Interação Social: Interpretar ou Rolar?

Uma concepção muito comum — e equivocada — nos diz: “Ações físicas requerem mecânicas porque não podem ser interpretadas; as sociais podem, logo, não requerem mecânicas.”
Ações físicas — em especial as que se ocupam de bater em outros seres — não são apoiadas por um corpo robusto — às vezes excessivo — de regras pela impossibilidade de interpretá-las. Isto ocorre, já sabemos, em virtude da herança vestigial dos wargames que a maioria dos sistemas de RPG possui.

Roleplaying

Englobar toda e qualquer ação não física/combativa no procedimento “interpretação apenas” me parece não apenas incongruente como também injusto. Mattarpylhhar, o Bárbaro, é definido por seu jogador como sendo um exímio balançador de machado e quebrador de crânios — o sistema provê a ele todas as ferramentas para fazer tal conceito valer em jogo. Já Sir Speaksalot, o Swashbuckler da Língua de Prata, depende, quando quer fazer uso de seu poder de argumentação reverenciado no mundo de jogo, da habilidade do jogador — que, vamos supor, tem uma língua de chumbo: gagueja quando fala com garotas e, numa discussão, não sabe elaborar argumentos e se esquece de pontos importantes.
Por que o jogador do bárbaro, um gordinho que não consegue subir um lance de escadas sem ficar exausto, merece ter suas limitações pessoais ignoradas no mundo de jogo, ao passo que o patologicamente tímido jogador do swashbuckler, não? Há quem defenda que “se você quer jogar com um personagem social, é bom ter um pouco de traquejo.” Não posso pensar em nada mais apavorante que isso.  O atrativo do RPG, ao menos na minha perspectiva, não reside em escolher dentre inchados cardápios de armas ou na elaboração obsessiva de combos para causar o maior dano possível — a graça está em poder vestir a pele de qualquer personagem que me pareça interessante, e em ver, com clareza, suas habilidades e capacidades (quaisquer que sejam) influenciado a narrativa.

Rollplaying

O que escrevi, evidentemente, não é novidade — a maioria dos sistemas modernos (bem como encarnações atuais de antigos) possui mecânicas que se ocupam disso. Mas, da mesma forma que “eu ataco o orc com meu machado,” depois de suficientes repetições, se torna insípido e tedioso, “eu rolo Diplomacia” também tira toda a graça das coisas.
Um ponto de vista possível se relaciona com a arquitetura do sistema. No Dungeons & Dragons/d20 System, por exemplo, o sistema de combate é repleto de “coisas coloridas e brilhantes,” ao passo que a resolução de interações sociais nada mais é que um teste de perícia. Nada errado aqui, visto que D&D é um sistema para combates. Mas é compreensível que muitos jogadores podem se sentir frustrados com o fato de uma briga, que dura 5 minutos no mundo de jogo, envolver uma multitude de variáveis, enquanto seu complexo debate com o magistrado do reino é resolvido com uma mera rolagem de dado.
Mesmo que a mecânica em si seja mais robusta — seja em jogos de considerações de projética mais modernas como PDQ ou FATE, seja no sistema de skill challenges da 4a. edição do D&D —, apenas rolar dados rouba, para muitos, todo o gosto da coisa. Se tudo há de ser definido integralmente por séries de resultados aleatórios, é mais prático chamar um amigo programador para escrever um programa que faça isto, e, a seguir, assistir passivamente o desenrolar — o que me parece tão divertido quanto ter um arame aquecido introduzido na uretra.

O meio-termo

Os exemplos anteriores geram resultados insatisfatórios pelo fato de representarem extremos e, de maneira geral, extremos não tendem a ser bons. Moderação e equilíbrio, por outro lado, tendem a gerar resultados mais interessantes. É por isto que o trabalho de Charles Rennie Mackintosh continua atual mesmo passadas décadas — este artista e designer foi capaz de unir a ornamentação vitoriana de linhas orgânicas com a funcionalidade geométrica do novo século industrial.
Na resolução de embates sociais, uma percepção comum é a seguinte: role os dados pertinentes para, a seguir, interpretar o resultado. É um pouco melhor que apenas rolar, mas não resolve o problema da passividade. Por muito tempo pensei em como mesclar mecânica e interpretação nestes assuntos e, recentemente, vi materializada a resposta para meus questionamentos no RPG Swashbucklers of the 7 Skies, Ennie de prata de melhor cenário em 2009 que usa o sistema PDQ# — um fastplay do sistema e uma introdução ao cenário podem ser baixados no link.
O “caminho do meio” para duelos sociais rolados é realizado da maneira seguinte. Primeiro, o jogador declara sua intenção, o que deseja conseguir na dada interação. Segundo, descreve como ele deseja alcançar tal objetivo. Esta é a parte mais “interpretativa,” por assim dizer, e cabe esclarecer um pouco. Quando falamos de interpretação, a primeira coisa que vem à cabeça é “falar in character,” o vulgo “fazer a vozinha.” Não é necessariamente o caso. Aqui podem — e, penso, devem — entrar fatores da história, pôr para trabalhar conhecimentos prévios. Em vez de simplesmente “eu tento enrolar o guarda,” por que não “digo a ele,” com ou sem vozinha, “que tenho uma mensagem urgente e confidencial (um pergaminho em branco com um selo forjado) que deve ser entregue em mãos ao Capitão X; se ele não recebê-la, pode ficar muito descontente…” — é plausível, pois soldados de nível baixo possuem uma obediência que beira o medo em relação a seus superiores, e se os jogadores foram espertos em descobrir o nome do chefe daquele posto da milícia, nada melhor que fazer uso. Prossigamos: terceiro — rolar dados (ou baixar cartas ou seja lá o que o sistema usa).
Como vêem, não é nada terrivelmente complexo ou über sofisticado. Mas deixa as coisas bem mais interessantes — no exemplo anterior, sucesso indica que os personagens convencem o guarda e podem passar; já uma falha não se resume a simplesmente ter acesso negado — se a tal mensagem é tão importante, o guarda pode mandar chamar o tal Capitão X, e os jogadores podem ficar atolados até os joelhos em merda por causa disto. É uma boa forma de dar relevância às interações sociais, amarrando-as à narrativa e fazendo com que seus resultados influenciem o rumo da mesma, bem como atrair a atenção dos jogadores a detalhes da história e do cenário em que se passa sua aventura. A existência de uma lei aparentemente arbitrária que vigora em um reino pode ser vista como mera firula — mas se os jogadores têm o poder de usar este conhecimento na etapa da descrição, influenciando diretamente o resultado (seja ele positivo ou negativo) em virtude disto, é razoável supor que, com o tempo, eles se tornem mais atentos a informações antes “supérfluas.” Não só a descrição, mas também (ou sobretudo) a intenção — o primeiro passo — pode e deve influenciar os resultados. Em vez de “eu tento convencê-lo,” temos uma camada a mais, “eu tento convencê-lo a fazer…”
Claro que tudo isto recompensa o jogador astuto, e se pode argumentar que, de maneira semelhante ao poder de argumentação do jogador, tal procedimento exclui o jogador mais lento. Neste caso, entra uma função primordial do mestre/narrador — além de mediar o contato dos jogadores com a história/mundo de jogo, garantir a diversão de todos é também sua tarefa. O mestre pode dar dicas nestes casos. Não entregar tudo de mão beijada, porque isso tira a graça — se você está em uma partida de xadrez e um mestre enxadrista “sopra” todos os movimentos no seu ouvido, ele está jogando no seu lugar, e você se torna supérfluo, e isto não é divertido. Mas se, em um momento crítico apenas, ele chama sua atenção para a posição vulnerável do, sei lá, bispo do adversário, e você age a partir daí, é bem melhor.
Cabe ao mestre, portanto, pequenos lembretes quando o jogador “comer mosca.” Em vez de “Milady Cassandra anda tramando às escondidas com o Cardeal Luvy, ameace expô-la se ela não levá-lo até seus aposentos onde estão escondidas aquelas jóias de que vocês precisam para fazer tal coisa,” seja mais sutil: “Você se lembra daquela carta que tomaram do mensageiro do Cardeal?” narre novamente o texto da tal carta e deixe que o jogador se dê conta das relações a partir daí. Poucas coisas vencem a satisfação de descobrir as coisas por si. Tais lembretes não precisam, necessariamente, estar amarrados a teias de intriga: coisas simples como traços de personalidade, pertencência a uma organização ou estados atuais — “ele parece estar com pressa/aflito/escondendo algo” — são boas pistas para que o jogador construa sua estratégia (intenção-descrição) de interação.

Incrementando o sistema

Conforme as necessidades, faça ajustes no sistema. No D&D 3.5/d20 System, por exemplo, você usar testes complexos de perícia, com alguns ajustes — o mestre pode fazer a rolagem valer mais de um sucesso se a intenção for realmente boa, ou o jogador pode “apostar” mais de um sucesso, de maneira a dar mais peso a sua tentativa (se falhar, o oponente ganha os sucessos perdidos, chegando mais próximo da vitória). Procedimento semelhante pode ser tomado com os skill challenges da 4a. edição — onde, talvez, todo teste pode requerer intenção e descrição.
Apostas podem ser usadas de maneira mais subjetiva, de modo a “apimentar” o embate e definir conseqüências de antemão, se desejado. Na intenção, o jogador pode definir algo grandioso como “ele não só me deixa entrar como me leva até o cofre,” ao que o mestre pode rebater “certo, mas se você falhar, pode se considerar automaticamente prisioneiro e submetido a julgamento” — o jogador pode correr o risco ou mudar para uma intenção mais modesta (que gerará uma contra-aposta menos radical por parte do mestre).
O componente de descrição — a interpretação em si —, por sua vez, influencia o resultado. Podemos ser mais tradicionais, e dar um bônus (ou redutor!) na rolagem de acordo com a descrição. Ou, mais interessante, a descrição define a margem de sucesso ou falha.

Finalizando (e um pequeno pedido)

Se fui claro na argumentação, você percebeu que pode-se usar os conflitos sociais — bem como de outros tipos mais abstratos — de maneiras mais interessantes do que apenas baixar a cabeça para o resultado dos dados ou ingressar em um falatório que, ainda que possivelmente interessante, em nada (ou muito pouco) contribui para o andamento da aventura.
Dando às ações sociais uma dinâmica mais “de jogo” (gamist), como é feito no combate, estas se tornam mais interessantes e emocionantes, visto que é inserido um componente de estratégia. Assim como batalhas podem contar com fatores interessantes como terrenos exóticos, barreiras, ocultamento, posição das unidades, a tarefa social também se reveste de fatores semelhantes, tais como condições políticas, de personalidade, etc. No lugar de “eu converso o guarda” e similares, que deixam encontros sociais irrelevantes e excessivamente mecânicos, estes ganham um componente de perigo, conseqüências mais palpáveis.
O pedido: um amigo artista precisa levantar uma grana para adquirir materiais para fazer uma série de esculturas de fantasia; para tal, submeteu um vídeo em um concurso, e acessos são o critério. Assim sendo, por favor acesse o vídeo (nem precisa assistir, basta acessar) e, se possível for, passe o link adiante. Desde já agradeço.

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11 Resultados

  1. Mamorra disse:

    Parabens por mais um ótimo post, Shido. De fato, algumas vezes é necessário utilizar de rollplaying pra poder fazer algo que os jogadores queiram, mas não conseguem no rolleplaying. Mas aí vem um problema. Um jogador do meu grupo queria jogar com um bardo, porém sempre jogou de guerreiro e quando queria falar com alguem não sabia como se comportar como bardo… eu utilizaria o roll ou o role para as ações dele?

    • Daniel Anand disse:

      A pergunta aqui é: como é se comportar como bardo? Se a dificuldade dele é em falar como o personagem, sempre existe o recurso da 3a pessoa para quem não fica a vontade, como diz o Shido, fazendo a vozinha. 🙂 E, claro, um pouco de paciência até o jogador pegar a manha de seu PC novo.

  2. Daniel Anand disse:

    Shido, palmas. Artigo fantástico, uma excelente análise do nosso hobby mesmo. Eu também acho que o melhor caminho, como já dizia o Buda, é o caminho do meio. E me frusta quando as pessoas não percebem as fortes características que os sistemas de resolução de drama acabam aplicando no sentimento do jogo de RPG.
    Ou seja, não dá pra esperar que as experiências sejam comuns a todos, só porque a gente coloca tudo no mesmo balaio de gato que a gente chama de RPG. Seja jogando A Penny for my Thoughts, ou Dread, ou (deus me perdoe) Amber, ou indo pro outro lado do extremo, com o D&D Skirmishes ou Warhammer 40k, aproveitar o jogo no que ele se pretende sempre será uma experiência muito mais gratificante.
    E se alguém encontrar um grupo com as mesmas expectativas, não saia, porque vai ser aí onde se vai poder divertir pra burro.
    Abraço!

  3. Heitor disse:

    O problema do role vs. roll ainda possui uma terceira encarnação: a questão da inteligência do personagem e a do jogador; traduzindo, o clássico caso do bárbaro de Int 8 que bola uma estratégia completa de combate, enquanto que o mago de Int 20 só quer saber de explodir as coisas. É um bom pano de manga pra outro artigo.

  4. Spartanus disse:

    Esse sistema, de querer fazer algo, descrever como faz e efetuar uma rolagem já é usado no meu grupo faz um tempo.
    Funciona, principalmente quando o jogador está a fim de "dar continuidade ao personagem".
    Houve situações em que eu, narrando, a despeito do resultado dos dados, descrevi o êxito da ação do personagem do jogador simplesmente porque a descrição do que o personagem iria fazer foi muito boa para ser desperdiçada em uma rolagem ruim.
    É uma das típicas situações em que o narrador "rouba" a favor dos jogadores. Em benefício de uma boa história e da sinergia do grupo.
    O contrário também ocorreu, quando o jogador tentou fazer algo muito cretino, como xingar uma divindade e o clero da divindade DENTRO do templo da daquela ou atacar, sozinho, uma cidade, descrevi as (péssimas) consequências dos atos dos personagens a despeito das rolagens dos dados.
    Abraço.

    • Caio Viel disse:

      É, funciona assim também no meu grupo.
      E funciona muito bem.
      Muito bom o artigo. Mas concordo com o @Heitor sobre o mago com Int 20 (ou o ladino com Int 18). Dária um ótimo artigo.

  5. Arquimago disse:

    Como sempre escreveu algo bem interessante.
    Também acho a sugestão do @Heitor muito boa.
    Acho essa aplicação bem interessante, só consegui usar ela poucas vezes, e quando era jogador rolava meio de improviso e porque o jogador queria, mas era mais próximo da primeira pessoa.

  6. Savage disse:

    Muito legal o seu texto, Shido.
    No meu grupo usamos a interpretação para ajustar certos valores mecânicos, como por exemplo, aumentar ou reduzir a dificuldade do teste. Mas mesmo assim, no final, é o resultado do dado que diz o que realmente aconteceu na cena.
    Por quê?
    Pelo fato de que ele, o dado, é a simulação das adversidades. Nada na vida tem 100% de precisão.
    Tudo bem, muitos jogadores defensores da vertente “Old School” irão me criticar. Mas analisem: por acaso não existe aquele tipo de situação em que temos certeza absoluta de que vamos conseguir fazer certa coisa, e chega na hora acabamos não conseguindo?
    Quem nunca errou uma bolinha de papel na lixeira estando a menos de 20 cm dela?
    “Ah, mas se eu tiver Carisma 20 e tentar enganar uma criança, seria o mesmo que estar com a mão dentro da lixeira.” Errado. Pois estaríamos lidando com personalidades, sentimentos, emoções e uma série de fatores que excluem a exatidão, que excluem o óbvio. Realmente seria impossível –– em condições normais –– errar a bolinha na lixeira estando com a mão dentro dela, mas não existe “condição normal” e “padrão” quando falamos de comportamento individual. Hoje poderíamos estar vendo o mundo ao redor com olhos diferentes do de amanhã, e provavelmente diferentes do de ontem.
    Ou seja, a natureza entrópica do dado sintetiza todo esse conceito de “comportamento, humor, meio-ambiente” que pode ser os 0,1% do que era 99,9% certo.
    Só interpretação? Não acho a melhor solução… mas também não vou entrar no mérito do julgamento do Mestre [julgamento para substituir a aleatoriedade do dado], pois pode acabar descambando para o assunto da parcialidade do mesmo, e o descontentamento do grupo.
    Por fim, vou testar o que foi sugerido pelo Shido, que também parece ser muito bom.

    O importante é que cada mesa use o jeito que melhor lhe agradar.
    Porém, apesar disso tudo, fico me perguntando… O que é melhor a se fazer no caso de "Player x Player"?
    Será que poderia ter uma segunda matéria chamada "Interação Social: Interpretar ou Rolar? II – Jogador x Jogador", Shido? Rsrsrs.
    Abraços.

    • ZullOnituWa disse:

      Nesse caso poderia ser usado um sistema complexo de resolução de conflitos sociais, vide A Song of Ice and Fire Roleplaying e o seu Intrigue. Só uma opnião, pode ser que alguns grupos não gostem assim como pode se usar uma alternativa menos "complexa".

  7. yusha reiden disse:

    Adorei este artigo. Muito útil para minha mesa!! As dicas serão anotadas e executadas. Eu gostei da simplicidade. Não sei como nunca pensei nisso antes.

  8. ZullOnituWa disse:

    Muito bem Shido, seus artigos são os melhores. Já tinha pensado se falar in game em 3ª pessoa seria considerado roleplay, e se for então a 4ª edição tem bastante potencial, ou talvez nenhum obstáculo, pro roleplay .

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