Dossiê: Wraeththu – from enchantment to fulfilment
Um dos piores RPGs já escritos ou uma boa idéia arruinada por falhas gritantes na execução? Meu primeiro contato com este RPG teve como base a primeira hipótese, quando li sua descrição no artigo Worst RPGs ever na wiki da RPG.net. Traduzo a seguir:
No topo da lista de “cenário bizarro” está este jogo, baseado em uma série de romances escritos por Storm Constantine (apesar de se ter havido demonstrado que o RPG é uma adaptação seriamente imprecisa). Os Wraeththu são super-homens bishonen hermafroditas que estão, aparentemente, lentamente tomando a Terra — e, pelo caminho, convertendo o humano ocasional para um deles via transfusão de sangue. Ah, sim, só há Wraeththu masculinos — e suas genitálias se parecem com flores e anêmonas. (…)
A aparentemente decorativa flor na capa do módulo básico… bem, não é. Uma flor, quero dizer. Este ornamento talvez faça de Wraeththu: from enchantment to fulfilment o único RPG que possui um pênis proeminentemente exibido na capa.
Ainda que o cenário seja o elemento mais lembrado de Wraeththu, este é próximo da série de romances em que se baseia. O sistema é mais culpado que o mundo de campanha, que é precisamente o que se propunha a ser — um fanguide para a série obscura de fantasia pseudo-homoerótica escrita por Storm Constantine. Os romances possuem seu próprio culto de seguidores. As regras, por outro lado, incluem gafes fabulosas como cotas de malha que provêem proteção total contra dano provocado por lança-chamas, regras de colisão que resultam em morte instantânea por dar um chute em um carro parado, regras de queda que fariam um humano médio ser morto ao menor tropeço, regras de magia desavergonhadamente roubadas do Mago original da White Wolf, e um sistema tão incompatível com o tema do cenário quanto tentar usar as mecânicas de D&D para simular em episódio de Love Story.
Tal descrição por certo tem a intenção de ser uma anti-propaganda, mas, ironicamente, foi ela a responsável por eu querer ir atrás do livro. Convenhamos, sistemas ruins, pouco apropriados ao gênero que pretendem emular, temos às pencas — o que me parece mais notório nesta categoria é o Vampiro: a Máscara. O restante não me incomoda em absoluto, pelo contrário, são pontos, ao meu ver, positivos. E daí que há um “órgão genital” na capa? Eu, particularmente, teria escolhido uma capa mais bacana — não por pudor, que é uma enorme tolice que nos fazem engolir em tenra idade, mas simplemente pela capa ser bem meia-boca. Se se parecesse com um órgão genital real — Clanbook Tzimisce, alguém? –, vá lá, mas a imagem simplesmente me parece uma Amorphophallus titanum, também conhecida como flor-cadáver, uma planta de beleza magnífica (ainda que seu odor não seja nada agradável, semelhante a carniça) que inclusive já usei como referência para criar um vestido certa vez.
O fato de os personagens serem não-humanos hermafroditas também me parece trivial. Tal coisa só parece passível de causar desconforto entre aqueles que adotam uma visão de mundo com gêneros meticulosamente divididos e delimitados, divisão esta que se baseia muito mais em construtos culturais arbitrários do que em diferenças biológicas propriamente ditas. (Caso não seja familiar com isso, procure artigos sociológicos sobre estudos de gênero do Google acadêmico, é um assunto deveras interessante e com a garantia de quebrar paradigmas.)
Mas se tais coisas são assim tão triviais, o que levou tal jogo, na época de seu lançamento, a causar tanto rebuliço e reações acaloradas por parte dos gringos? O que levou esse jogo, baseado em uma franquia bem sucedida (e potencialmente capaz de atrair um público normalmente não ligado ao RPG), a falhar catastroficamente e reunir tanto ódio em torno de si?
(Para evitar nós mentais ao longo da leitura, saibamos como se pronuncia Wraeththu — ray-thoo. Ou, para nós, brasileiros, rei-fu — com o R “enrolado.”)
Ah, vale avisar: este artigo contém spoilers sobre a trama dos romances. Se você, como ocorreu comigo, se interessou pela premissa e tem planos de ir atrás dos romances, pode ler o artigo sem preocupações — apenas não selecione o texto dos spoilers, que redigi na mesma cor do fundo de modo a ficar oculto.
Do encantamento à realização
From enchantment to fulfilment, subtítulo do livro de RPG, refere-se ao início e fim da primeira trilogia de romances de Wraeththu, composta por: The Enchantments of Flesh and Spirit (1987), The Bewitchments of Love and Hate (1988) e The Fulfilments of Fate and Desire (1989). Em 1993 toda a trilogia foi re-lançada em um único volume calhamaçudo.
A autora, Storm Constantine, adota uma (na minha opinião) perigosa política em relação a fanfics — ela as apóia. From Echantment to Fulfilment, nos planos originais, seria uma espécie de “enciclopédia” do cenário, descrevendo detalhes omitidos ou descritos apenas superficialmente nos romances, de modo a servir como guia para os escritores/as de fan fiction e material de referência para os fãs em geral. (Abordarei mais adiante os eventos trágicos que levaram tal volume a se tornar um RPG.)
O cenário em que a estória se passa é pós-apocalíptico — o planeta parece ter sido levado além de sua capacidade, com doenças e poluição dizimando rapidamente a humanidade. Em meio ao caos e destruição, emergem os wraeththu — também chamados de har (plural: hara). Originados de uma mutação (ou assim se acredita*) eles constituem uma espécie separada dos humanos, ainda que tenham semelhanças na aparência e sido originados a partir deles.
Hara são hermafroditas e possuem órgãos e aparelhos reprodutores funcionais** tanto masculino quanto feminino. Os genitais são descritos no primeiro volume como sendo: Apenas este exótico instrumento de magia e prazer. Não mudado em excesso [em relação ao pênis humano], apenas redesenhado. Uma orquídea em uma haste emplumada como veludo. É algo assim. Quando o toquei, ele se abriu como uma flor, e algo se moveu em seu interior (…). Um instrumento de prazer de fato é: a porção masculina, Ouana-lim, é capaz de movimentos, de maneira a conseguir estimular todos os cinco pontos de prazer da porção feminina (Soume-lam) do parceiro; quando em “posição funcional,” o órgão se configura em um ou outro “modo” (Ouana ou Soume). Seus corpos são andróginos — têm rostos de traços delicados, não apresentam seios e seus quadris são estreitos, mas a forma geral do corpo é feminina, com ausência de pêlos corporais ou faciais. As diferenças mais marcantes, todavia, são em partes não-visíveis — metabolismo bem regulado, maior eficiência em processar toxinas, sistema imunológico praticamente blindado e grande facilidade para desenvolver habilidades mágicas como telepatia, psicocinese…
Wraeththu podem se reproduzir de duas formas — “contaminando” um humano via transferência de sangue ou por reprodução sexuada entre si. A primeira categoria foi a responsável pelo rápido incremento de indivíduos da espécie (que se originaram, segundo suas próprias lendas, desta forma a partir de um primeiro har, o Aghama, reverenciado como divindade) e, por grande parte da estória, foi retratada como a mais comum. Envolve todo um processo desagradável de metamorfose em que o corpo humano é reconfigurado, emergindo, do casulo de pele morta, har. Mas o processo é passível de falha — não é raro resultar em mortos ou incapazes mentais. A reprodução sexuada é mais difícil — ela não só necessita de certo avanço no “treinamento de casta” (o desenvolvimento de habilidades latentes, no caso), como também encontrou resistência entre os próprios hara — que tiveram, em geral, enorme dificuldade para aceitarem o conceito de estarem grávidos, visto que, antes de sua transformação, costumavam ser homens. Isto, claro, entre os wraeththu da “primeira geração” — os posteriores, já nascidos hara, não possuem essas travas psicológicas (felizmente para a espécie). A reprodução sexuada é chamada de “pérola negra” porque se dá no ventre apenas até certo ponto — daí nasce uma espécie de ovo de couro escuro (daí a pérola negra), da qual eclode o bebê har quando este termina de se desenvolver.
Escrevi que os wraeththu “contaminados” eram homens antes da transformação, e não falo no sentido de “humanos, tanto homens quanto mulheres.” A incepção (como é chamado o processo) foi tentada em mulheres — e sempre falhou. Este foi um dos fatores que geraram críticas — o cenário parece ser inóspito para as mulheres, que ou permanecem entre as populações humanas embrutecidas e se tornam pouco mais que úteros com pernas (para assegurar mais humanos, cujos números caem vertiginosamente) ou partem para povoados wraeththu que não sejam totalmente hostis a humanos. Mas acontece que não é assim — no terceiro livro da trilogia, sabemos que existem uma “raça irmã” dos wraeththu, as Kamagrian. São como os hara, à exceção de que enquanto estes pendem mais para o masculino, as kamagrian são hermafroditas de aparência mais femininizada, ainda que andrógina.
Outro ponto que causou rebuliço foi a enorme presença de sexo no quotidiano. O sexo entre os wraeththu, chamado de Aruna, é um ponto de importância na vida, na sociedade e na magia. Ainda que alguns se unam monogamicamente (Chesna), não possuem o mesmo conceito de fidelidade e exclusividade que temos — praticam aruna uns com os outros sem culpa ou impedimentos, seja por razões sociais, fisiológicas (faz bem, como diz o Ministério da Saúde, e é vital para o treinamento de casta que citei antes, visto que as descargas químicas envolvidas influem no desenvolvimento de capacidades latentes) e também místicas — o ritual mágico mais poderoso entre os hara, Grissecon, usado em situações de guerra ou calamidade, quando grande poder se faz necessário, tem no aruna sua fundação.
Os Wraeththu “herdaram” um planeta todo bagunçado e que só aos poucos começa a se curar. Sua jornada inicia com um nível tecnológico baixíssimo, apenas com acesso a resquícios de tecnologia que, na ausência da estrutura industrial, se vão desgastando (se destróem, ou falta-lhes combustível/eletricidade, etc.), ocupando carcaças de cidade ou construindo do zero novas cidades, precárias e a partir de restos. Mas à medida que a estória avança, descobrimos que novas tecnologias vão surgindo, aliando princípios científicos preservados com suas novas habilidades místicas. Enquanto no início nós vemos os personagens cruzando vastidões desérticas no lombo de cavalos, no terceiro volume já temos hovercrafts quase futuristas e “telefones” que usam a telepatia em vez do som. É uma estória sobre recomeço, aprendizado e aceitação, visto que devem superar os preconceitos herdados de sua realidade pregressa de modo a ficar em paz e desfrutar integralmente de sua nova condição de dois sexos.
* (Spoiler: no primeiro volume da segunda trilogia, The Wraiths of Will and Pleasure, é apresentada a primeira pista consistente a respeito da origem dos wraeththu: o primeiro wraeththu, Thiede, é fruto de alguma espécie de experiência genética, promovida por algum órgão poderoso com o intuito de criar super-humanos. Thiede, na verdade, é a segunda tentativa desse experimento — o primeiro criou Opalexian, a Kamagrian (ou parage, ou parazha) original — já conhecida no terceiro volume da primeira trilogia. Esta primeira tentativa possuía uma “falha de projeto” — era incapaz de se reproduzir sexuadamente, podendo apenas expandir seus números via incepção (que, por sua vez, funciona apenas com mulheres).)
** Em termos de manutenção da espécie, o hermafroditismo parece ser uma vantagem. Enquanto em uma dada população de humanos (um sexo apenas) aproximadamente 50% da população é capaz de gestar, entre os hara, em teoria, 100% seria capaz de fazê-lo.
Incongruências
Ainda que o sub-título do livro dê a entender que o conteúdo dos três romances está ali contido, não é o caso. A
informação breve e resumida que expus faz pouco não está integralmente no RPG. Ainda que as kamagrian tenham uma enorme participação no terceiro romance, no RPG elas ganham apenas um parágrafo — do tipo “é possível que existam, mas não confirmamos ou negamos.” A reprodução sexuada figura indiretamente logo no primeiro volume, quando os protagonistas encontram uma criança har, e diretamente no segundo, em que o processo é inteiramente descrito. No RPG, tal fato também é rebaixado a “lenda não confirmada.”
Os wraeththu, cabe observar, se dividem em tribos — desentendimentos entre o crescente grupo original geraram ramificações, e daí temos tribos de diversos sabores. Os Uigenna, por exemplo, são ditos como sendo a tribo original, e habitam Megalithica (o território antes conhecido como América do Norte) em um estado de violência e barbárie, não muito diferente dos Hunos, e estão, no primeiro e segundo volumes da trilogia, em constante conflito com os Varr, igualmente bélicos mas melhor organizados. Os Gelaming, de Almagabra (porção mediterrânea da Europa), por outro lado, querem o avanço cultural e tecnológico, e obtêm enorme progresso nessa empreitada, liderados pelo arquimago Thiede. (Spoiler: que não é ninguém menos que o próprio Aghama, o wraeththu original.) Há muitas outras, geralmente menores e/ou mais exóticas, mas estas que citei de exemplo bastam agora. Você pôde perceber que Uigenna e Varrs são, essencialmente, maus-elementos, ou no mínimo tolos, guerreando entre si quando há um mundo para reconstruir. Os romances são também claros nessa posição. (Spoiler: Tanto que no segundo romance os Gelaming eliminam os Varr enquanto tribo, com uma nova liderança que altera radicalmente seus costumes e modus vivendi; já no terceiro volume, ficamos sabendo que os Uigenna também foram pro saco.)
O RPG, contudo, mesmo se passando no cenário em questão, ignora todo o contexto que envolve as tribos. A seleção das tribos, por si só, já é meio estranha (os Obliviata, por exemplo, sequer aparecem na trilogia); Uigenna e Varr são apresentados como opções perfeitamente válidas para personagens, mesmo que os romances praticamente berrem que não é bem assim. Varr e Uigenna são tribos que teriam dado ótimos antagonistas, mas que, infelizmente, não foram aproveitados como tal. (Um paralelo com Star Wars — ainda que seja possível jogar com personagens do Lado Negro, em momento algum o RPG afirma que eles, a rigor, não são vilões.)
Os antagonistas apresentados no RPG, aliás, chegam a ser uma piada. Enquanto, nos romances originais, os Varr e Uigenna são ameaças a serem temidas e, no momento em que deixam de sê-lo (terceiro volume) o perigo se desloca, inicialmente, para uma “cidade dos ladrões” e, posteriormente, para uma imensa conspiração envolvendo o arquimago Thiede. É este o tipo de conflito principal no livro — wraeththu contra wraeththu, jornadas místicas, teias políticas de intriga.
As “ameaças” apresentadas no RPG, ao que parece, pouco têm a ver com essas coisas. No topo da lista vêm os humanos que, sinceramente, não são ameaça. Logo no primeiro volume, sabemos que, sim, eles são perigosos, mas nem de longe são uma ameaça contundente — nos volumes posteriores, são ainda menos presentes e perigosos. O RPG nos informa de um desenvolvimento humano contra os wraeththu — uma espécie de vírus/bactéria que é capaz de vencer o sistema imunológico dos hara. Um leitor astuto pode se perguntar — “mas se é assim, porque raios eles não infectam o suprimento de água de detonam com esses bishonen logo de uma vez?” A introdução dessa tal doença de fato ocorre nos romances, mas com o objetivo de ilustrar que, ainda que se esforcem, os humanos já foram derrotados — uns poucos hara são infectados, um ou dois chegam até a sucumbir. Mas daí o xamã de Saltrock realiza um ritual de Grissecon que faz obsoleta a tal arma bacteriológica. Tão simples assim? Sim — os humanos não são o foco do cenário, apenas isso.
As demais são: Niilismo (pois é…), Os Antigos (nenhuma menção sobre isso no material de referência — seriam “uma espécie anterior aos humanos.” Rá, sabia que o Homo neandertalensis não se havia extinto realmente!) e a Decadência. Não entendo por que “inventar” ameaças assim tão inócuas quando o source material conta com coisa melhor.
O nível tecnológico é apresentado como sendo baixo, o que é verdade… em parte. Como já expus parágrafos atrás, alta tecnologia é desenvolvida na trilogia. Eu li os romances antes do RPG, então, para mim, ficou apenas a (má) impressão de informação ausente. Um leitor que tenha contato apenas com o RPG por certo vai questionar a consistência: se eles têm habilidades extraordinárias, e é sabido que existem fontes de conhecimento científico nas “ruínas da civilização,” por que insistem em continuar vivendo como na Idade Média? Eles não o fazem, mas a informação no RPG faz crer o contrário.
Excetuando tais pontos, todavia, a informação apresentada é bastante fiel e explicativa, e faz valer o espaço ocupado pela parte descritiva do cenário. O problema é: os pontos que ressaltei acabam gerando um entendimento, se não errôneo, incompleto do cenário.
Como o RPG estragou tudo
No ano de 2004, graças a precedentes da década de 90 com intenção mais narrativa (ainda que com falhas na execução), como o icônico Vampiro (e demais jogos da White Wolf) e Castelo Falkenstein (sem contar sistemas indies), já era bem mais fácil compor RPGs distantes do padrão “grupo de mercenários que se metem em subterrâneos,” iniciado e popularizado pelo D&D, e que se manteve por mais de uma década como praticamente o único modelo para RPGs. Assim sendo, era perfeitamente possível fazer um RPG do universo de Wraeththu que captasse bem o clima e tema do material de referência, certo? Certo — em teoria.
Ocorre que a autora Storm Constantine foi abordada pelo infame Gabriel Strange, que lançou para ela a idéia de transformar o guia do universo ficcional em um RPG. Afinal, tinha bons prospectos para dar certo — Vampiro aproximou do RPG a subcultura gótica, e a base de fãs do Wraeththu, já dada a criar suas próprias estórias ambientadas no cenário (escreviam fanfiction, afinal de contas), poderia se interessar por essa nova modalidade de contar estórias. Então o que deu errado?
Sistema, para começar. Wraeththu não se presta para D&D ou similar — a imensa maioria dos fãs desse tipo de coisa se sentiriam repelidos pelo cenário “bizarro”; os fãs da série, por sua vez, não são do tipo que se empolga com simuladores de violência ou imensas listas de armas. (Ainda que haja uma guerra no segundo romance e tenhamos contato com o exército Varr, não há uma luta de espada sequer; o máximo que temos é uma breve briga de faca (mais uma fuga do que luta), em um flashback. Um único combate em mais de 750 páginas! Ou seja, combate definitivamente não é o foco.) Mas temos de dar um desconto: era 2004, e se seu jogo não tivesse o selo do Sistema d20, seria praticamente impossível de vender. Então aderiram à OGL e…
Rá! Antes fosse a OGL! Foi pior, muito pior. Gabriel Strange, veja só, já tinha um sistema de regras pronto quando abordou a Storm. Era um sistema que ele havia desenvolvido na época de faculdade (por volta da primeira metade dos anos 1990), que era ótimo e tinha a vantagem de já estar pronto! Exceto que a parte do “ótimo” é uma mentira das grandes — o dito sistema, ao que parece, foi uma cruza profana entre uma tentativa de reescrever o AD&D, as partes mais pesadas do GURPS e muito possivelmente algumas coisas do d20, que de certo não pareciam pesadas o bastante, de modo que ele tratou de “remediar” isso. Ah, a principal qualidade: tratava-se de um sistema muito realista! (Ah, quantos crimes hediondos já se iniciaram com tais palavras…)
Como se não bastasse o sistema horrendo, tão pesado e cheio de fórmulas ao ponto de afugentar até mesmo os apreciadores de sistemas pesados — e que se põe como uma barreira virtualmente intransponível para o iniciante –, totalmente inadequado ao cenário, Gabriel fez mais. Sua estratégia para promover o jogo? Descer o cacete no World of Darkness! Segundo ele, o Mundo das Trevas “cavou tantos buracos no metaplot que caiu dentro de algum deles e agora era incapaz de sair — o cenário está condenado, vêem?” É uma ótima estratégia — alienar e inspirar antipatia em clientes potenciais, uma vez que algumas das características do cenário poderiam muito bem cair no gosto de jogadores do WoD. Como se não bastasse, ainda criou uma associação mentirosa* entre a Storm Constantine e a White Wolf , afirmando que ela figurava nos agradecimentos e fontes de referência da primeira edição de Vampiro — bastou apenas uma pessoa conferir os créditos do livro para que fosse desmascarado.
Os ataques gratuitos à White Wolf já haviam deixado o Sr. Strange com o nome sujo, e a situação só piorou quando ele apareceu no fórum da RPG.net para promover o jogo. Quando indagado sobre o sistema, respondia com evasivas, passando a impressão de que não queria ainda “entregar o ouro” a respeito de seu sistema “revolucionário.” Mas isso não significa que ele se abstinha de falar sobre o sistema — uma das coisas que ele se orgulhava era de como era “realista” a mecânica de combate! Foi apontado, por alguém que leu a trilogia, aquilo que já explicitei: não há uma luta de espada sequer, por que raios empregar tanto esforço em uma mecânica para tal?
Como relações públicas, Gabriel Strange fez um trabalho péssimo, fazendo com que o RPG fosse odiado antes mesmo de ser lançado. Mas como alguns observaram na época, há pessoas que são simplesmente ruins em relações interpessoais, e que isso, em si, não é o suficiente para fazer ruim o jogo — para ter certeza, só mesmo lendo o produto finalizado. Como já vimos, há incongruências entre o material descrito dos romances e o RPG — não tanto incongruências, mas informação incompleta mesmo. Isso pode causar alguma estranheza e leves mal entendidos, mas nada que, por si só, seja suficiente para afundar o livro. Assim sendo, tentemos descobrir onde está o buraco no casco.
*Storm Constantine chegou a trabalhar com a White Wolf, mas nada teve a ver com Vampiro — ela foi a autora do conto introdutório do Mago: Cruzada dos Feiticeiros.
Artefato físico: o livro
Preto e branco, capa mole colorida, aproximadamente 430 páginas — o preço, por ser print on demand, é salgado: U$41,99. Um livro enorme, mas cuja parte realmente interessante, a descritiva, ocupa relativamente pouco espaço, por volta de 150 páginas (sem contar partes descritivas “perdidas” dentro das quase 70 páginas do capítulo sobre regras de magia).
Da capa já falamos: não justifica todo o deus-nos-acuda, mas poderia ter sido melhor — mesmo se fosse “requentada” alguma das imagens de capa dos romances, já teríamos saído no lucro. Hã, aquela adaga egípcia? Não me pergunte: não há nada sobre isso nos livros ou mesmo no RPG (excetuando a informação de que você pode adquirir uma igual pela United Cutlery) e de certo só está ali porque o designer da capa (Gabriel Strange) a achou bacana.
O layout das páginas (também cortesia do Sr. Strange) já chama a atenção por um motivo simples: desperdício de
espaço. Vê a página à direita, com toda uma coluna semi-vazia em sua margem esquerda? Pois então, isso se repete em todas as páginas. Eu disse “semi-vazia” porque há textículos ali, certo? Sabe o que são? Citações. Isso mesmo, são dizeres de NPCs que, aparentemente, só sabem falar asneira. Alguns exemplos, colhidos de páginas folheadas aleatoriamente:
“If you don’t move that thing out of my face, I’m going to rip yours off and wear it as a helmet!”
“Peanuts! Don’t mention peanuts near me. When you live with Chinchillas peanuts become the bane of your life.”
“Wait to see what happens when you drink that, you’ll be seeing horses in the sky… or maybe the horses will be seeing you…oh man…look a flower.”
“I have to pick out ones which go: de dum, de dum, de dum, de dum, de dum.”
Ah, a última citação é atribuída a Malakess, Alto Codexia da tribo Sulh, que deveria ser uma espécie de sábio bibliotecário… Não se fazem mais sábios como antigamente. Este tipo de coisa está presente em praticamente todas as páginas. E o pior: não têm relação alguma com o texto próximo ou sequer com o tema do capítulo. Uma meia dúzia de vezes, tal espaço é usado para boxes de esclarecimento (que poderiam muito bem ser alocados de outra forma). Não me entendam mal: eu acredito que o layout é coisa fundamental para um livro, e deve ser esteticamente aprazível — mas poderia ter sido feito sem desperdiçar tanto espaço. Não houvessem as colunas em branco, a contagem de páginas teria caído vertiginosamente, o que poderia também ter puxado o preço para baixo.
Enquanto as citações e os textos da parte mecânica são escritos em um inglês medíocre, na melhor das hipóteses, os textos puramente descritivos (provavelmente escritos pela própria Storm) são bem escritos e tranqüilos de se ler. A arte do livro, toda em preto e branca, varia desde alguns trabalhos bem medianos (como umas em estilo mangá por Olga Besserdt, que não são ruins, mas parecem totalmente fora de lugar) a muito bons, como os trabalhos do ilustrador principal, Bruce Wells, responsável pela maioria dos trabalhos, incluindo as ilustrações das tribos. Os trabalhos do Bruce, em especial, traduzem bem o clima do cenário para elementos visuais.
Uma curiosidade: no canto superior direito de todas as páginas ímpares (que não consta da imagem que extraí de um .pdf de preview, mas se faz presente no livro impresso) existem os flick dice, que você já viu nas páginas da série Aventuras Fantásticas. Não tem algum dado? Folheie a pare em alguma página aleatória. Como o jogo usa todos os dados exóticos do D&D (d4, d6, d8, d10, d12, d20), é uma boa idéia incluir tal recurso, uma vez que iniciantes podem não possuir esses dados ultra-específicos.
No geral, boas ilustrações, bom texto (descritivo). Mas nem tudo são flores, além do layout, o livro sofre de outra grandessíssima falha: o sistema de regras.
Colisão frontal entre duas locomotivas, digo, sistema de regras
Se os problemas que notamos até então são pequenos orifícios no casco do navio, o sistema de regras é uma verdadeira cratera. Aqui houve uma seríssima pane nos motores, seguida de explosão. É um sistema difícil de descrever, visto que não há um esqueleto mecânico claro de onde sub-sistemas se ramificam. O design do sistema é extremamente antiquado, no pior estilo old school da década de 1980. É como se GURPS e AD&D tivessem copulado, numa sexta-feira 13 de lua cheia, e dado à luz o Bebê de Rosemary — e o diabinho, na cara dura, ainda roubou o sistema de magia do Mage. Logo no início do capítulo de criação de personagem, um daqueles esporádicos boxes nos alerta de que talvez precisemos de uma calculadora — quantas atrocidades já se iniciaram com tal aviso…
Comecemos pelos personagens, que possuem:
Atributos, chamados de Stats, e são Strength [STR], Dexteriry [DEX], Stamina [STA], Perception [PER], Willpower [WIL] e Intelligence [INT]. Stats variam entre 1 e 20, sendo entre 5 e 15 o normal para personagens iniciantes. Cada um deles começa com um valor-base de 4; depois, rola-se seis vezes um d6, registram-se os valores, que são alocados em um cada um dos atributos (o que nos dará valores entre 5 e 10). Feito isto, você tem mais 10 pontos para distribuir da forma que achar melhor. Além desse valor, os atributos contam com modificadores: -2 (para valores 1-2), -1 (3-4), 0 (5-9), +1 (10-13), +2 (14-16), +3 (17-18), +4 (19), +5 (20).
Ah, vale comentar — quando se escolhe coisas básicas (nome, tribo…), a altura do personagem pode ser descrita subjetivamente, como “alto,” ou expressa em metros ou pés, mas o peso não: este deve estar em quilogramas. Por quê? Porque o valor de peso influi em quanto Agmara (energia mágica) o personagem pode acumular. Para calcular o peso, naturalmente, existe uma fórmula: ((Altura em cm – 170cm) + 77kg). Note que embora um daqueles raros boxes explicativos das colunas laterais me informe que a altura pode ser descrita subjetivamente, isto é mentira, visto que eu necessito do valor para calcular o peso! Graças ao suprametabolismo, wraeththu são sempre esguios, de modo que a maneira de ter mais energia mágica é… sendo mais alto. Uma tabela no livro informa um máximo de 2,20m, e eu não me surpreenderia se todos os jogadores escolhessem esta altura máxima para seu personagem!
Secondary Statistics, que são Energy [EN], que representa fadiga, Psyche [PSY], usado para habilidades psíquicas e Composure [CMP], que representa sanidade e auto-controle. Aqui já inicia a burocracia, que exemplifico com a maneira de se descobrir o valor de Energy:
Comece com 20 pontos (pontos de base), a eles adicione o resultado da jogada de um dado de seis lados, mais o modificador de Stamina, multiplicado por 2 ((20 + 1D6 + STA Mod.) x2).
Aqui vejo um mérito do d20 — certos valores são tão complicados como este, mas as fórmulas de obtenção já estão debulhadas em uma tabela. Eu sei que valores de saving throws são obtidos com 1/2 nível + mod. habilidade + 2 para saves bons, mas eu poderia muito bem não saber, visto que há tabelas me informando isto. Aqui é diferente: cada uma destas equações é descrita por extenso, produzindo textos enormes.
Skills são, bem, perícias, e governam todas as coisas que o personagem sabe fazer (inclusive habilidades de combate), excetuando a magia. Perícias também variam de 1 a 20, são recomendados valores iniciais entre 6 e 12, e você tem ((INT Mod. x 2) + PER Mod. + 2D6 + 45) pontos para distribuir entre elas. Seguindo a tradição de jogos antigos, temos uma lista enorme de perícias — mais de 80 –, e, como é de praxe nesses casos, uma enorme parte delas é essencialmente inútil em jogo: okay, ainda que possa haver uma razão de ser para perícias como Açougueiro em um cenário pós-apocalíptico (não é como se houvessem restado açougues que prestam o serviço), isso parece tão fora de lugar em um estória de Wraeththu. Para computadores, temos Engenharia de Computação, Operação de Computadores e Programação de Computadores — presença interessante em um cenário onde não há mais computadores, e as próprias descrições destas perícias nos informam que exceto em casos raros, tal perícia é “virtualmente inútil;” por que incluir, em primeiro lugar? Aqui entram os Mods. dos atributos: cada perícia está associada a dois (Açougueiro, por exemplo, está ligado a INT e WIL) — deve-se domar os Mods., dividir por 2 e adicionar este bônus ao valor de perícia.
Perícias de combate funcionam de maneira distinta. Primeiro, há dois sabores distintos: Estilo e Especialidade. O primeiro é uma classe abrangente (Armas de 1 Mão, Armas de 2 Mãos, Lutar com 2 Armas…), ao passo que o segundo trata de uma arma em especial, tal como Espada ou Adaga. Estilos limitam o valor efetivo da especialidade — se você tem Espadas 15, mas Armas de 1 Mão em 12, usa espadas efetivamente em 12 –, e só se aplicam a combate corporal, nunca ao combate à distância. O livro nos diz que isso “pode parecer cruel para aqueles que combatem de perto, mas disparar uma arma é mais simples que manusear uma espada sem se aleijar, logo, é a abordagem mais realista.” Diferentemente das demais perícias, aqui não se adiciona a média de doia Mods. de atributo como bônus final no valor de perícia. Na verdade, você o faz, mas há um valor diferente para cada ação de combate. Vejamos:
(Para fins de brevidade, onde houver “DEX” ou “STR,” leia como “DEX Mod.” ou “PER Mod.”)
Combate corporal: Dodge = DEX; Damage = STR; Speed = (DEX + PER)/2; Block = (DEX + PER)/2; Repair = (DEX + INT)/2
Combate à distância: Dodge = (INT + PER)/2; Damage = (INT + PER)/2; Speed = DEX; Repair = (PER + INT)/3
Combate geral: Aim = DEX+ PER; Roll = DEX; Leap (DEX + STR)/2
Conforme seu valor na perícia específica de arma, seu personagem ainda recebe mais bônus: se tiver Espadas 3, por exemplo, recebe +2 Repair, + 1 Block, +1 Aim; com Espadas 5, +2 Roll, +1 Dodge, +1 Speed, +1 Aim, cumulativo com o anterior , com novos incrementos nos valores 10, 15 e 20. Tais bônus não têm lá muita consistência entre os diferentes tipos de arma — em 20, Espada concede +2 Repair, +2 Speed, +5 Damage, +2 Block, +3 Aim, ao passo que Minas/Pirotécnicos, +2 Repair, +2 Aim, +20 Damage.
O observador astuto já terá notado que isto não difere muito do d20 System — para cada estatítica de combate (Ataque, Ataque à distância, Dano, Classe de Armadura…) também há um modificador específico. Os bônus ganhos pelo incremento nos valores de armas têm lá sua similaridade com bônus e habilidades obtidos com níveis de classe. A diferença está na apresentação, sobretudo — o d20 não o conduz através de fórmulas, já fornece os valores calculados em tabelas. Por mais simples que sejam os cálculos, são no mínimo enfadonhos.
Os personagens também contam com Development points, que nada mais são que os Pontos de Bônus do Storyteller. O personagem recebe uma quantidade igual a 20 + 2D6, com os quais pode comprar mais pontos nas diferentes categorias a custos também variados em pontos, além, claro, de Merits & Flaws. Existem aqueles específicos para humanos, que se pode selecionar caso comece o jogo pré-incepção — que serão perdidos quando o personagem se tornar whaeththu –, os de crossover, que se mantêm após a incepção, e wraeththu, que são específicos para hara e muito mais úteis. Os valores sãobem estranhos e díspares. Ser Obeso (flaw humano, -3) é pior que ser Viciado (crossover, -2) — mas não são piores que Timidez (crossover, -4). Por -5 pontos, pode-se não ter olhos, o que não é muito bom, visto que a vantagem Combate às Cegas custa 25 pontos!
O personagem também tem seus valores de Magia. O Base Agmara, os pontos de magia, é igual ao peso do personagem dividido por 2, sendo o máximo igual ao valor base x 10. Manipulação é igual a INT Mod. + WIL Mod. + 1D6. Resistência é igual a (STA Mod. + WIL Mod.)/2. Seguem os Base Elements, dois a serem escolhidos dos grupos Matéria (Ar [INT], Terra [STR], Fogo [DEX], Água [WIL]) e Energia (Espírito [INT], Cinético [DEX], Atração [STR], Plasmático [WIL]), um primário (usa o Mod. completo associado) e um secundário (usa metade do Mod.). Finalmente, 3 pontos para distribuir entre Ordem e Caos.
Há ainda outro grupo, menos conhecido, os Changing States, divididos em Temporal, Probabilidade, Destruição e Conversão. Para montar efeitos, combinam-se os elementos — se quero lançar um projétil de pedra, uso Caos, Terra, Cinético e Destruição, por exemplo, combinados à Manipulação, com custo em Agmara dependente da potência e outros fatores envolvidos. Efeitos são ou coincidentais ou vulgares — distinção que jamais ocorreu nos romances, mas que parece estar aí porque o Mage fez desta forma. (Uma escolha estranha para alguém que parece detestar a White Wolf).
Calcule os Hitpoints, que são divididos entre Ferimentos menores (30 + STR Mod. + STA Mod. + 1D6) e Ferimentos maiores (15). Aproveite e calcule também as Base Actions, 5 + DEX Mod.
Toques finais, afinal. É um pouco assustador, e reproduzo na íntegra:
Para armas brancas, você precisa descobrir o número de vezes que o personagem pode atacar ou agir a cada Fase de Combate: ((Weapon Skill Speed Combat Action Modifier + Base Actions)/Weapon Speed). Para armas de distância, as coisas são feitas de maneira ligeiramente diferente, visto que existe um número de modos para cada arma. Automática (A) utiliza as Base Actions do personagem, este número e (A) e as base actions devem ser marcadas na seção velocidade da arma. Todas as armas marcadas como (S) Single Shot ou Three Round Burst (3RB) usam o mesmo cálculo que as armas brancas para descobrir ações base/ações por Fase de Combate com tal arma. ((Weapon Skill Speed Combat Action Modifier + Base Actions)/Weapon Speed).
Detalhe: você não vai achar tais armas no longo capítulo sobre combate, uma vez que elas estão todas em um Apêndice, lá no final.
Testes são feitos usando 1d20, cujo resultado deve ser igual ou menor que o valor de perícia + demais bônus aplicáveis. Quando o teste ocorre entre dois agentes opositores, compara-se a margem de sucesso, isto é, a diferença entre o valor de perícia e o resultado obtido.Os demais dados são usado primariamente para os cálculos de personagem (D6) ou para calcular o dano das armas (todos, incluindo o D6 e o D20 — temam meu lança-chamas, que causa 3D20 + 15 de dano!).
Ações são cronometradas em Phases (5 segundos no mundo de jogo), que se sub-dividem em Slices (1 segundo cada). Lembra-se das Base Actions? Representam o número de ações básicas que podem ser feitas dentro de uma Phase. Temos alguns exemplos: pegar um item no chão custa 2 slices; sacar uma arma custa 1 slice, mas sacar a arma e ter a compostura para já mirar de maneira apropriada custa 3; remover uma full plate armor demora 180 phases, ao passo que cozinhar um ovo (3 min., aprox.) leva 36 phases.
Eu poderia nos tragar para um tour detalhado dentro do sistema de combate, mas acredito que nenhum de nós é uma pessoa tão ruim a ponto de merecer tal punição. Digamos que ele é bastante “realista,” bem como o autor desejou, com coisas como degradação de armaduras, diretrizes para recarregar, ferimentos em áreas específicas (sub-dividas entre frente e costas, lado esquerdo e direito), e por aí vai. Como regras adicionais, temos coisas como correr, saltar, asfixia e dano por impacto, que leva em consideração velocidade, distância, massa, com resultados disintos para queda e impacto propriamente dito. Magia também possui seus diversos sub-sistemas, levando em consideração fases da lua, utilização de Aruna, etc.
Em suma, é um sistema de design marcadamente amador, aliado àquela filosia defasada que vigorava em uma época pregressa em que, se acreditava, um sistema, para ser bom, deve ser complexo. Nunca se notava um esforço de projética provindo de um entendimento do funcionamento do sistema — o design se baseava, primariamente, em introduzir minúcias no esqueleto de um sistema anterior; repetido suficientes vezes, o processo originava sistemas cada vez mais barrocos e pesados.
Outra marca do entendimento falho de design foi o de não levar em consideração o gênero que o jogo se dispõe a emular. Combate tático e ultra-minucioso (ainda que não chegue a esse ponto) funciona bem no D&D que, como o nome já implica, trata-se de um jogo sobre masmorras e dragões. Um sistema assim não poderia combinar menos com Wraeththu e sua intriga política entre tribos, descobertas místicas e jornadas de conhecimento pessoal. A engine de regras do livro não nos remete a nenhum destes elementos, dando a impressão de que o cenário trata de um pós-apocalipse Mad Max psicopata. Tal mensagem, todavia, não corresponde às descrições também presentes no livro e pode ficar bastante confuso com tamanha disparidade.
Como eu sou da opinião de que o vislumbre da ficha de personagem pode nos dizer mais que imaginamos sobre o sistema, reproduzo abaixo uma das fichas de personagem pronto que figuram nas partes finais do livro:
Saldo final: perdas e danos
Poderia ter dado certo. Os romances parecem possuir uma base de fãs relevante — não sei precisar quanto sucesso comercial alcançaram, mas descobri que o omnibus da primeira trilogia está entre os top sellers da categoria de fantasia da Orb, emprint irmã da Tor (se você possui livros gringos de fantasia, há grandes chances de que pelo menos um seja da Tor.) Uma das citações na contracapa dos romances, você sabe, aquelas usadas para promover o livro, é de Neil Gaiman afirmando que “Não trocaria [Storm Constantine] por uma dúzia de Anne Rices.”
Mesmo que os romances não fossem bem cotados, o cenário é bastante único e criativo, ainda que possivelmente exótico demais para a maioria dos gostos. O que não significa que não poderia resultar em um bom RPG — RPGs incomuns e de foco mais específico não são novidade, mas por vezes sofrem em virtude da obscuridade. Houvesse sido feito suficientemente simples e leve, talvez tivesse “pegado” entre os fãs da franquia e RPGistas interessados em jogos indie.
Da forma como foi feito, tornou difícil a assimilação tanto para a base de fãs (não habituada com RPGs e para quem o sistema pesadíssimo, ruim de digerir, constitui uma barreira), tanto para RPGistas do tipo mais tradicional — que já possuem, em geral, seus sistemas eleitos (ainda que pesados, são muito melhor projetados) e costumam ser resistentes a cenários que desviem muito dos padrões a que estão acostumados. Neste caso, o Wraeththu ainda traz o “bônus” de trabalhar o tema sexo/sexualidade de forma pouco usual, o que repele a maioria dos meninos.
Tempere com as péssimas relações públicas de Gabriel Strange — que já indispôs jogadores antes do lançamento e, quando este ocorreu, tais indivíduos não tardaram a cair com as garras sobre quaisquer defeitos do jogo, mesmo os menores e insignificantes — e temos uma bela receita para desastre. O preço salgado, possivelmente impulsionado pela contagem obscena de páginas, também atrapalha — principalmente se levamos em conta o mau proveitamento do espaço (não fosse ele, seria tranqüilo pôr o material descritivo em 120 páginas ou até menos) e o fato de a maioria das páginas ter sido desperdiçada com o sistema (e mesmo ele, se tivesse sido escrito de maneira melhor, também caberia em menos páginas).
Ainda, a segunda trilogia — The Wraiths of Will and Pleasure (2003), The Shades of Time and Memories (2004) e The Ghosts of Blood and Innocence (2005) — me parece possuir melhor “potencial RPGístico” que a primeira. De 1987 até 2003, a escrita de Storm amadureceu um bocado, e isso se refletiu na retomada do universo (neste intervalo, ela diversificou um pouco, migrando mais para as águas da dark fantasy). Ainda que eu goste muito da primeira trilogia — bom comando do idioma, descrições realmente evocativas –, o “intimismo” em excesso — os personagens, por vezes, se perdem em monólogos de pensamento enormes — me teria repelido, não fosse o tema que despertou muito meu interesse. Da segunda, por enquanto, li apenas o primeiro volume (ainda preciso de tempo — aquele que se usa para comprar coisas — para encomendar os outros dois pela Amazon), mas a mudança é perceptível.
Mais personagens atuam na trama, e menos esforço é posto em descrever em detalhe seus pensamentos e dilemas, sendo deslocado para o desenvolvimento da trama, bem mais ágil e dotada de elementos. Muitas das coisas antes não explicadas ou apenas descritas superficialmente ganham mais detalhes (nesse ponto, Storm parece ter se aproximado um pouquinho da ficção científica medium-soft), e novos elementos são inseridos — como os Dehara, divindades wraeththu criadas por um processo de inconsciente coletivo ou coisa assim.
Sendo a segunda trilogia mais plot driven do que character driven, mais o trabalho mais consistente com os elementos de cenário, talvez tivesse sido mais interessante basear o RPG nela, e não na primeira — o cenário, como descrito nos textos mais recentes, tem mais “cara” de RPG (mais ação, mais tensão, mais elementos com que interagir). E o RPG, com sorte, poderia apresentar aos RPGistas a segunda trilogia, de mais fácil assimilação por leitores de fantasia em geral que a primeira.
Infelizmente, nenhuma destas medidas foi tomada, e o resultado foi o desastre que ocorreu. Eu não recomendo jogar este RPG conforme escrito — o cenário é bacana, e pode ser facilmente usado com qualquer sistema leve, mas, a menos que você seja curioso e obsessivo como eu, será que vale a pena comprar um livro caro para utilizar apenas uma fração de seu conteúdo, pelo qual você pagou integralmente? Eu também diria que não.
Sua utilidade, hoje em dia, me parece mais servir de lição do que não fazer quando resolver adaptar um universo ficcional para RPG (ou mesmo criar um do zero). No caso de Storm Constantine, que levou o prejuízo com essa brincadeira (o RPG foi publicado pela editora da própria autora, a Immanion Press), acredito que a lição esteja mais para trauma — é muito improvável que voltemos a ver algum livro de RPG baseado em seus trabalhos. Lastimável — é um potencial de diversificação que o RPG perdeu.
Caso interesse, você pode encontrar os romances pela Amazon, ou pelo catálogo de fantasia da Immanion Press. O RPG também pode ser encomendado pela Amazon ou pela Immanion Press. Neste caso, a descrição do produto é bastante honesta:
In the near future, humanity is in decline, ravaged by insanity, conflict, disease and infertility. Wraeththu, a new race has risen mysteriously from the ghettos and ruins of the northern cities: humanity has evolved into a new species, which is stronger, sharper and more beautiful than any that have come before. They possess psychic powers and the ability, through a process called inception, to transform humans into creatures like themselves.Of interest to gamers and Wraeththu afficionados alike, this book features detailed descriptions of the eight largest Wraeththu tribes, information on the subjects of Wraeththu Psychology, Physiology, Society, History and Magic.
Tudo isto se confirma. Note que o sistema não é sequer citado. E por uma boa razão — se o mencionasse, o responsável por tal descrição precisaria mentir para citá-lo sob uma luz favorável.
EDIT: Não mencionei, mas devia tê-lo feito — o omnibus contendo os três volumes da primeira trilogia (The Enchantments of Flesh and Spirit, The Bewitchments of Love and Hate e The Fulfilments of Fate and Desire), por si só, é o suficiente para rolar jogos de Wraeththu (supondo que você já seja hábil no manejo de algum sistema genérico e/ou narrativo). Por quê? Por causa dos apêndices que Constantine inclui nesta coletânea. O primeiro trata da história das Doze Tribos de Jaddayoth, que são ramificações dos Gelaming que colonizaram Almagabra (região da Europa), vindos de Megalithica (América do Norte), local de origem dos wraeththu. Sabem o que este texto contém? Um cenário completo (que inclui uma lista de fácil consulta de cidades e personagens — ou… NPCs — importantes. Já no fim de Bewitchments, toda a tensão em Megalithica foi praticamente resolvida, logo, não sobrou muito a ser feito pelos valentes personagens (supondo que se siga o canon); já Almagabra, por outro lado, é praticamente “terra virgem” — cidades e governos estão se formando, e muitas pedras podem rolar.
Depois do “apêndice zero” das doze tribos, temos o Apêndice I, que fala so sistema de casta dos wraeththu, que se divide, veja só, em patamares (negrito) e níveis (entre parênteses), em ordem crescente de poder: Kaimana (1: Ara [altar], 2: Neoma [lua nova], 3: Brynie [forte]); Ulani (1: Acantha [espinhoso], 2: Pyralis [fogo], Algoma [vale de flores]); Nahir-nuri (1: Efrata [distinto], 2: Aislinn [visão], 3: Cleatha [glória]).
O Apêndice II se chama Habilidades especiais dos Wraeththu: uma comparação com os humanos. Trata, brevemente (duas páginas) da digestão, sentidos, poderes ocultos e longevidade. O Apêndice III, por sua vez, aborda a sexualidade wraeththu, com uma descrição detalhada sobre a reprodução, aruna (o ato sexual em si; aqui é descrito o aspecto e o funcionamento dos órgãos sexuais internos e externos), três linha sobre Grissecon e um parágrafo um pouco maior sobre Pelki, o equivalente de estupro entre os wraeththu.
Como todo romance de fantasia, o omnibus também se inicia com um mapa — que mostra o território de Almagabra, descrito na história das tribos. No fim, a coletânea, com um pouco de jogo de cintura, serve para RPG tanto quanto o livro feito para este fim, mas possui uma vantagem: além de mais barato (U$19,95 da coletânea vs. U$41,99 do RPG), tem o cenário descrito em romances agradáveis de se ler e, o melhor, não vem acompanhado do sistema difícil de usar.
Holy crap!
Eu adoro jogos indie, porém esse ai eu não vou chegar nem perto! Apesar que me divertir muito lendo as bizarrices.
Bah, o sistema está a quilômetros de distância de soar tão exagerado quanto parece. Em comparação a Chivalry&Sorcery ( de 1975, com edições nos anos 80 e 2000 ), no uso mais exagerado de regras de GURPS ou Hero ambos modulares, portanto tal uso só é feito por quem realmente adora precisão mecânica ) ou em Rolemaster, ele me parece um sistema "não tão pesado".
Ah, mas comparar com esses é covardia, pô. =P
Mas veja o seguinte: essa é uma apresentação resumida e *bem* clean. No livro, é um desastre — cada uma das fórmulas é precedida por um enorme parágrafo que beira o indecifrável. Ele pode não ser um peso-pesadão, mas é relativamente pesado, especialmente se levamos em conta a época em que foi publicado (mesmo o d20 já tinha, por volta dessa época, esforços de simplificação como o M&M e o True20 — há também os Microlites, mas não sei quando estes deram as caras).
Concordo com você, todavia — o problema aqui parece ser apresentação. (E ficaram de fora as regras detalhadas de combate e magia.)
A idéia do cenário é bastante original para um mundo pós-apocaliptico, embora tenha que admitir que o tema de hermafroditas num mundo homoerótico não é o tipo de cenário que gostaria de jogar.
Sem comentários sobre o sistema.
Cara, que bizarro. Também adoro indies, mas esse, sem chance.
Medonho!
Porem os romances me pareceram bem interessante!
Arquimago, se você se interessou pelos romances, talvez queira ler um EDIT que inclui no post faz pouco (havia me esquecido totalmente enquanto estava redigindo o artigo!).
Basicamente, a coletânea com os três volumes da primeira trilogia traz alguns apêndices descritivos com a informação disposta de maneira bem semelhante à vista em RPGs — são ou listas ou parágrafos bem enxutos que vão direto ao ponto. Se perigar, serve melhor como material de jogo do que o RPG (que não recomendo). Junte com um sistema genérico (mesmo o M&M, que agora terá seu manual de magia) e já é possível jogar — arrumar um grupo disposto para tal, todavia, já deve ser um pouco mais difícil…
Infelizmente acho que aprte do grupo realmente é a mais complicada.
Ei shido, tu é frango é?
Olha, eu acho que não, mas isso é relativo, claro — não sei quão grandões você prefere seus homens –, mas levanto um peso legal no supino e não faço feio em traje de banho, se isso ajuda a responder sua pergunta.
Só não sei que relevância tem isso em relação à matéria — e sou comprometido, então pega mal ficar perguntando sobre meu tipo físico. Cada um com sua curiosidade, é claro, mas não acredito que seja aqui o lugar para tal.
Abraços, colega.
wow, quanta coisa, vou dar uma lida mais tarde. a e Shido, será que rola um dossie do Savage Word? abraço.
As semelhanças com o Vampire existem, atacar a white wolf provavelmente é uma forma de chamar atenção sobre o seu próprio jogo, o cenario realmente é deveras "diferente", em uma sociedade homofobica como a nossa acredito que não daria certo, o Sistema, não consegui encontrar lógica em praticamente nada…. e Savage world 🙂
Hehehe, adorei a matéria. Quanta coisa estranha e bizarra existe no mundo do RPG e que jamais iria sabem sem pessoas como Shido Vicious, que não apenas fazem uma resenha, mas fazem da melhor maneira possível. Mesmo salientando os pontos negativos, o que falou do cenário até me ajudou a ter algumas idéias para minha próxima crônica de Mago: A Ascensão (vou ter que fazer um crossover pensando em Wraeththu = Neo-Rebís)!
Por falar nisso, não seria interessante usar o sistema do WOD e o Mago: Ascensão ou Despertar? Aí é só questão de adpatar termos…
Cara, a parte do texto que você começou a falar de regras, com formulas e tudo mais eu pulei legal, e olha que sou Engenheiro!!!
Olha que você ainda foi pegou bem leve, eu teria dito que era ruin sem dó nem piedade (por que de fato é).
Eu teria resumido a resenha em: Sistema horrivel, cenário ótimo, passe longe do RPG e compre o omnibus, que possui apendices com explicação objetiva do cenário, pronta para jogar qualquer RPG, escolha apenas um sistema free narrativo e bom jogo.
Só uma pergunta: você comprou o RPG? se sim meus pesames.
No mais ótima resenha, e o cenário é bem original e detalhista.
A pior parte: são fórmulas que sequer usariam teus conhecimentos de matemática complexa adquiridos na engenharia — são cálculos triviais, chatos, e geralmente expostos de maneira confusa.
A minha vontade era escrever apenas "Nada de positivo pode ser dito sobre este sistema deplorável," mas os dossiês são artigos de detalhismo neurótico — a intenção é sempre fornecer algo próximo de um "test drive."
E eu comprei o bendito. Acredito que esse livro não exista em .pdf — e é compreensível, quem se daria o trabalho. Na verdade: comprei mais pelas ilustrações (e pela parte descritiva, claro, que depois descobri ser incompleta em algumas partes). Se a Immanion não fosse uma editora pequena que ainda vende o livro e eu tivesse a disposição, minha vontade era escanear toda a parte descritiva, e, no lugar do sistema, incluir uma adaptação light pro FATE (melhor seria o PDQ, mas ele não é aberto). Seria milhares de vezes mais jogável — ou melhor: *aí* seria jogável.
Espera o dossiê F.A.T.A.L. — esse sim será o top em termos de coisa bizarra que existe lá fora, mas de que fomos poupados aqui no Brasil. (Afinal, F.A.T.A.L. é o *único* RPG com atributo de circunferência anal!)
Eu acredito que o WoD se prestaria bem pro Wraeththu. Ainda que a magia nos romances não seja em nada parecida com a do Mago (sistema que o designer apenas roubou por achar legal, dane-se se é apropriado ou não!), o sistema do (novo) Mago é bem maleável, e daria para ser usado numa boa. Talvez com o psiquismo do Second Sight? WoD seria uma boa, sim.
E agora fiquei curiosíssimo: que é Neo-Rebís?
Por favor, diz que essa história de atributo de circunferência anal é mentira…
Tudo pelo "realismo," Nume. Afinal, você *precisa* ter tal informação para saber se mata ou não alguém via fist fuck. (Não, não estou inventando isso.)
Mais uma vez, excelente artigo, Vicious. Wraeththu é bem curioso e traria um pouco mais de diversidade ao mundo do RPG.
Creio que se não fosse o tratamento e desenvolvimento pavoroso do livro básico, ele teria se tornado um verdadeiro cult entre os fãs da obra e do tema.
Hum… Deixou o povo curioso e depois desistiu da resenha shido? Ou a resenha é umpublicavel como o jogo?