Rituais de Iniciação
O sol estava a pino. Os garotos faziam um esforço extraordinário para não se coçarem. Eram cerca de vinte ou trinta rapazes, distribuídos quase que em círculo, em silêncio, enquanto aguardavam o que estava por vir.
Um dos garotos, de nome Mwingo, olhava nervosamente para todos os lados. Um milhão de pensamentos assaltava-lhe a mente, como se fossem trocentos insetos abocanhando vorazes um naco de carne podre – …pois agora serei um homem. Um homem. Cara, eu… Eu não sei. Eu nasci, estou aqui. Nós respiramos, aprendemos a ser machos. Tem de ser forte, tem de vencer! Tem de ser o melhor! Vamos entrar na mata… morro de medo. Nos ensinaram sempre, a mata é o lugar das bestas, dos monstros, dos maus espíritos. Não é nosso mundo. O mundo dos homens é esse nosso da aldeia, dentro desse círculo que separa nosso mundo desse outro mundo de árvores e monstros e espíritos invisíveis com olhos cruéis! Vão todos nos engolir, estão sempre de olho! Sempre. Nasci e mamei de minha mãe, cresci e conheci os outros garotos, apanhei dos amigos e bati em alguns, brinquei no lago e fiquei babando pelas garotas, jogamos nossas brincadeiras de garoto – para provarmos que somos machos! E agora estou aqui. Eu, Mwingo, vou participar do ritual de passagem, junto de meus amigos, para deixar meus pais orgulhosos. Para ser um homem. E… estou morrendo de medo. Cheio de medo! Não estou pronto! Não estou…
Rituais de Iniciação
Rituais de iniciação são um elemento recorrente em muitas sociedades africanas tradicionais – assim como o são no mundo inteiro, até hoje. Seja baptismo, início da fase adulta, casamento ou óbitos, para cada uma dessas fases de transição há ritos específicos para garantir boaventurança, coragem e sabedoria para encarar o que está por vir. Os rituais africanos tradicionais são sempre carregados de ensinamentos e respeito ao sagrado, à família, aos ancestrais.
Mukanda
Por exemplo, entre os quiocos de Angola, todos os garotos entre dez e catorze anos, de todas as classes sociais, são submetidos à mukanda, rito de iniciação em que lhes são ensinados os segredos da criação do mundo, as tradições, músicas e canções da linhagem. Os que sobreviverem às provações serão circuncidados. Determina-se uma data comemorativa em que se reunirão um grupo de dez a quinze garotos, e os pais destes devem pagar os instrutores – o nganga-mukanda (curandeiro operador), seus tchifungudji (ajudantes) e o tchikolokolo (professor e enfermeiro); geralmente, o pagamento consiste em animais domésticos – galinhas, cabras -, bebidas e pulseiras de materiais raros. As famílias reservam economias para esse momento desde o nascimento da criança, e esperam que retornem bem-sucedidas.
Os instrutores então levam os garotos para uma cabana no meio do mato, para que permaneçam longe de seus parentes e de toda a comunidade, durante dois anos ou mais. Enquanto estiverem na cabana da mukanda, aos alunos só é permitido falar o mínimo necessário, jamais devem desperdiçar palavras triviais entre si. Devem tratar os instrutores com o máximo de respeito, mesmo os que são filhos de pessoas mais distintas; devem se ajoelhar e rolar a barriga na areia antes de dirigir qualquer dizer aos senhores instrutores, e qualquer atrevimento é punido com expulsão e abandono do rebelde na mata.
Os moleques têm de provar seu valor por meio de vários testes; por exemplo, uma das provas, que atende pelo nome de kaianda, é um mistério que consiste em embrulhar o aluno em palhotas como se fossem rocamboles humanos, e deitá-lo de bruços no meio da mata, em noites sem luar, de forma que não possa enxergar nada ao seu redor. São então atormentados por barulhos medonhos provocados… por quem? Animais selvagens? Monstros? Cazumbis (espíritos maus)? O aluno não sabe e nem deve saber, pois não pode se mexer nem sequer soltar um pio que seja… mesmo que haja lacraias e aranhas picando-lhe a bunda. Se se mexer para encarar o ente sobrenatural que o atormenta, poderá ser morto. Deve permanecer calado e na mesma posição até o amanhacer.
Outros testes incluem provas de conhecimento, jogos de adivinhas, aulas de caça, dança, confecções de máscaras e todos os segredos anteriormente citados, para que sejam considerados verdadeiros membros da linhagem. A mukanda também determinará a carreira que o jovem seguirá pelo resto de sua vida, qual papel desempenhará em sua comunidade. Ou seja, os garotos têm de lidar, eles próprios, não apenas com seus sonhos e objetivos, mas também com todas as expectativas depositadas por suas famílias, conscientes de que foram criados todos esses anos para esse momento, o derradeiro momento em que mostrarão do que são feitos. Um resultado negativo e terão de lidar com a alcunha de fracassados para sempre.
Muitos garotos morriam durante as provas
Ao fim de todas as provas, os moleques são reunidos na cabana à noite e devem relatar, da maneira mais sucinta possível, tudo o que aprenderam e o que esperam daqui por diante. Devem falar ajoelhados, pois estão comunicando aos ancestrais da linhagem que estão prontos para se tornarem homens. E então aparece um ancião dançarino, o mukishe. Este se lança no meio do círculo, todo vestido de tecido e pelos da cabeça aos pés, e envergando uma poderosa máscara mwana pwo. Os alunos tomam uma beberagem mágico-curativa para preparar seus corpos, e então são finalmente submetidos à circuncisão. Não devem gritar jamais. O nganga-mukanda utiliza instrumentos abençoados e realiza o procedimento em completo silêncio, enquanto a deusa mwana pwo, encarnada no dançarino mukishe em transe, solta gritos apavorantes enquanto dança e recita palavras de poder.
No dia seguinte, os circuncidados sobreviventes – alguns garotos falecem devido a complicações operatórias e aos maus espíritos da insalubridade – são baptizados em água parada, banhados por seus professores, para isentarem-se de quaisquer resíduos espirituais malignos decorrente dos testes.
Conforme manda a tradição, os que sobreviveram juntos à mukanda passam então a tratar-se por irmãos, e um forte laço permanecerá entre eles, laço ainda mais intenso do que entre irmãos biológicos que não participaram da mesma mukanda.
Nunca deve-se contar o que ocorreu na mukanda. Nunca. Os ancestrais proíbem de revelarem esses mistérios.
Finalmente, os jovens homens são recepcionados com um grande banquete preparado pela comunidade e reintegrados à família. Passaram por terríveis provações… e agora enfrentarão provações ainda mais difíceis como membros adultos de sua linhagem – trabalho, casamento, sustentar sua família, guerras, sociedade, política. Mas os detalhes desses ritos da vida adulta podem ficar para futuros artigos…
E as mulheres?
Oh sim, as meninas são submetidas aos seus rituais próprios, em parte até semelhante aos dos garotos.
Assim que menstruam, as meninas também são separadas de suas famílias, mas individualmente, nunca em grupos. São então ensinadas por uma anciã, a quem a família também deve pagar tributos semelhantes aos dos instrutores da mukanda. A anciã introduz a menina nos segredos da linhagem, da criação do mundo, do funcionamento da sociedade – assim como ocorre na mukanda – e também no aprendizado sexual e nos ritos de fertilidade, para que se garanta muitos novos filhos para a linhagem. Ao fim de todos os aprendizados com a anciã, a menina-mulher poderá ser deflorada… pelo próprio tio. Assim manda a tradição. Contudo, à nova mulher é reservada a escolha de seu primeiro homem. Não deve, entretanto, alongar-se por demais em sua opção; menina que menstrua torna-se mulher; toda mulher será sempre cobrada, questionada e mal-vista se… permanecer virgem por muito tempo.
A mulher infértil é extremamente desprezada.
Legal, cara!