Uma Máquina de Escrever em 2027

Achei uma máquina de escrever perdida entre os velhos pertences da família. Deve ter pertencido ao meu avô ou bisavô, não tenho certeza. Estava revirando os entulhos atrás de algo para vender para a loja de penhores e lá estava ela, toda empoeirada, atirada no meio de fotos amassadas e livros velhos.
Devia valer um bom dinheiro, pensei, e a levei para a mesa da sala. Tirei um pouco do pó com as mãos, sentindo a sua aspereza e a temperatura fria do metal. Aos poucos se revelou um corpo enferrujado, com algumas falhas, mas ainda inteiro no que interessava. A fita estava inteira, e todas as teclas estavam lá. Apertei algumas delas, como que para testá-las. O tac tac tac que faziam a cada batida me chamou a atenção. Era um som aberto, duro e seco, como um tapa, que parecia muito mais vivo, muito mais real e físico, do que o tic tic tic diminuto dos teclados de computadores modernos.
Não tive coragem de levá-la comigo. Peguei apenas alguns livros, Hemingway, Fitzgerald e outros desses autores do século passado que ninguém mais lê. Saí do apartamento, bati a porta atrás de mim e desci correndo pelas escadas até o térreo. Estava a poucos passos de pisar na rua quando ouvi uma voz atrás de mim.
– Ei, você.
Me virei e vi a última porta antes da saída aberta, de onde uma mulher olhava na minha direção. Tinha a pele escura e cabelos negros encaracolados, e vestia um topsem mangas que deixava o umbigo de fora. Um pedacinho da sua barriga saltava para fora da calça jeans apertada, que parecia precisar de muito pouco para explodir ao redor dos quadris. Eu não conseguia parar fitá-los, desejando que realmente acontecesse.
– O aluguel está atrasado. São dois meses já, e o terceiro está acabando.
– Eu sei.
– Não esqueça.
Ela entrou e fechou a porta atrás de si. Eu fui para a rua, ainda pensando naqueles quadris. A cada passo que dava eu os via balançando na minha frente. Até que percebi que era um outdoor holográfico, desses que fazem um scan de retina quando você passa por eles e põem os seus maiores desejos para anunciar barras de cereais e refrigerantes. Publicidade 2.0, os especialistas os chamam. Balancei a cabeça e voltei para o meu caminho. Não demorei a chegar na loja de penhores.
Consegui exatos cinquenta e dois créditos pelos nove livros que levei. Não era um valor ruim, apesar de ser bem menos do que eu esperava. Estava passando o meu cartão de identificação para recebê-los quando percebi uma máquina de escrever em exposição muito parecida com a que deixei em casa, ainda que mais limpa e em melhor estado de conservação. Havia uma folha de papel amarelado pronta para ser usada.
– Interessado? São trezentos créditos. – perguntou o atendente.
– Não, obrigado.
Saí de lá pensando nos quatro meses em que trabalhei em uma loja como aquela. Eu pegava os itens mais valiosos que recebia e ia penhorá-los em outro lugar. Se quisessem vir comprá-los de volta, dizia que já haviam sido vendidos. Até que uma cliente viu o seu colar de pérolas em uma loja diferente e reclamou com o dono. Mas foram quatro dos melhores meses que já vivi.
No caminho de volta passei em uma loja de conveniências para comprar algo para comer durante a noite. Duas pizzas congeladas e um pacote de biscoitos. Total: vinte e oito créditos. Antes de seguir para o caixa passei também pela sessão de bebidas e peguei o uísque mais barato que encontrei.
A moça do caixa não devia ter mais do que vinte anos. Ainda tinha aquele olhar inocente típico da adolescência, como se fosse capaz de acreditar em qualquer coisa que eu dissesse. O cabelo estava preso atrás de nuca e ela vestia um uniforme da loja. Seus peitos mal faziam qualquer volume sob a camisa. Paguei os quarenta e seis créditos que devia e saí de lá pensando neles, em segurá-los e apertá-los. Quase podia vê-los na minha frente, a um mero esticar de braços de distância. Então percebi que era outro outdoor publicitário.
Cheguei no edifício junto com a vizinha que morava no apartamento em frente ao meu. Ela devia ter algo mais do que quarenta anos e tinha um corpo redondo e baixo, com pelo menos dois pneus saltando para fora da calça jeans. O top também era apertado, com um grande decote revelando o ponto de encontro de um par de seios volumosos. Os cabelos vermelhos, obviamente tingidos, eram cortados na altura do pescoço, e seu rosto tinha uma aparência cansada, cheio de rugas e marcas. Havia uma grande cicatriz sobre o seu olho esquerdo, que tinha uma aparência vazada, como um desses implantes de silicone de má qualidade que corrigem problemas de visão.
Ela ruborizou ao me ver, e subiu as escadas sem dizer uma palavra. Eu fui atrás dela. Seus quadris largos se moviam na minha frente, o direito, o esquerdo, o direito, o esquerdo, em um ritmo hipnótico. Nos separamos ao chegar no nosso andar, cada um seguindo em direção ao seu apartamento. Apertei a mão na fechadura para me identificar e entrei após a porta se abrir.
Dentro de casa tudo ainda estava no mesmo lugar em que havia deixado quando saí. A máquina de escrever ainda estava sobre a mesa. Deixei as compras ao lado dela e peguei um copo para me servir do uísque. Seu gosto era forte e seco, como só os uísques baratos conseguem ser. Peguei uma garrafa de água para misturá-lo e levei o conjunto todo para o sofá.
Liguei a televisão. Passei as duas horas seguintes alternando entre programas de humor e noticiários, chorando nos primeiros e rindo nos segundos. A garrafa de uísque não demorou em passar da metade, mas eu ainda não me sentia bêbado. Sequer estava minimamente tonto. Pequenos robôs em escala celular percorriam o meu corpo levados pelo sangue, eliminando qualquer vestígio de álcool que pudesse me entorpecer. Foram injetados em mim na última vez em que fui internado em um hospital público devido a um coma alcoólico.
Desisti de me embebedar e joguei o copo na parede, ouvindo-o se estilhaçar. Desliguei a televisão, levantei e decidi preparar uma das pizzas para a janta. Comi enquanto fitava a máquina de escrever. Ela parecia se encaixar com naturalidade naquele ambiente, como se houvesse um buraco com exatamente o seu formato ali, em cima da mesa. Era como se fosse algum velho amigo com quem há anos eu já dividia o apartamento.
Terminei de comer, deixei os pratos na pia e fui deitar. A minha cama era dura e fria, e o único cobertor que possuía não era muito eficiente em me aquecer. Me revirei de um lado para o outro pelo que pareceram horas, mas, ao olhar no relógio, vi que eram pouco mais do que alguns minutos.
Levantei e decidi me servir um pouco do que ainda restava da garrafa de uísque. No caminho até a cozinha, no entanto, me deparei novamente com a máquina de escrever sobre a mesa. Interrompi o trajeto e fui até ela. Me sentei na sua frente, e comecei a passar a mão sobre o seu corpo outra vez, sentindo a sua aspereza e o seu toque frio. Apertei algumas teclas.
Tac.
Tac.
Tac.
Após fazer isso por alguns minutos, voltei para a cama e dormi sem dificuldade.
Acordei no dia seguinte pouco antes do meio-dia, sem ressaca. Mais um presente das nanomáquinas percorrendo o meu corpo. As amaldiçoei com todos os palavrões que conhecia enquanto me vestia. Todo homem devia ter direito à sua ressaca. Uma mundo sem ressacas é um mundo sem arrependimentos, e eu não sei se gosto de viver em um mundo assim.
Saí de casa e fui para a rua. Não tive encontros imprevistos dessa vez. Era dia de visitar a agência de empregos e ver se conseguia um trabalho para sobreviver durante mais alguns meses. Peguei o trem elétrico que passava próximo ao edifício e cheguei lá em pouco tempo.
Marquei uma ficha no meu cartão de identificação e achei um lugar para sentar. Meu número era o 351. O marcador digital de chamadas estava no número 172. Para passar o tempo, eu reparava nas outras pessoas que estavam na agência ou que chegaram depois de mim. Haviam homens e mulheres, dos quinze aos sessenta anos, negros, brancos, índios. Uns poucos tinham implantes eletrônicos, um olho artificial aqui, uma mão ou perna mecânica ali. Todos, sem exceção, olhavam para o vazio enquanto esperavam, com aquele brilho opaco nos olhos que só os desiludidos possuem. Formávamos uma grande comunidade, uma nação de perdedores em seu ritual semanal de comunhão.
Foram longas horas até que o meu número fosse chamado. Levantei e fui até o guichê ser atendido. Não havia ninguém lá, apenas uma tela de computador com um alto-falante.
– Confirme seus dados, por favor. – uma voz metálica disse através dele.
Estavam escritos na tela meu nome, data de nascimento, tipo sanguíneo, número do seguro social, e todos os dados que parecessem relevantes sobre a minha pessoa. Apertei o botão para confirmar. A próxima tela dizia qual foi o meu último emprego e quanto tempo eu permaneci nele. Confirmei novamente. Foram mais duas telas até que o alto-falante me mandasse aguardar enquanto os dados eram processados. Após alguns minutos, enfim, veio a resposta.
– Não temos vagas neste momento adequadas ao seu perfil. Por favor, volte na próxima semana.
Uma tarde inteira perdida para ser atendido em cinco minutos e não conseguir nada. A história da minha vida.
Saí de lá e fui caminhando devagar até a parada do trem. No caminho havia uma papelaria, onde resolvi entrar após observar a vitrine por alguns minutos. O seu interior era dominado acessórios para tablets, canetas digitais, cadernetas eletrônicas. Apenas em alguns lugares havia algumas caixas e cartões para presentes, resquício de uma época em que o nome papelaria ainda fazia algum sentido. Estava me virando para sair de lá quando um dos vendedores veio em minha direção.
– Posso ajudá-lo?
– Eu estou procurando papel.
– Pa…pel?
Ele me olhou atravessado, como se eu fosse algum tipo de excêntrico, mas não se recusou a me guiar pela loja até um setor isolado em um canto longe da entrada, onde algumas pilhas de cadernos tradicionais e pacotes de papéis estavam expostos. Peguei um dos pacotes de cinquenta folhas e fui até o caixa pagar.
Depois disso fui direto para casa. Cheguei quando já estava escurecendo e comecei a subir as escadas até o meu andar. No meio do caminho encontrei a proprietária, descendo. Ela sorriu quando me viu e eu sorri de volta para ela. Quando passou por mim, me virei para trás e olhei mais uma vez os seus quadris.
Terminei de subir ainda pensando neles, e, ao chegar no meu andar, me deparei com todas as minhas coisas jogadas do lado de fora do apartamento. Após alguns segundos para me recompor, corri até o corrimão da escada e gritei:
– Sua puta! Vagabunda! Eu ainda vou meter em você! Vou meter gostoso no seu rabo, você vai ver!
– O que está acontecendo? – era vizinha da frente que abriu a porta do seu apartamento, vestindo uma camisola larga que ia do pescoço até os pés.
– Nada. Só estou sendo despejado.
Comecei a tentar juntar alguns pertences em silêncio, mas, ainda que fosse uma pilha pequena, eram coisas demais para que eu pudesse carregar sozinho. Ela então se aproximou de mim e perguntou:
– Você tem algum lugar para passar a noite?
– Eu me arranjo.
– Você pode passar a noite no meu apartamento. Amanhã você sai e tenta arranjar algum outro lugar para morar.
Aceitei a oferta, e, com a ajuda dela, levei os meus pertences todos para dentro. Comemos a outra pizza congelada, bebemos o resto do uísque e assistimos televisão por algumas horas, antes de irmos deitar. Ela foi para o seu quarto, enquanto eu me ajeitei no sofá com o meu cobertor velho.
No meio da noite acordei com ela acariciando os meus cabelos. Não pareceu se assustar quando eu abri os olhos, a puxei pelo pescoço e a beijei com força. Ela subiu com pressa no sofá, eu me virei para ficar por cima, e comecei a meter.
– Oh, Sr. Chinaski… – ela dizia a cada estocava que eu dava.
Metemos ainda outra vez e então ela se acomodou de lado para dormir entre os meus braços. Eu a abracei e tentei dormir de novo, mas não consegui. Alguns minutos depois me levantei com cuidado para não acordá-la e fui até a cozinha procurar algo para beber.
No meio do caminho encontrei a máquina de escrever em cima da mesa da sala, da mesma forma como estava no meu apartamento. No seu lado estava o pacote de folhas que eu havia comprado durante a tarde. Me aproximei devagar e sentei na sua frente, então abri o pacote e coloquei uma das folhas na máquina. Bati uma das teclas algumas vezes, apenas para testar se estava funcionando.
aaaa
Uma ideia então me ocorreu. Sobre o que eu gostaria de escrever? Antes que percebesse, meus dedos já começavam a formar uma frase.
aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa.
Não me pareceu muito boa, então a risquei e tentei pensar em outra coisa. Alguns segundos depois, comecei outra frase.
aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa
Cheguei em casa de madrugada
Cheguei em casa de madrugada, e fiz o quê? Não me parecia muito bom também. Risquei a frase mais uma vez.
Empurrei as costas contra o encosto da cadeira e olhei para o teto. Suspirei profundamente, e olhei novamente para a máquina de escrever. Então, em um lampejo súbito, voltei a escrever.
aaaa
Era uma noite fria e tempestuosa
Cheguei em casa de madrugada
Achei uma máquina de escrever perdida entre os velhos pertences da família.

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2 Resultados

  1. JR disse:

    Cara muito bom seu conto.

  2. Negócio louco foi que dez dias antes de tu publicar esse conto, eu dei de presente pra minha namorada uma máquina de escrever.

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