"Pera, que tá me dando um refluxo!"

Dois dedos de prosa sobre umas coisas…
A transformação do “mercado cultural” microbiológico do RPG anda à vista. Como diria Machado de Assis “é uma cousa de loico”. Mas, machadadas a mais, podemos desbravar a dura mata do fenômento recente: abriram-se as portas do inferno e agora os indies estão soltos!
Acabo de ver aqui (via Twitter) que a pré-venda do Old Dragon, produção da dupla Antônio Sá e Fabiano Neme esgotou na livraria Moonshadows, depois de ter esgotado na própria loja do dito, mês atrás. Somo isso ao fato de que Busca Final foi um dos títulos mais comentados pela blogosfera rpgística em sua pré-venda há algumas semanas (jogo de autoria de Giltônio Santos e Richard Garrell e que, até uns dias atrás já tinha quase rendido o equivalente aos custos de sua produção). Em novembro passado eu soube da iniciativa do Might Blade RPG, criado por Tiago “Coisinha Verde” Junges – cujo sobrenome, diga-se de passagem, é mais RPGístico que o apelido… Vida doida.
O vindouro “Terra Devastada”, o recentíssimo “Era Perdida RPG” e o pouco comentado Nexus RPG, (que acaba de ganhar sua versão “Zero”) entram para o digníssimo hall dos forasteiros e bandoleiros RPGs independentes – criados e lançados por iniciativa dos autores ou de micro-editoras de autores. E vem aí Tribos de Meru (da Secular, mesma editora de Busca Final) e um futuro indie escolhido por uma interessante produção da editora mineira. Temos ainda um site novo, com um fórum totalmente voltado para a proposta de criação de sistemas próprios: o Garagem RPG.  Minha nossa Senhora dos Quadradinhos…
“E daí? Sistema próprio todo mestre já tentou. Na prática não quer dizer nada” diz o homem de família, o patriarca honesto deste mundo sem pé nem cabeça. Verdade, verdade. Atire a primeira metáfora-rpgística-para-pedra aquele que nunca rabiscou, em sonhos audaciosos, seu sistema próprio. Agora, atire de novo quem já o fez e não viu seus jogadores torcerem o nariz para o seu sensacional e original “2d8+Valete-de-Copas System”. Oi?
Contudo no portanto, é hora do tradicional pulo-do-gato cronístico: os RPGs indies de agora não apenas começaram a se vender e se pagar… Eles têm aberto um novo precedente de mercado: tem adquirido fãs, tem criado micro-comunidades (quem sabe logo mega- comunas?). Em outras palavras, embora não signifiquem a explosão financeira esperada pelos entusiastas do RPG – quando enfim os autores dos mesmos vão poder chutar a bunda de seus chefes nos empregos que lhes sustentam e quando você, jogador inveterado e viciado, vai poder finalmente largar a faculdade e passar o dia planejando jogos para comprar seu Audi com a venda de mais um suplemento – os indies demarcam um terreno de autoconsumo da comunidade. Melhor, indicam um interesse e uma possiblidade no aperfeiçoamento dos produtos neste espaço. Nada de Seres do Inferno meus amigos: Old Dragon tem papel bonitão e Busca Final uma capa que dá vontade de beijar e alisar…
No descortino do “E daí” é verdade que o mercado está em processo de vomitação – comemos coisas por tanto tempo que é hora de devolver. O refluxo, porém, está mais para uma criatividade à toda (às vezes até original demais…), um conjunto de planos e projetos fora da caixa, que no geral não vão agradar os fãs mais viciados no padrão-de-consumo manjadão… Mas que vem satisfazendo um veteranada que já estava quase largando o jogo e indo comer gente (ou o contrário). A verdade é que pouco importa se os RPGs indies vão se construir como produtos perenamente viáveis e de longo fôlego per se. Não me parece essa a única proposta. A proposta tem sido a criação de alternativas a um padrão de produtos incapaz de agradar aos ávidos por novidades-da-semana e aos órfãos de modelos deixados nos anos 1980 – assim como a novatos que possam, louvado-Seja-Deus, serem iniciados em jogos não-canônicos (uma “corrupção de menores” simbólica).  Até acredito que o indie que tem se reproduzido nos dois últimos anos é nojento para a maioria dos jogadores American’ Sons (não completamente sem motivo, sejamos francos, já que a tradição de debulhar monstros e destruir o mal do reino não pode ser facilmente substituida por jogos de auto-descoberta ou por sistemas “inventa a regra aí!”). Mas acredito também que a escatologia maravilhosa dessas originalidades possivelmente pontuais e possívelmente ficantes pode trazer surpresas, reforçar as comunidades produtoras-consumidoras e, na pior das hipóstes, dar um gostinho de “vou jogar meu jogo” para essas almas contadoras de histórias do Brasilzão afora. Você pode detestar a ideia de sacar cartas, pegar varetas (espera…) ou contar caroços de feijão para atacar o inimigo, mas alguém pode gostar e você não pode fazer nada quanto a isso – a não ser deixar os pecadores se divertirem. Porque a briga não é mais sobre “com que linhas de RPG as editoras vão gastar o seu dinheiro?”. A briga voltou, ao menos por enquanto, para o “com que jogo você vai gastar o seu?”

* * *

A imagem do cavalheiro aborígene neste post é do filme Baraka, de 1992 (altamente recomendado por falar de tudo sem falar de nada).

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17 Resultados

  1. Di Benedetto disse:

    Mano, virei fã do Jagunço! Mwahahahu

  2. " … assim como a novatos que possam, louvado-Seja-Deus, serem iniciados em jogos não-canônicos (uma “corrupção de menores” simbólica) …"
    Amém, caro Jagunço. Amém.

  3. Danielfo disse:

    Nada como um outrou grande surto de lançamentos nacionais para que a seleção natural opere. Se as grandes editoras não nos trazem nada, que nós mesmos tentemos.
    Que sabe que as coisas boas que estão surgindo não compense os jogos que não vão sair para o papel.

  4. Mac D disse:

    Associo essa mudança de paradigmas gamísticos pelo fato do produto indie em geral ser bem barato, gozando também de farta divulgação online. Essa política de divulgação + corte de custos passou a imperar inclusive nas grandes editoras (vide Gurps 4E e Mutantes e Malfeitores) facilitando o acesso de muita gente ao hobby. Apenas sinto um pouco de falta dos meus livros todos coloridos de capa dura… mas os benefícios superam as perdas em muito!

  5. metalgeisha disse:

    me uno ao coro do benedetto, também sou fã! XD

  6. Não tenho muito que falar, irmão samurai, apenas que é o melhor texto que li em muito tempo. Sem exageros.

  7. Hiago Azured disse:

    Vivemos na era da informação e da globalização, isso é um fato. Então nada mais natural que as pessoas passem a tomar a iniciativa criativa em todas as áreas, a revelia das grandes corporações. No RPG não seria diferente, e vou dizer mais, talvez nós estejamos vendo a gênese de uma nova era no RPG nacional onde os jogos independentes é que serão o padrão. Talvez isso não aconteça, mas é uma possibilidade razoável. Eu mesmo tenho dois jogos prontos e outro em produção que irei lançar muito em breve.

  8. Besouro Suco disse:

    Isso tudo é resultado de uma DEVIR relapsa que ao invés de usar de exemplo a Jambo e tratar o RPG com profissionalismo preferiu ficar na miúda, com seus lançamentos surpresa e sem divulgação alguma…
    A esfera de blogs foi fundamental para essa alta do movimento indie, uma resposta clara do próprio público do que esperamos ver nas prateleiras de jogos. A propaganda do boca-a-boca nunca foi tão eficiente. Que continue assim…
    Parabens pelo texto!

  9. nerun disse:

    Muito bom texto. Sempre fui fã de sistemas alternativos, indie. Vejo com bons olhos essas iniciativas (quem não vê?). Embora seja fanzão de GURPS ainda gostaria de ver mais novidades por aqui.

  10. Rocha disse:

    Excelente texto! Estamos passando por um momento ótimo, de criações independentes que não querem ser o novo Forgotten Realms ou vender milhares de cópias, mas fazer um jogo bacana, bem acabado, por um preço razoável. Enfim, uma produção artesanal de jogos, algo até então inédito por aqui, e que acredito que começa a se retroalimentar e formar uma massa crítica em 2011.
    Vamos ver onde isso vai dar…

    • dephlas disse:

      Tou contigo, Rocha.
      Pra mim, o melhor desse momento é o (principal) combustível de toda essa ação: a vontade de "fazer um jogo bacana". Vamos ver onde isso vai dar.
      Jagunço, que beleza de texto, parabéns.

  11. Jagunço, que fluidez nesse texto rapaz!
    Realmente uma bela análise e diz muito sobre a porcaria da “crise” que inventaram para o mercado de RPG. É um nicho restrito? É. Mas ele vem se alargando com o levantar de uma massa nerd que, cada vez mais, sai do ármário. Fiquei bestificado com a forma como você expos o tema de maneira tão audaciosa, rapaz, gostei muito mesmo!
    Parabéns!

  12. Tio Lipe disse:

    Olá!
    Putz, que texto. Obrigado por “me situar”. 😉
    Até and Bye…

  13. Delibriand disse:

    Puta texto foda, meu. Valeu mesmo, escrita primorosa.

  14. Estou PUTO!!!
    MUITO PUTO!!!
    Comigo mesmo!
    Fui embora de Fortaleza e não pude trocar uma idea com esse JÊNIO!!!
    Pra vc, meu nobre amigo e conterrâneo Mário Jagunço, não tenho palavras depois desse artigo. Nada a acrescentar, exceto palmas:
    CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP – CLAP –

  15. Jagunço disse:

    Oxe, só tenho a agradecer as visitas de vocês, meus caros e minha cara. 😛
    Bão demais saber que a crônica teve essa recepção! Me dá uma terrível vontade de escrever mais – olha aí, foram cutucar! 😀
    (um comentário é sempre uma forma de animar, sacudir e provocar!)
    A questão “estamos em tempo de diferentes regras de produção?” continua me inquietando. Ainda existem tantos mistérios: “quem é o público indie?” “quem compra, compra para jogar?” (a pergunta é menos boba do que parece…). É um mundo diferente…
    Nas palavras da bela Eris da Dreamworks: que venha o “gloriooso caaaos”! 😀
    Abraços. E vamos ver o que este insólito universo jogônigo do RPG indie nos reserva este ano!

  16. Mestre Bio disse:

    Muito bom este texto, acima da média disparado de posts sobre assuntos semelhantes, parabéns!

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