Poucas regras, mestre tirano x Muitas regras, mestre refém
Recentemente, discutindo com outros jogadores de Tormenta sobre o novo Império de Jade, me veio algumas questões sobre como vemos e jogamos a fantasia medieval. Os questionamentos sobre o que seria considerada uma ação honrada ou desonrada, regra escrita no livro básico, ditavam o assunto e às vezes avançava em ramificações, por exemplo, como Lin-Wu era um deus cheio de problemas.
Um exemplo disso é o fato de um samurai perder Honra (habilidade essencial para a classe) ao cometer atos desonrados, mesmo estando controlado mentalmente por um vilão. Ou seja, para Lin-Wu e para o sistema de Honra, costumes, etiquetas e a sociedade estratificada eram valores mais importantes do que a velha dicotomia do Bem x Mal, que nós jogadores de fantasia medieval estamos acostumados. Ao culpabilizar a vítima, Lin-Wu está dizendo que não se importa com intenções, mas com o ato em si.
Essa diferença de valores – entre Império de Jade e os jogos do continente artoniano – pode parecer pequena, mas é uma pedra fundamental que norteará toda a forma que se deve jogar. É isso que gostaria de discutir neste artigo. Longe de mim querer determinar regras da forma correta de se jogar ou não, mas há de se apontar as diferenças existentes.
Estas diferenças não são apenas sobre o que o cenário apresenta. Implica também na forma de como jogamos RPG, especificamente, jogadores de fantasia medieval. Com o advento do sistema D20, com a terceira edição de D&D, regras acabaram ganhando maior importância e participação em uma mesa de jogo. Lembro de quando eu comecei a jogar RPG com AD&D nos idos anos 2000. Fazer a ficha era muito rápido e nós pouco usávamos fora de combate. As regras não englobavam todas as situações de jogo e nem tinham essa pretensão. Então, o mestre era um juiz mais subjetivo e as determinações de jogo dependiam muito mais da criatividade do jogador do que um sucesso em um teste. O mestre tinha poderes quase tirânicos, sem um conjunto de regras a se apoiar. Tudo passava por suas mãos e ele decidia os rumos das ações dos personagens.
Com a nova edição de D&D as regras ganharam nova importância. Elas tinham a pretensão de regular o máximo de áreas possíveis. Mesmo quando havia alguma situação em que não havia regra, o livro dizia para dar bônus ou redutores de acordo com a decisão do mestre. Ou seja, por mais que o sistema não estivesse preocupado em realmente escrever sobre todas as possibilidades em uma sessão de jogo (e nem de simular a realidade, longe disso), queria estar presente de uma forma ou de outra. O sistema queria que você rolasse dados para absolutamente tudo e dava suporte para isso. Se eram suportes bons ou ruins, é outra história…
O jogo se desenvolveu, ganhou novas versões (versão 3.5, 4ª edição) e suas ramificações (Tormenta RPG, Pathfinder, Império de Jade, Starfinder etc) com cada vez mais regras robustas, que visavam dar mais opções de customização aos jogadores e de controle do jogo ao mestre.
Nesses anos, o que se foi observado é que os jogadores tinham tanto acesso às regras quanto o mestre. Quantas vezes você não viu o mestre ser confrontado por sua decisão por um jogador que apontava no livro uma regra diferente? Se antes uma dúvida era resolvida rapidamente pelo mestre com sua subjetividade, agora nos acostumamos a buscar nos livros de regras todas as respostas para qualquer situação e, muitas vezes, não aceitando o que o mestre determinou.
Muitos mestres iniciantes, inexperientes, inseguros ou apenas impacientes e sem vontade de se impor, acabam voltando atrás em decisões para não contrariar o que está escrito nos livros. Com os jogadores de Tormenta existe um agravante: os autores do cenário e do sistema de regras são acessíveis. Diferente de uma mesa de Forgotten Realms, por exemplo, onde os autores estão em outras instâncias de acessibilidade, as mesas de Tormenta podem recorrer a um autor através das redes sociais.
Os autores de Tormenta acabam sendo “mestres adjuntos”, que dão a palavra final. A ordem fica assim: o jogador encontra uma situação, busca nos livros a resposta e encontra uma resposta dúbia. Então, ele vai até o autor de Tormenta na rede social perguntar sobre a questão e só depois vai até o mestre para convencê-lo. Os mestres hoje ainda têm o poder de decisão final, inclusive a revista Dragão Brasil faz questão de fazer sempre esta colocação: “veja com seu mestre”, “seu mestre decide” ou “o mestre tem a palavra final”. Eles tentam, mas o jogador quer a última instância. O jogador quer a palavra oficial do autor da regra.
Minha tese é que os jogadores fazem isso devido à tradição criada pelos jogos de D&D e seus derivados, com seus muitos bônus, redutores e pretenso abraço nas regras a todas as situações do jogo. Este comportamento, inclusive, acaba deixando o jogador no “piloto automático” muitas vezes. Acostumado a saber que as regras ditam tudo, ele não pensa fora da caixinha. Ele age de acordo somente com o que está escrito. Muitos iniciantes chegam a uma mesa com várias ideias e acabam enquadrando-se no que está escrito nos livros.
Além disso, o sistema granulado também é terreno fértil para o jogador combeiro, apelão, que tira poder das infinitas regras combinadas. Nada de errado em otimizar o personagem para ele ser focado em uma atividade. O problema é que a facilidade e as opções sem fim acabam fazendo alguns jogadores resumirem o RPG a isso. Não ficam satisfeitos com personagens de fichas simples, querem poder fazer de tudo e mais um pouco. Também não quero julgar a diversão alheia. Muitos jogadores se divertem apenas com fichas poderosas. Minha crítica se concentra ao jogador que se resume a um só tipo de diversão, quando o RPG é sobre multiplicidade.
Desnecessário dizer, alguns jogadores abandonam o RPG quando vê o jogo com apenas uma faceta. Às vezes o jogador é atraído pela promessa de interpretação de personagens, com criatividade e imaginação e lhe entregam um grid com miniaturas e uma ficha cheia de detalhes e poderes para se decorar, onde ele tem que aprender nos mínimos detalhes e adaptar sua criatividade a ela.
Claro que um jogo cheio de regras granuladas como D&D e seus derivados não impedem que o jogador seja criativo e desenvolva situações alternativas não previstas no livro. Afinal, como foi dito acima, os livros não pretendem cobrir todas as situações, mas sim estar presente nelas com a regulação do mestre. É importante salientar, todavia, que o sistema D20 “roda” sozinho, com o jogador podendo ser um figurante, um amontoado de números em uma engrenagem da história. É como se a aventura ou campanha fosse em si mais importante que os personagens dos jogadores. Se está certo ou errado, vai do entendimento de cada grupo.
O jogo Império de Jade pode ser pedagógico. Por ser um sistema de regras robusto e, ao mesmo tempo, dá ao mestre a palavra final sobre o que é honrado ou desonrado, pode tirar a atenção dos jogadores aos livros e se voltar ao mestre. Além de dar bastante enfoque na cooperação entre os jogadores (fazer algo contra um companheiro de aventura é um ato bastante desonroso), o sistema de Honra dá ao mestre o poder final. Não adianta mais correr atrás do livro, ou dos autores nas redes sociais. O mestre pode resgatar seu poder dos tempos anteriores ao sistema D20, mas sem ser um tirano sem regras alguma. Agora ele é mais como um “déspota esclarecido”.
Imagem de capa: Divulgação / Wizards of the Coast”
Imagem 1: http://maisdemildados.blogspot.com/2018/08/o-imperio-de-jade-o-que-ha-de-novo-eu.html
Imagem 2: https://geekandsundry.com/critical-roles-matthew-mercer-the-man-the-myth-the-dungeon-master/
Imagem 3: https://geekandsundry.com/super-fan-builds-enlists-super-dungeon-master-matthew-mercer/
Imagem 4: https://www.artstation.com/artwork/nQwLDe
A situação do mestre refém em Tormenta é como um juiz em que o advogado não aceita sua decisão e vai até o Legislador pra pegar o parecer final sobre determinada regra.
Bom artigo, usando de uma dicotomia para exemplificar uma questão de game design, em particular dos sistemas D20.
Mas convenhamos, essa dicotomia não precisaria ser verdadeira. Deveria ser possível manter no game design os aspectos positivos das “regras pra tudo”, e inibir seus desdobramentos tóxicos em mesa.
Será?
Até que ponto um regras amplas e que tentam abranger tudo podem conviver com Rulings, Not Rules?
Falar é mais fácil que fazer, né? Pode-se criar um conjunto de regras amplas para múltiplas situações, ao invés de múltiplos conjuntos de regras específicas para tudo. Diminuir os talentos puramente numéricos e a cultura de “escolhas boas e ruins”, inibindo o aparecimento dos advogados.
Os talentos de D&D são um bom exemplo de regra específica: zilhões de talentos que legislam sob aspectos ínfimos (e.g. talentos de combate montado).
Como estou na fase da 5e, eu acho que ela vai bem para este caminho proposto:
* Regras amplas e que se aplicam a tudo, mas sem entrarem em especificidades;
* Colocando um ou outro subsistema apenas em certas classes;
* Reduzindo dramaticamente o peso de talentos ao ponto deles serem opcionais e terem uma equivalência com o +1 de bônus em 2 atributos.
Entretanto, está simplicidade está atraindo os haters que pregam a falta de customização e de opções da edição. Por outro lado reduziu bem os advogados de regras.
Paço por isso algumas vezes na mesa. Até por um destes casos me desgostei bastante do jogo. Até pensei em dar um tempo no rpg. Mas o amor é maior e não consegui me afastar por muito tempo. O que sobra é se adaptar a isso.