Quarta Era: a nova relação com os deuses

De volta ao mundo da reflexão RPGística. Vamos direto ao ponto: as coisas mudaram para as classes divinas em D&D e vejo pouca gente falando disso nos últimos anos (ao menos em português).
Em parte a coisa se deve a transição: quem migrou da 3ª para a 4ª edição provavelmente não parou muito para ler todos os detalhes e simplesmente transferiu as informações não-mecânicas. Outro fator, no meu entendimento, é o fato simplista e triste de que as mudanças pouco importam. No segundo caso falamos de um engano terrível…
O fato é que o tratamento dos poderes divinos sofreu uma transformação bem considerável no novo Livro do Jogador (que repercutiu, claro, no volume 2). Do que eu estou falando? Como assim você não sabe?
Antigamente, você deve lembrar, – e ainda hoje, em alguns sistemas – clérigos eram personagens que possuíam dons milagrosos graças a sua conexão constante com o divino, fundada especialmente em seu comportamento e respeito aos dogmas – que era representado pela tendência e, em jogos baseados na velha edição, por um conjunto de Deveres. Paladinos por sua vez, eram pessoas que atendiam ao “chamado” de sua divindade ou a forças benéficas e leais coletivas, atuando como “escolhidos diretos” das deidades deste eixo ético-moral. Eram, como os campeões inspirados nos cavaleiros santos utópicos, um braço armado dos deuses. Ninguém escolhia ser paladino. Esta era uma classe que se seguia por vocação – no sentido já mencionado e original desta palavra, baseado no vocabulário luterano, calling. Não era o mesmo que acordar e decidir ser um guerreiro ou mago. Era algo maior. Ao mesmo tempo e assim como os clérigos, o poder sagrado destes personagens era produzido por um contato constante com as forças que o concederam. Os trechos “ex-paladinos” da descrição ressaltavam esta questão: um passo em falso e todo o poder iria embora, tornando o pecador um ser desligado de sua fonte de energias sobrenaturais.
Mas então, veio a “diabólica” 4E e subverteu esta lei.
A coisa pode ser resumida da seguinte maneira: as divindades não concedem mais poderes a clérigos e paladinos no formato “TV a cabo”. Se antigamente os poderes eram representados como uma linha direta com os andares de cima (ou de baixo…) essa noção mudou. Pelas novas descrições do jogo clérigos e paladinos recebem seus poderes por meio de rituais de iniciação, uma espécie de investidura sagrada onde o indivíduo é imbuído de puro poder divino por sacerdotes ou templários mais experientes – e, mais raramente, pela divindade em pessoa. Ainda existem as regras sobre proximidade e tendência, mas não regras que registrem a obrigatoriedade de mantê-las. É isso mesmo: clérigos e paladinos precisam atender este pré-requisito quando no momento de sua ordenação… Mas não depois dela…
O texto apresenta a possibilidade de clérigos e paladinos rebeldes, que, uma vez imbuídos de um poder – que parece ser substancial e não mais dependente – se desviam para outros interesses. É mencionado como as ordens e sociedades de clérigos e paladinos reagem violentamente a estes traidores, mas fica bem claro que eles não perdem seus poderes quando se desviam. E esta, senhores, é uma diferença brutal…
A alteração provoca perguntas e traz ganchos novos que podem ser bem explorados. Deixe-me pensar alguns deles…

Deuses arrependidos, liberdades ampliadas

As divindades da fantasia nunca foram onipotentes, apesar de seu grande poder. Mas a nova limitação aqui discutida coloca os deuses em um interessante ponto. Em primeiro lugar sabemos, graças a fichas de Orcus, Dagon e Lolth, que os deuses são seres que podem ser mortos por grupos de heróis épicos bem dispostos. Sejamos francos: isso não era bem verdade na 3ª edição, quando um deus, mesmo com “ficha de criatura” detinha RDs e RMs imensas. De qualquer forma, agora sabemos também que um deus não retira o poder de serviçais que o abandonam. Pelo menos não via SMS. Clérigos e Paladinos independentes representam duas coisas: deuses distantes e despreocupados ou entidades que não podem se dar ao trabalho de caçar cada centelha mágica que inventou de distribuir no último século. Em outras palavras, falamos de deuses que podem até se arrepender da concessão de grandes poderes… mas que terão de arrumar métodos indiretos para punir o maldito. Não, nada impede que o próprio Pelor venha dar uma lição naquele ex-Clérigo de 30º nível que anda calcinando o reino com o poder de suas Lanças da Fé. Mas será um caso isolado.
Ganchos possíveis incluem a convocação de heróis de poder divino para caçar os hereges. Essa é a mais óbvia e corriqueira forma de fazer uso do novo modelo de poder divino. O inverso é também simples: PJs que renegaram seus deuses e igrejas e agora são caçados pelas mesmas. Ainda capazes de atos de bondade (como curas e outros milagres) estes personagens seriam recebidos com muita confusão nas aldeias. Agora incremente a questão com a morte do deus adorado. Um dos PJs descobre que Erathis (ou Glórien, ou Silvanus ou Khalmyr ou Tenebra) foi destroçada por demônios indizíveis. Agora, o paladino em questão deve lidar com o fato de que recebeu dons para lutar e prega a palavra de uma entidade morta. Nenhum novo Paladino daquele deus surgirá e logo, como o tempo é inexorável, todos os abençoados com sua graça divina morrerão. O que pensar de uma fé assim?
 

Cruzadas em tons de cinza

Outro uso delicioso deste ponto me faz lembrar Eberron. Lá, as Igrejas de deuses bondosos podem ser corruptas. Isso porque os deuses parecem não se ater demais ao mundo – ou porque sequer existem! Não sou um especialista no cenário, mas posso desenvolver o plot: imagine sua ordem de clérigos sofrendo um cisma. Como todos mantém seus poderes, ninguém sabe a quem o deus apóia. Oráculos parecem confusos e a confusão aumenta quando ambos os lados da guerra começam a ordenar dezenas de sacerdotes para aumentar suas fileiras com guerreiros de poderes mágicos!
Em algum momento algum sábio se perguntará se o deus em questão realmente existe. Teorias sobre o poder ser fruto da fé dos envolvidos ou da energia dos rituais secretos aparecerão. Os PJs podem ser chamados, inclusive, para recuperar o conhecimento de rituais de ordenação há muito perdidos. Enquanto igrejas se desmantelam em guerras internas os velhos inimigos do mundo estão ampliando seus exércitos. Eis um cenário bastante curioso, onde Bem e Mal serão instintivamente redefinidos a cada ato.
Observando as opções do Livro do Jogador 2, percebemos que Vingadores não fogem do novo modelo acima. São, para todos os efeitos, Paladinos agressores ou monges armados, voltados para cumprir as vontades mais violentas de uma divindade e recebendo seus poderes da mesma forma. Os Invocadores, contudo, são uma incógnita. A descrição leva a crer que eles recebem seu poder bruto de um contrato constante com a divindade, representando seu papel na eterna luta contra forças primitivas e não-divinas (Os Primordiais, os Titãs, os Elementais Ascenstrais, não importa o nome). Tendo a obrigação de ter a mesma tendência de seu deus, um Invocador parece fazer as vezes do velho clérigo. Mas há aí uma brecha. Invocadores devem respeitar todos os deuses, bons ou maus, uma vez que enxergam a guerra com outras forças um assunto mais importante. Fico me perguntando se não existiriam personagens desta classe que trocaram um contrato por outro, deixando seu serviço a Pelor para atuar como um braço de Bahamut ou Io. Verdade que os rituais de unção de um Invocador não devem ser fáceis ou banais – e a obrigatoriedade da tendência pode ser entendida até mesmo como uma coisa além da vontade do jogador – mas uma aventura poderia girar em torno de um velho amigo Invocador que, por motivos misteriosos, se torna violento contra o grupo de PJs. A investigação poderia levar ao fato de que o mesmo trocou o serviço direto a Corellon pela iniciativa brutal de Lolth, após a visita pessoal da mesma. Isso implicaria em uma radical mudança de humor e métodos por parte do antigo aliado…
São apenas alguns apontamentos sobre o tema. O objetivo mesmo é desdobrar a mudança mecânica em termos de cenário. Como seria Arton se Paladinos e Clérigos de Glórien continuassem tão poderosos quanto antes, carecendo apenas de reencontrar as velhas regras de ordenação da deusa? Que tal uma ordem de cavaleiros devotados a Khalmyr que se comportam como carniceiros de Keenn? O céu é o limite. Ainda mais agora, que ele parece mais… aberto.
Peixeiras!
P.S.: A imagem usada neste post pertence ao artista chinês Guangjian Huang, todos os direitos reservados a este monstro. 🙂

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5 Resultados

  1. Excelente post Jagunço, isso ai da muito pano pra manga ein?
    Gratz.

  2. @rhenansantos disse:

    Ótimo artigo. É uma constatação interessante sobre as mudanças que as classes divinas sofreram, um aspecto a ser usado pelo mestre e pelos jogadores na hora de compor o seu background.
    Abç.

  3. Jagunço disse:

    Agradeço, cavalheiros. Penso que seja uma pequena grande reviravolta em termos de construção de enredos. É uma questão de saber aproveitar. 🙂

  4. Puppet disse:

    Sinceramente gosto muito mais dessa nova forma.
    Os cavaleiros cruzados, uma das fontes de inspiração para o paladino, de nobres tinham só o título mesmo.
    A maioria deles usava e abusava da benção que recebiam, perdoando-os dos pecados antes de irem para as cruzadas.

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