Adapak e o mundo de Kurgala: Espada & Feitiçaria 2.0
Sem me preocupar aqui com uma definição AMPLA do termo, estou falando de histórias de aventura no melhor estilo Conan, O Bárbaro, onde guerreiros selvagens enfrentam feiticeiros e entidades malignas para salvar donzelas vestidas em trajes mínimos. Esse é o clichê que vem à mente, pelo menos, popularizado por diversas adaptações da obra de Robert. E. Howard e também pelas capas de antigas revistas pulp como a Weird Tales.
Levando esse imaginário em conta, OEdC pode ser considerado espada e feitiçaria revisitada, um 2.0 por assim dizer. Solano retoma o feeling dessas histórias surgidas em revistas de papel barato do início do século passado, mas volta à elas com ótica e ritmo narrativo dos dias de hoje.
Adapak: Um Conan contemporâneo
O romance se passa no universo ficcional de Kurgala, moldado a partir da interação de quatro deuses alienígenas com divindades locais. Inicialmente, tudo o que sabemos a respeito desses seres é a perspectiva do mito de criação dos próprios kurgalianos, relatado ao longo do livro.
A trama gira em torno do protagonista, Adapak. Ele é o filho de Enki-När, um dos quatros deuses, e vive com seu pai numa ilha sagrada, em completo isolamento e reclusão. Adapak não é humano, pertence a uma raça única até mesmo nesse mundo habitado por dezenas de espécies inteligentes. É um mestre no estilo de luta com espadas conhecido como os Círculos Tibaul e um oponente temível em combate. No entanto, ingênuo.
Todo seu conhecimento sobre o mundo exterior é em grande parte derivado de… sim, livros de Espada & Feitiçaria! Guiado por essa metalinguagem, o leitor acompanha uma história de amadurecimento em que observa o personagem aprendendo aos poucos como a realidade é diferente da justiça poética das obras de ficção: o herói nem sempre fica com a mocinha, o mundo não é dividido puramente em “bem” e “mal” e, é claro, tudo é mais complexo do que parece.
Comparações com histórias como a Alegoria da Caverna, de Platão, a vida de Siddharta Gautama, ou mais modernamente, Matrix, são inevitáveis, porque, com certeza, todas elas contém o arquétipo de personagem no qual Adapak foi inspirado. Sua ingenuidade sobre o mundo exterior é também uma ferramenta usada para que o leitor possa aprender sobre o universo de Kurgala através dos olhos do protagonista.
Só que além de tudo isso, Adapak diz muito sobre nós mesmos, nossa época.
Se o Conan de Howard era o mito do bom selvagem, fazendo o contraste de um guerreiro perfeito contra os males da civilização decadente e da modernidade (representado os temores e frustrações do autor e de seu tempo), Adapak é um bom selvagem falível com o qual é muito fácil o leitor dos dias de hoje se identificar. Como alguns fãs de fantasia do século XXI, vive uma vida segura, confortável, cercado de um “mundinho” de informação e cultura fácil, mas também alienado do mundo maior.
De certa forma, Adapak acaba sendo uma metáfora do seu próprio leitor. E se isso não é uma boa sacada, eu não sei o que é.
A narrativa de OEdC
A maneira como a história é contada é digna de nota. Solano foge da tendência “mosaico de personagens” de muitos livros de fantasia vendendo-que-nem-água-hoje, para se concentrar no protagonista e no que está orbitando diretamente ao seu redor.
Os capítulos se alternam entre presente, mostrando a jornada de Adapak em fuga, enquanto tenta descobrir porque está sendo perseguido pelos assassinos misteriosos que invadiram seu lar, e entre o passado, em flashbacks que mostram a vida na ilha sagrada e os momentos mais importantes de sua infância.
Essa estrutura é bem interessante, pois sob a luz dos flashbacks, o que está acontecendo com Adapak vai ganhando nova relevância e significado. Apesar de rica em descrições, a escrita de Solano é econômica e eficiente, sem se tornar cansativa. Escrito em terceira pessoa, frases em itálico são usadas ao longo do livro para mostrar pensamentos de Adapak e dar ritmo ao texto. Às vezes, descrições das reações dos personagens durante os diálogos soam um tanto caricatas, mas isso não chega a acontecer com uma frequência que incomode.
Li em outra resenha que o abuso de diálogos e uma cena final apressada foram o ponto fraco do livro. Embora entenda que parece haver uma quebra do ritmo, discordo. Solano se manteve fiel à estrutura narrativa que adotou, centrada no protagonista (por isso os diálogos), e encerrou a história sem ficar se estendendo inutilmente em longas jornadas enche linguiça a la Senhor dos Anéis.
Minha maior crítica fica para algumas escolhas na criação do cenário. Faltou um Glossário, que poderia ajudar o leitor a não se perder com as diversas raças inteligentes existentes em Kurgala (são muitas!). Ao mesmo tempo, em um mundo onde o protagonista e vários personagens importantes não são humanos, a existência dessa raça era, tudo somado, bem dispensável. Um mundo habitado apenas por seres humanoides (como na excelente HQ Lua dos Dragões de Marcelo Cassaro.) teria sido algo interessante de se ver.
“Quero ler uma história de Espada & Feitiçaria. Compro o livro?”
Sim! Por mais que seja uma narrativa auto-consciente dos seus clichês, OEdC ainda é uma história de aventura divertida, com espada, magia e monstros. Há herói, há vilão, há “donzelas” em perigo. Vai agradar o fã de fantasia e ficção científica em geral, mas acredito que também funcione perfeitamente para o leitor de primeira viagem que PROCURA algo do gênero. Apesar de ser, de certo modo, uma homenagem, o livro não está abarrotado de referências proibitivas ao “não iniciado”.
(Aliás, suspeito que irá agradar com mais facilidade esse tipo de público do que o leitor veterano hipster empedernido, que, muitas vezes cai vítima do seu próprio esnobismo cultural. Vejo que alguns nerds calejados entram numa onda frenética de ficar comparando o que estão lendo com as dezenas de clássicos e títulos gringos que já conhecem, incapazes de simplesmente RELAXAR e curtir mais uma boa história. Esse tipo de comportamento é muito chato. Sério, se você é adepto dessa #@$%¨*!, pare com isso!)
Concluindo, OEdC apresenta um cenário de fantasia que não deixa a dever para outros universos ficcionais. Chegando ao fim do romance, fica a vontade de continuar a explorar esse mundo, o que para mim, pelo menos, não implica necessariamente em uma sequência, continuando a história de Adapak. (A jornada do personagem se completou).
Quem sabe um spin-off focando nas aventuras de Tamtul e Magano? (Os heróis dos livros lidos por Adapak). Ou talvez uma adaptação para RPG trazendo as raças e continentes desse mundo como material para mestres e jogadores? Ganchos de aventura não faltam.
No futuro, espero poder voltar à Kurgala.
O Espadachim de Carvão. Affonso Solano. 255 páginas. R$ 29,70.
Tinha ficado curioso com esse livro depois de ver o release da primeira vez. Vou ver se dou uma olhada.
Uma pena que ele é preto, mas não é negro. Como se pra se ter um protagonista de pele preta se precisasse de alguma justificativa ulterior, de “não-humanidade” ou “transhumanidade”. Mas não li, né, talvez esteja julgando prematuramente. Se alguém me der de presente vou ler com prazer xD
Sei lá. Apesar disso, dá pra dizer que o Adapak se vira com “questões raciais”, porque sendo de uma raça ignorada pelos habitantes de Kurgala ele é visto e tratado com desconfiança. Na verdade, o ideal como eu disse (para manter o feeling alienígena meio sci-fi) teria sido um mundo SÓ com humanoides. Até daria pra ele ter sido humano e negro, mas aí um pouco desse elemento do cenário seria perdido.
O problema de um mundo só com humanoides, onde a diferenciação de “raças” acabaria ficando com os traços que a gente chama de “étnicos”, e isso ia ser pano pra manga (e mimimi)…
Isso aconteceria apenas se houvesse uma intenção de cada raça evocar uma etnia. E não é o caso. Imaginei mais uma narrativa “aliens only” como em Lua dos Dragões mesmo.
O que eu quis dizer é que o Adapak é um ser único, à parte. Outros de sua raça não são conhecidos. Viajei ao dizer que ele enfrenta racismo, acredito que nesse caso seria mais xenofobia. E nem isso, na verdade porque Kurgala é até bem cosmopolita.(As pessoas acham que ele é um feiticeiro que fez alterações no próprio corpo.)
Saquei. Esse bate-papo todo tá me fazendo querer ler o livro.
Acho difícil um personagem alien-preto-sem-nariz-com-olhos-brancos cair no gosto popular… achei esse personagem bem estranho pra dizer a verdade, na minha opinião o escritor exagerou na criatividade, tudo precisa ter um limite. Talvez funcionasse melhor em uma HQ, mas não em livro.
Olha, pelo que tenho acompanhado, a reação ao personagem em redes sociais está mais para o contrário. E sei que isso não quer dizer absolutamente nada, mas pelo menos não tenho visto um repúdio automático pela ideia. O personagem ainda é humanoide, não um monstro em forma de estrela do mar ou algo assim, o que faz perfeitamente possível sentir empatia por ele.
Talvez, esse lance de “parecer personagem de HQ” vem daquela ideia que literatura tem que ser mais sisuda,séria, recatada… o que acho uma visão meio equivocada. Depende muito das referências do público que você quer atingir, e hoje a galera é muito mais aberta a isso. Se aceitam o protagonista do filme “Avatar” de James Cameron passar metade do filme como um ET azul, também acredito que aceitam um ET negro sem nariz em um livro, desde que bem escrito.
Essa resenha me deixou com um pouco de vontade de ler. Acho que julgo muito este tipo de obra sem ler.
Pra mim ficou como tudo o que o Eduardo Spohr faz, algo super valorizado que faz sucesso por causa de um rede de fãs que não são fãs do cara mas do grupo Jovem Nerd. E esse pensamento é totalmente sem fundamento porque não li nada do cara!
Um amigo meu disse que até tentou, mas não conseguiu terminar o livro porque acho muito ruim. Mas também esse amigo não gostou do Inimigo do Mundo do Leonel e eu adorei.
Enfim, talvez eu leia mas não está na minha lista de prioridades. Não duvido da competência do autor, mas tenho medo de obras que causam um hype instantâneo.