A culpa é do Lula

Título engraçado, certo? Dá a impressão que vou me meter a falar da disputa presidencial ou de algum desmérito do governo. Na verdade não é nem uma coisa nem outra. A idéia é falar sobre a indústria nacional do RPG e como o seu aquecimento é beneficiado pela atual momento econômico favorável.
Sim, o mercado de RPG está em franco crescimento, o número de linhas das editoras só aumenta e também o número de lançamentos, este ano eles podem chegar a cerca de trinta! Enquanto algumas editoras saem de cena, como a Daemon, outras iniciam seus trabalhos com títulos que nunca antes viram a luz do sol no Brasil: a RetroPunk Editora anunciou o jogo Rastro de Cthulhu para este ano. A Jambô também ousa com o anúncio de Dragon Age RPG em formato de caixa, até então nunca usado para RPGs publicados no Brasil (a antiga caixa do D&D primeira edição era importada de Portugal).
Acho que esse crescimento é tanto resultado da profissionalização da indústria quanto do bom momento da economia e o entusiasmo natural que esses momentos provocam nos empreendedores. Vale dizer que outros bons momentos econômicos não resultaram em crescimento da indústria do RPG pelo amadorismo das iniciativas destes momentos.

Profissionalização da indústria

Durante muito tempo os profissionais da indústria não eram muito qualificados em termos acadêmicos para a sua profissão. Marcelo Del Debbio, fundador da Daemon, é engenheiro civil. JM Trevisan se tornou editor-assistente antes dos vinte anos e só foi concluir um curso superior de publicidade alguns anos mais tarde. Algumas editoras eram verdadeiras empresas-de-um-homem-só. Pegue um livro antigo seu e é bem possível que um único nome se repita várias vezes nos créditos. Lembro bem dos manuais de 3D&T onde Marcelo Cassaro era autor, editor, diagramador, revisor e tudo o mais. E ele nunca se formou em coisa alguma além do ensino médio. Mas isto é comum no início de qualquer atividade: quase sempre serão os entusiastas a iniciar um negócio baseados no estilo de vida de que gostam e só com o tempo eles irão se aperfeiçoar na profissão.
E hoje em dia? Peguemos como exemplo a Jambô Editora já que conheço bem os profissionais da empresa. O Guilherme Dei Svaldi, editor-chefe, está terminando o curso de administração pela tradicional Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e antes dele quem administrava a editora era o irmão mais velho, Rafael, já formado em Administração também pela UFRGS, que hoje cuida da Loja Jambô. O Leonel Caldela, principal autor e tradutor da editora, fez curso de literatura com o famoso professor Assis Brasil e desde a infância freqüentou cursos de inglês, além de estar terminando seu curso de Letras (Inglês) também na UFRGS. Dr. Gustavo Brauner, tradutor e revisor dos títulos da editora gaúcha, possui doutorado em lingüística pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e atualmente está morando em Londres onde faz um curso de aperfeiçoamento (com a grana dos trabalhos na Jambô, e ainda vem o Telles dizer que ninguém vive de RPG no Brasil). Como podem ver, a grande maioria possui formação superior em universidades de grande renome ou está terminando, os empregados com menor formação ao que me consta possuem nível técnico como é o caso dos diagramadores contratados da editora.
A Jambô Editora é o exemplo claro da profissionalização do mercado RPGístico. É uma empresa que obtêm sucesso e crescimento através do grande know-how dos seus funcionários e deixa o recado aos pretensos concorrentes de que, se quiserem se manter competitivos no mercado, devem fazer o mesmo.

“É a economia, estúpido”

Nem sempre um mal momento econômico significa prejuízo para o setor de entretenimento. Quando as coisas não vão bem as pessoas podem consumir muito mais entretenimento do que em outros momentos: o importante é que as empresas saibam se adaptar aos novos tempos. É o velho chavão de que, quando a economia vai bem, todo mundo pode fazer o que quiser. Mas quando as coisas estão em crise apenas os mais competentes podem se manter no mercado.
Nos últimos sete anos nós não tivemos nenhum momento de crise verdadeira no Brasil. Mesmo quando os EUA quase vieram abaixo na crise de 2009, o Brasil só sentiu uma “marolinha” como disse o presidente à época, graças a políticas macro e microeconômica fortes e uma grande diversificação dos mercados consumidores dos produtos Brasileiros (e você lendo na Veja que o Lula ficava passeando pelo mundo por nada, né? A mesma, aliás, que dizia que devíamos focar nossas exportações nos estadunidenses). Dez anos antes uma crise como essa nos EUA teria colocado nosso país de joelhos. Então porque tantas empresas desapareceram durante anos de bonança e apenas duas estão hoje no ringue? Falta de competitividade, em geral.
Vamos ser sinceros: das iniciativas empresariais dos anos 2000 poucas realmente tinham qualquer futuro além de algumas poucas publicações, normalmente pela falta de talento de autores ou competência administrativa de editores. E algumas outras apenas não tiveram sorte mesmo. Uma boa economia te permite fazer qualquer coisa, é verdade, mas sobreviver num mercado cada vez mais competitivo exige mais que simples entusiasmo.
Sim, porque com mais lançamentos por ano fica difícil conseguir um lugar de destaque na estande de uma loja especializada, os leitores ficam mais seletivos com o que vão comprar e uma infinidade de outros pequenos motivos e detalhes. É basicamente o amadurecimento do negócio de publicar RPG no Brasil.

Concluindo

Bom, é mais ou menos isto, eu poderia discursar um pouco mais sobre meus achismos mas prefiro ficar no básico: o indústria do RPG está aquecida graças a uma economia pujante e bastante competitiva graças a uma profissionalização crescente puxada pelas duas grandes editoras. Toda essa brincadeira é fruto de um meme do Jaime Daniel da d3store e Terra do Nunca, que pediu a alguns blogueiros para darem suas opiniões sobre o atual momento da indústria. Como é tradição nestes memes, fica a minha indicação ao Rocha da Área Cinza a dar a sua sempre relevante opinião sobre o assunto, espero que não se importem com minhas opiniões e convicções políticas que deixei transparecer aqui no post. Se não puderem, apenas relevem e concentrem-se no básico, realmente não tenho saco pra discutir política sem estar tomando cerveja na mesa de um bar.

João Paulo Francisconi

Amante de literatura e boa comida, autor de Cosa Nostra, coautor do Bestiário de Arton e Só Aventuras Volume 3, autor desde 2008 aqui no RPGista. Algumas pessoas me conhecem como Nume.

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28 Resultados

  1. Tek disse:

    É, tirando a parte da política, o texto está muito bom.

  2. Wallace disse:

    Acho tudo muito isso também. Se eu fosse escrever um post sobre isso, assim o faria.

  3. Duda Vila Nova disse:

    WOW! Perfect!
    O mercado editorial no Brasil (não só em RPG) ainda conta com editoras de garagem. Nada contra as editoras de garagem – refiro-me às que resistem ao processo de profissionalização – mas tenho MUITO contra as que acham e torcem para que assim o mundo dos livros permaneça.
    Excelente post. Torçamos para que o mercado editorial de RPG continue crescendo e nos trazendo cada dia mais novidades.
    (um dia verei Pathfinder publicado na íntegra em português?).

  4. E vale dizer: nível técnico não deveria em momento nenhum ser tomado como menor ou menos importante que graduação ou pós-graduação. Sem os profissionais de nível técnico, muita coisa seria ainda mais capenga no Brasil e em vários outros países. Como eu gostaria que existisse um curso de nível técnico para formar instrutores de língua estrangeira ou tradutores, evitando aqueles pífios "professores" que por terem morado alguns poucos meses no estrangeiro são considerados "profissionais", ou os "tradutores" meia-bocas que a gente descobre ao abrir várias traduções por aí – dentro & fora do RPG.

  5. Danielfo disse:

    Tudo ficou muito bom.

  6. dino_de_galrasia disse:

    concordo total, esse e seu outro artigo sobre o incentivo cultural do governo pra mim são um marco bloguístico do gênero RPG. Lendo opiniões tão boas como a sua me faz crer realmente que não só existem rpgistas alienados políticos, ou só alienados..
    agora é esperar e fazer de tudo para que aja continuidade desse boom no mercado.

  7. Filipi disse:

    Bem, vale só um adendo. A Grow chegou a publicar RPG em caixa sim, o Dragon Quest. A não ser que este também tenha sido importado de Portugal…

  8. Tek disse:

    Gustavo, acho que "profissionais" meia-boca têm aos montes, a questão é que tem muita gente por aí que simplesmente cospe declarações sem dar argumentos consistentes. Independente do "estudo" que uma pessoa possa ter sobre um assunto, sem argumentos tudo vai abaixo.

  9. Edu disse:

    Sim o mercadso está crescendo e se profissionalizando, e isso é muito bom, mas precisamos de mais empreendedores. Atualmente só temos duas editoras de destaque: A Devir e a Jambô.
    A Jambô vem fazendo um bom trabalho, mas não pode fazer tudo, ela investe em linhas bem sólidas (M&M, Tormenta, Reinos de Ferro, 3d&T), ao mesmo tempo que tenta alcançar novos mercados com produtos de qualidade (Livros-jogos, romances e agora Caixas de RPG), mas não vejo a Jambô investindo em novos cenários e sistemas, até porque suas linhas cobrem bem estes nichos. O mercado precisa de uma concorrente a altura da Jambô, algo que fará os títulos da Jambô melhorarem ainda mais (será que com uma concorrência haveria tantos atrasos nos títulos de Tormenta e 3d&T?)

  10. Muito interessante!
    Gilson

  11. Nume Finório disse:

    Cara, Dragon Quest, pra mim, é o RPG da Enix que fazia concorrência com Final Fantasy antes da Square comprar a Enix e virar a Square-Enix.

  12. Cassaro disse:

    No mesmo ano (1994, eu acho) a Grow trouxe Dungeons & Dragons básico em versão caixa, Dragon Quest e Classic Dungeon.
    Desses, só D&D era mesmo um RPG — os outros dois eram jogos de tabuleiro com elementos de RPG, como o Hero Quest da Estrela.

  13. Adão Pinheiro disse:

    Na primeira vez que eu te falei que a Veja era tendenciosa até dizer chega tu fez cara de comido, se lembra? =P
    Quem sabe daqui a alguns anos não sejamos nós a exportar material de RPG por aí, em grandes quantidades? Sim, eu sou otimista feito uma criança, mas não custa torcer para que o nosso hobby seja ampliado e assuma uma postura de negócio competente perante o grande público, e deixe de ser alvo de sensacionalismo em programas de TV meia boca.

    • Tek disse:

      Há uns anos tinha uns garotos brasileiros na Lista Tormenta morando fora do Brasil que levaram os livros de Tormenta e 3D&T para o país que estavam e aparentemente os colegas deles curtiram o jogo.

  14. Cloud_Lima disse:

    Pathfinder em português? Quem dera! Mas não custa nada torcer por essa "belezinha"…

  15. Tek disse:

    Tormenta tem concorrência. O problema é que, NA MINHA VISÃO, ela não é significativa a ponto de incomodar.

  16. Archelas disse:

    Tudo ficou muito bom. [2]

  17. Edu disse:

    Partilho de sua visão Tek. Quando em refiro a concorrência é "concorrência de verdade", no nível da Jambô e seus títulos, a ponto de incomodar e gerar uma competição saudável, onde os RPGistas tenham uma maior variedade de linhas populares e de qualidade.
    Uma concorrência que não incomoda não pode ser considerada concorrência, pode?

  18. Arquimago disse:

    Também sou otimista!
    Realmente vejo um mercado mais profissional, fui amadurecendo com o mercado (mais ou menos tenho 22), e tenho um monte de livros aqui que nunca joguei, porque não sabia comprar e queria ter tudo…
    Adora eu seleciono o que eu vou comprar, ou seja o que pretendo jogar e gosto.
    Mas acho interessante apoiar iniciativas de jogo simples, nacionais para iniciantes ou mesmo indies, não são caros e se aparecer um iniciante ou que quiser “algo mais leve” é só sacar o livro do armariao, ^^
    Mas vamos ver o que temos no futuro.
    O mercado não morre… há sim, mercado é ter compra e venda não importa o tamanho, e no caso do RPG tem crescido.

  19. Jaime Daniel disse:

    Muito bom, muito bom… "esfregando as mãos"

  20. MC Zanini disse:

    Caro João Paulo,
    Sua análise foi interessante, mas permita-me só acrescentar alguns pontos à discussão:
    1. Eu fico sempre preocupada quando alguém se refere à Devir como “editora grande”. Concordo que, neste mundinho restrito que é o ramo do RPG no Brasil, pelo fato de a Devir deter os direitos de duas linhas de referência no mercado, que são o Mundo das Trevas e D&D, acabamos sendo vistos como “grandes”. E isso acaba colocando sobre nós um peso enorme. De tanto que se repete que somos grandes (relativamente falando), as pessoas começam a achar que somos realmente grandes (em termos absolutos), o que não é verdade. Perto de uma Companhia das Letras, uma Cosanaify, uma Martins Fontes, somos praticamente uma pequena família de entusiastas lutando para publicar o mínimo que o mercado é capaz de absorver. E, pensando que somos grandes, as pessoas também esperam que a Devir publique tanto quanto uma editora grande, entre cinco e dez títulos por mês, o que está bem longe de nossa capacidade de produção.
    2. Nós sobrevivemos à marolinha, mas 2009 foi um ano bem complicado para a impressão de livros. De dezembro de 2008 até meados de 2009, os preços praticados pelas gráficas “surtaram”, e algumas editoras tiveram de tirar o pé do acelarador e até frear um pouco a produção por conta dessa alta. Felizmente, hoje os valores estão bem mais acessíveis para editoras pequenas. Outro efeito da crise: 2009 parece não ter sido um ano muito bom para novas contratações de profissionais do texto. Ouvi falar com certa frequência de processos seletivos que foram interrompidos em algumas editoras, tudo para conter gastos.
    3. Eu sou uma grande partidária da profissionalização e tenho certeza de que isso só pode fazer bem à produção de RPGs no Brasil. A formação adequada é importante, mas grau ou título acadêmico não é tudo nesta vida. Ajuda bastante, sem dúvida alguma, mas não é tudo. Conheço alguns profissionais e artistas do texto que nunca tiveram formação acadêmica específica — ou seja, não cursaram tradução, nem letras, nem editoração — e deixam ou deixavam muita gente no chinelo em suas respectivas áreas de atuação. No limite, Carlos Drummond de Andrade era funcionário público e Pedro Nava era médico. Eu acho que a prova de excelência do profissional está, antes de tudo, em sua obra, em seu trabalho.
    4. E por causa disso, por acreditar que a prova de excelência é a obra, eu também acho que o público consumidor de RPG no Brasil precisa progredir junto com o ramo, junto com as editoras. A maturidade tem muito a ver com isso, mas formadores de opinião, como este seu artigo e o do Jagunço, e como as resenhas críticas que se esforçam para avaliar com imparcialidade, desempenham um papel importante ao esclarecer o consumidor.
    Parabéns pelo artigo,
    MC Zanini

  21. Tek disse:

    Um adendo Nume, quase certeza que o MDD é arquiteto e não engenheiro.

  22. @OD_ disse:

    artigo interesante.
    realmente é nessa situação que os mais preparados se sobresaem.

  23. Mestre Urbano disse:

    Concordo, a qualidade já era boa mas o profissionalismo está imperando e dando novos ares, com um setor mais maduro e solido.
    Sempre vai estiver o espaço para o amadorismo( afinal dele que surge muito dos novos talentos ) como blogs e afins, mas o profissionais devem estar cada vez mais preparados para tornar um negocio em sucesso e sempre rentável.
    Abs

  24. Domênico disse:

    Bom, mas a Jambô tá onde tá por merecimento. Tormenta saiu lá de baixo, como cenário de revista, concorrendo com outros cenário (a Devir tinha FR e os outros cenários do D&D pra lançar mão) e se tornou maior que todos eles porque a maior parte do público prefere o cenário.
    Um pouco é incompetência da competição, certamente (anos sem lançar livros de AD&D ainda mantém a minha confiança na Devir em baixa, mesmo isso tendo acontecido à anos idos) e boas escolhas da editora, somados à um nível saudável de ousadia (Reinos de Ferro era um cenário praticamente desconhecido aqui no Brasil antes do lançamento do Fogo das Bruxas).
    Não creio que teremos concorrência tão cedo. Não há grandes editoras que ofereçam risco (a menos que a Devir ou a Daemon decidam lançar pathfinder, por exemplo) porque não há mais uma competição por sistema. A Jambô trabalha com D20, a Devir com jogo de estratégia – e em breve GURPS – e a Daemon tem seu próprio sistema.
    Agora, opção de escolha? O público já escolheu. Se houvesse tanto interesse em FR quanto em Tormenta, por exemplo, acha que a Devir teria migrado pra jogo de estratégia em vez de continuar em D&D? Poucos jogadores se interessam por cenarios fora dos que a Jambô trabalha, e que ainda têm continuidade (eu troquei FR por RdF faz tempo, por exemplo).
    Repito: A menos que alguém traga pathfinder pro Brasil, não havera – e nem sei se precisa haver – qualquer competição por cenários. Vamos ter competições por sistema, o que, ao meu ver, é muito mais interessante!

  25. Lorde Azeron disse:

    E a iniciativa de disponibilizar o manual 3d&t alpha na internet fez com que portugueses conhecessem o jogo…

  26. doidimaiscorporation disse:

    1. Você tem um sério viés anti-Veja, o que seria ótimo se você conhecesse a revista. A cobertura que ela faz e fez da "marolinha" foi altamente positiva para o Lula e o Meirelles, basta consultar o arquivo online. Quanto aos "passeios do Lula", nossa economia sofreu menos que as dos países ricos NÃO por causa da diversificação de parceiros comerciais, mas por políticas domésticas, como juros altos. Você acha mesmo que o Brasil foi "salvo" de uma crise financeira porque exporta mais para Guiné Equatorial? Não foi a política externa que amenizou a crise financeira, foi a política econômica.
    2. De resto gostei do texto, mas acho que você poderia ter expandido mais. Fiquei interessado no background, a história do desenvolvimento das editoras, como foi que a Jambô fez, o que a Devir está fazendo, qual a história por trás do boom do RPG no Brasil nos anos 90 e porque a Abril saiu desse mercado, etc. A necessidade de profissionalização é um ótimo recado.

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