A Viagem de Kwasi Benefo
Agora vamos contar a estória de Kwasi Benefo e trágico rito de passagem que é a sua vida. Benefo era um jovem de linhagem achanti, o gênio nas artes da agricultura e pecuária que enriqueceu e fez escola antes mesmo de as espinhas abandonarem-lhe o belo rosto. Faltava-lhe apenas uma mulher que pudesse dar-lhe filhos a quem deixaria seu rico legado. Benquisto e famoso entre os seus, praticamente uma celebridade, Kwasi Benefo escolhou uma linda mulher que o encantou, e a desposou em uma grande festa na comunidade. E recolheu-se com a nova esposa e viveu feliz por um tempo.
No entanto, ocorreu de sua mulher adoecer e morrer. Benefo ficou muito triste. Procurou por ela em toda parte, mas seu coração não pertencia mais ao mundo dos vivos. Comprou para ela um amoasie – peça seda vegetal para cobrir os genitais femininos – e uma belíssima coleira de contas para lhe colocar na cintura, e com essas finas peças sua esposa foi enterrada.
Ora, Kwasi Benefo era querido por todos, portanto não faltaram ombros amigos para confortar-lhe; “Irmão, você é jovem, bonito e rico. Não chore para sempre! Os espíritos o agraciarão com uma mulher ainda mais bela!”, diziam-lhe os irmãos e amigos.
Kwasi Benefo conseguiu superar. Viajou para outra aldeia, e descobriu que lá também era famoso. Rapidamente conseguiu outra esposa, tão ou mais bela que a anterior. Trouxe-a para sua casa, e voltou a se sentir satisfeito. Sua nova esposa era de excelente índole e os dois se amaram muito. Um dia, porém, aconteceu de sua esposa ser atacada por uma febre sinistra, da qual não se curou e morreu. Kwasi Benefo comprou também para ela uma amoasie e contas, com as quais foi enterrada. E trancou-se em casa, inconsolável, e abandonou seus ricos campos.
Os familiares da moça que havia morrido souberam que Kwasi Benefo havia desistido de viver e que ninguém conseguia sequer tirá-lo de casa. Mandaram, portanto, mensageiros ao jovem gênio da agricultura, oferecendo-lhe sua filha mais nova – “Pode ficar de luto”, disseram-lhe, “mas não para a vida toda. Reconhecemos que ama muito nossa filha falecida, mas o amor permanece para sempre no coração, enquanto os mortos vivem na terra dos mortos. Volte para o mundo dos vivos!”
Kwasi Benefo agradeceu a todos que tentaram animá-lo; pediu um tempo para refletir, e então retornaria.
Ora, o jovem prodígio enfim sentiu-se disposto outra vez, apesar de ainda carregar no íntimo o luto de duas esposas mortas; viajou novamente até a aldeia da família de sua segunda esposa, com cuja irmã haveria de se casar. Uniram-se em alegre matrimônio, e desta vez a esposa engravidou e lhe presenteou com um filho muito bonito. Benefo realizou uma grande festa, em ambas as aldeias, e distribuiu presentes, comida e bebida a vontade. “Levo uma vida boa!”, clamava para si mesmo.
Porém… um dia, Kwasi Benefo voltava de seus ofícios no campo, quando lhe correram para contar que uma árvore havia caído. Ele indagou, o que há de extraordinário nisso…? E aí seu coração ficou apertado e exigiu que lhe contassem o que realmente havia acontecido. “Senhor”, começaram, com muito cuidado, “a senhora sua esposa estava voltando do rio, deitou-se numa árvore para descansar. Só que espíritos maus enfraqueceram as raízes e a árvore caiu sobre ela!”.
Benefo correu até sua casa, e lá encontrou sua mulher sem vida. Soltou um urro pavoroso de dor e frustração e então caiu e não se mexeu mais, como se morto também estivesse. “Ai de nós, Kwasi Benefo morreu!”, gritaram as mulheres, mas os curandeiros o examinaram e disseram: “Ele está vivo, mas sua alma não deseja mais viver em nosso mundo”. Trabalharam então em cima dele com poções e orações, e conseguiram revivê-lo – e ele não parecia muito agradecido por isso. No dia seguinte, realizou todos os procedimentos funerais e enterrou sua terceira esposa com a amoasie e as contas.
Alguns dias depois, descobriram que Kwasi Benefo havia abandonado suas opulentas terras e rebanho, deixando tudo para o filho – que deveria ser criado dali por diante pela família de suas duas últimas esposas. Embrenhou-se na mata e renunciou a tudo o que havia construído e conquistado até então – “De que me adiantam todas as riquezas que consegui se fui amaldiçoado pelos espíritos da morte? No fim, até meu filho tirariam! Que família me confiaria agora a mão de sua família? Até meus irmãos passaram a me olhar com desconfiança! Sou uma maldição de azar para todos ao meu redor, é melhor para todo mundo que eu suma para bem longe!” – e torturou-se dia e noite com pensamentos semelhantes, até alcançar um ermo nalgum lugar longínquo, onde construiu uma casa tosca e se instalou. Passou a viver de caça miúda. sementes e raízes. Suas roupas de fino tecido se esfarraparam, adquiriu um aspecto mais miserável que o mais miserável de sua terra natal. Evitava contato com qualquer outra pessoa e viveu em completa solidão por muitos, muitos anos. Até se esqueceu que se chamava Kwasi Benefo.
Quando finalmente o exílio auto-imposto tornou-se insuportável, abandonou sua casa tosca e viajou para uma vila distante onde ninguém o conhecia. Em pouco tempo, adiquiriu certa notoriedade e fama devido ao seu talento monstruoso para lidar com o campo. Acabou por cair nos encantos de uma jovem que o admirava e então se casou pela quarta vez. Só que… sua bonita esposa adoeceu e morreu. Kwasi Benefo enterrou-a com a amoasie e as contas, assim como havia feito com as três esposas antes desta, e foi embora daquela aldeia sem se despedir de ninguém.
Voltou para aldeia onde havia nascido, e todos se espantaram! Acharam que havia morrido, e começaram a preparar uma grande festa para receber seu filho outrora tão ilustre. Benefo, contudo, rejeitou todas as festividades, anunciando que havia retornado apenas para morrer na terra de seus ancestrais.
Passou-se mais um tempo. Certa noite, numa dessas tantas em que Kwasi Benefo não conseguia dormir, atormentado por esíritos do pesadelo, ocorreu-lhe a ideia de visitar o Assamandô, a terra dos mortos, para rever as quatro jovens que foram suas esposas. Levantou-se imediatamente e deixou a vila, sem avisar ninguém, e dirigiu-se célere até as profundezas da floresta. Alcançou finalmente o Nsamandau, local onde os mortos são enterrados. Descobriu-se tateando em total escuridão, onde não apenas a visão era inútil, todos os demais quatro sentidos pareciam simplesmente não funcionar ali. Mas Benefo não sentia medo, não sentia nada, não tinha mais motivo para viver. Continuou em frente, não sabia dizer por quanto tempo, não importava, continuou andando, andando, andando…
…até alcançar o que parecia ser um riacho. Um rio, na verdade. Bem grande. Uma luz tênue pairava ao redor, vindo sabe-se lá de onde. Os sentidos timidamente foram voltando a funcionar. Descobriu que o rio era mesmo grande e violento. Tentou atravessá-lo, mas suas águas eram fundas e agressivas. Sentou-se então, sem saber o que fazer.
Levou então um borrifo na cara, e levantou-se imediatamente. Percebeu, do outro lado da margem, uma velha sentada numa pedra; ao seu lado, havia uma panela cheia de roupas femininas íntimas e fileiras de contas. Benefo entendeu que aquela velha era Amokye, a que recebia as almas das mulheres. O preço para uma mulher entrar no Assamandô era o amoasie e as contas – e por isso eram enterradas sempre com essas peças, para que pudessem pagar sua passagem para o mundo dos mortos.
A Amokye pergontou a Benefo: “Por que você está aqui?”
E ele respondeu: “Vim ver minhas mulheres. Não quero mais viver, pois toda mulher que mora comigo morre. Não consigo mais comer, não consigo mais dormir, não consigo mais sorrir. Nada mais me interessa no mundo dos vivos”.
Amokye disse: “Então você deve ser Kwasi Benefo. Muitos que passaram por aqui falaram de sua desgraça. Só que você não é uma alma, ainda está vivo. Não pode atravessar o rio”.
Kwasi Benefo disse: “Então vou me sentar aqui e esperar morrer e virar alma”.
Amokye, a guardiã do rio, compadeceu-se daquele infeliz: “Está bem. Consigo sentir daqui toda a sua infelicidade” – e, com apenas um gesto, fez a água correr bem mais devagar. – “Vá por ali” – apontou – “vai encontronar suas mulheres. Mas não conseguirá vê-las nem tocá-las; para os mortais, as almas são como o ar, são invisíveis”.
Com a determinação perigosa dos que não têm mais nada a perder, Kwasi Benefo seguiu adiante. Adentrou-se na terra dos mortos, o Assamandô. Andou- andou- andou, até chegar no que parecia ser uma espécie de aldeia – pois ouvia sons de pessoas falando, conversando e trabalhando. Mas não conseguia ver ninguém. Deu de cara com uma casa, na qual entrou. Parecia vazia. Descobriu que estava com muita fome, e percebeu que sentia falta imensa de suas esposas e da comida deliciosa que preparavam.
Então ouviu vozes doces sussurrando-lhe ao ouvido. Ouviu conhecidas canções de sua terra. e uma canção de uma terra mais distante, na qual havia morado um tempo. Eram quatro vozes suaves, que quase o fizeram adormecer. De súbito, pela primeira em muitos anos as lágrimas caíram-lhe abundantes pelo rosto, pois as quatro vozes eram de suas jovens esposas mortas. Não ousou falar palavra, enquanto ouvia suas falecidas mulheres lhe tecerem elogios, de como foi um marido dedicado, de quanto as amou e de como suas mortes o fizeram sofrer. Enquanto Benefo as escutava, notou maravilhado que a refeição estava na mesa, e que um banho quente lhe esperava no outro cômodo. Banqueteou-se e se sentiu forte e alimentado como há muito não se sentia, e então mergulhou devagar na bacia de água quente. Ainda ouvia as vozes de suas quatro mulheres, e ele ainda chorava. E elas lhe disseram que estariam esperando quando ele morresse e viesse para o Assamandô em forma de alma, mas que, enquanto isso, deveria se casar novamente e ser feliz, pois desta vez sua mulher não morreria.
Kwasi Benefo acabou adormecendo, e, quando acordou, descobriu que estava deitado na floresta, bem longe do Assamandô, pertinho de sua aldeia natal. Levantou-se com um brilho nos olhos, voltou para casa. Encontrou seus amigos e seu belo filho, e pediu que lhes ajudassem a construir um novo lar. Vários dias depois, a casa estava pronta. Kwasi Benefo então retomou seus trabalhos no campo, e tornou-se próspero outra vez, desta vez dividindo seus ganhos com toda a comunidade. E então encontrou nova esposa. Casaram-se. Tiveram filhos. Todos sobreviveram. E disse para si mesmo: “Sobrevivi ao meu rito de passagem. Essa é a minha vida”. Assim foi a estória de Kwasi Benefo, conforme os velhos a contam.
A viagem até a terra dos mortos é um tema recorrente na maioria das mitologias. Podemos inferir dessa lenda achanti que a vida em si é um grande rito de passagem. O herói da estória passou por terríveis provações, a despeito de sua elevada condição social, e experimentou um desespero do qual não tinha esperanças de superar. Vamos dizer que todos os que mudam de carreira, terminaram um longo relacionamento ou se mudaram de casa “morreram” ao deixar para trás sua vida anterior e se submeteram a um ritual de iniciação todo próprio para abraçar sua nova vida.
Assim como aconteceu com Kwasi Benefo ao entrar na terra dos mortos, adentrar-se num reino perigoso, em que aparentemente não há trilhas a seguir, é o preço inicial a ser pago por todos aqueles que ousam uma vida de auto-realização genuína, fora do âmbito das expectativas familiares e exigências sociais. Sabe bem aquele que, por exemplo, larga uma carreira “bem-sucedida” em um grande banco para realizar seu sonho de viver viajando pelo mundo como mochileiro, sustentando-se aleatoriamente do que lhe aparece pela frente, encontrando finalmente a felicidade com que tanto sonhou (história real de um “maluco”).
Os heróis africanos já nos ensinavam a vencer os desafios do desconhecidos e tornar nossos sonhos realidade muito antes de os primeiros heróis europeus sequer sonharem acerca de si próprios.
Muito legal esse conto e realmente mostra as provações da vida colocadas nesses ritos de iniciação de fases inteiras da vida. Pretende em algum post colocar os livros e coletâneas desses contos e mitos e lendas?
Primeiramente, agradeço a leitura e apreciação. Pretendo postar mais e mais fábulas como esta, continue atento!
Sobre a sua pergunta: hoje está até comum achar em livrarias, principalmente na seção infanto-juvenil, alguns livros com “contos de África” genéricos. Alguns são muito bons, outros nem tanto. Mas eu não uso esses livros. Minhas fontes são material acadêmico acerca de História de África – de leitura não muito agradável… -, livros de arte e literaturas africanas de língua portuguesa.
Oh! Agradeço pela boa ideia: farei umas resenhas, aqui e ali, das melhores literaturas africanas lusófonas que já li. Hohohohoho… ;D