional A Missão, por exemplo, estrelada por Robert DeNiro, reconstrói o ambiente das missões jesuítas no Brasil colônia. Do cinema nacional, destaco o ótimo Desmundo, falado em português arcaico, a comédia Caramuru – A Invenção do Brasil, e No Coração dos Deuses, que chegou a virar um livro-jogo para GURPS. E além destes, há ainda a série de televisão A Muralha, disponível em DVD, que trata dos conflitos entre bandeirantes e índios no começo da colonização do país.
Por fim, já no campo dos RPGs, o clássico sobre o assunto é O Desafio dos Bandeirantes, que apresenta o cenário da Terra de Santa Cruz, inspirado no Brasil colonial. Se for possível ter acesso aos livros do jogo, ele traz dezenas de boas idéias de encontros, personagens e criaturas. Além dele, há o mini-GURPS e a sua série de livros históricos, com destaque para O Descobrimento do Brasil e Entradas e Bandeiras, que tratam do período principal em que o Santo Elo é inspirado, e também Quilombo dos Palmares, para quem quiser tratar do tema da escravidão.
E por enquanto é isso. Aguardem pela segunda parte do material, que está programada para a próxima semana, e trará informações, regras e dicas para criar personagens nativos ou desbravadores do continente do Santo Elo.
Interessante você retomar esse ponto: um cenário num Brasil Mitológico. Hi-Brazil da Daemon e, antes dele, o Desafio dos Bandeirantes, da extinta GSA introduziram mundos bem interessantes. E eu estou desenvolvendo um mundo semelhante.
Quero jogar! 🙂