Criaturas para M&M: Os Sem-Fim
Campanhas e vilões em Mutantes & Malfeitores tem um verdadeiro baú de ideias se você pensa na quantidade de material que as HQs representam. Ainda assim, não custa arrumar alguns pensamentos e colocar em prática velhos plots. O presente post* é uma tentativa nesse sentido: sugerir um tipo de antagonista para histórias quadrinescas, ao estilo Batman, Dylan Dog, ou Questão. Ele é fruto de uma criação antiga que deu vida a algumas histórias nas mesas de cá.
Sombra e Medo
“Você já teve a ligeira impressão de que há alguém que se esconde na sua visão periférica? Falo daquele vulto, daquela figura sem foco, que insiste em sumir quando a procuramos… Há uma sinistra presença em dias de chuva, nos observando de longe quando a atenção escapa. Eles não são de todo ruins. Apenas ficam lá, quando não olhamos certo. Sei que pode ser loucura. Você já deve estar achando isso. Pode estar esperando que eu conte uma história dramática. Talvez você espere que eu fale como os encontrei ou como eles são. Acredito até que você imagina que, ou eu sou um lunático ou tenho um segredo poderoso e terrível para revelar. Sinto muito. Estou aqui só para dizer que, hoje, descobri que sou um deles. E que, se tudo der certo, vou visitar você algumas vezes. No canto dos seus olhos. Tudo bem?”
A antropologia (pois é…) chama o exercício de se reconhecer e classificar o Outro (os outros, de um modo geral) de alteridade. Aprendemos, desde crianças, o que significa um estranho – com quem não se deve falar – , aprendemos o que significa o diferente. Quando crescemos, claro, essas noções mudam, são colocadas em novos termos. Aprendemos a nos arriscar, a conhecer pessoas, a avaliá-las e a repensar diferenças – ou, até mesmo, gostar muito delas. Isso tem tanto a ver, vale pensar, com nossa formação cultural como com nossa história particular.
Agora, imagine, por um instante, o que seria conhecer uma pessoa capaz de algo que você jamais imaginou possível. Imagine descobrir que um vizinho seu é capaz de ler a sua mente. Ou que sua professora tem a força necessária para quebrar um cano de ferro. Imagine só descobrir que seu amigo irritadinho – aquele, que é muito gente boa, mas que se zanga fácil ao ponto de sempre entrar em uma briga – ganhou o poder de atear fogo nas coisas apenas com a força da vontade. E se ele se tornar, por algum motivo bobo, seu inimigo?
A idéia do poder individual como “recurso desleal” ou desigualdade efetiva é o temor maior de toda e qualquer ordem social. Histórias como O Homem Invisível de H.G. Wells, apresentam o processo de corrupção gerado pela capacidade incomum. A série Guerra Civil (Marvel Comics) é outro exemplo: uma grande e vasta discussão se estabelece em torno do perigo de seres com poderes (um debate há tempos criado no universo dos X-Men). Mas é curioso pensar que, na maioria dos casos, nos colocamos do lado dos “pobres supers perseguidos”. A idéia geral de que o preconceito é a mãe das perseguições se ampliou com os acontecimentos nefastos ligados ao Holocausto, na Segunda Grande Guerra. Ou pode muito bem remontar ao período da Inquisição e das atrocidades por ela cometidas sob a bandeira de “caça as bruxas”.
Mas e, se, em nossa ficção, em nossa campanha, as bruxas existirem? E se imaginarmos os perigos reais da Diferença, do Outro? E se, por um momento apenas, você puder imaginar o alarde e o desespero de conhecer seres capazes de coisas que você jamais sonharia? Seres que, a qualquer momento, podem mudar a sua vida ou a de alguém que você ama – para pior… E se os Estranhos da infância retornarem, realmente perigosos, como eram nos conselhos paternais?
Apresentarei aqui um tipo de super diferente. Chamaremos essas figuras, pelo menos por enquanto, de Vultos. Eles são mais interessantes em campanhas onde os personagens jogadores são humanos comuns ou quase-comuns, lidando com supers misteriosos e fora de controle (de qualquer controle!). Telepatas, investigadores e pessoas com equipamentos avançados estariam inclusas em um grupo de caça deste tipo.
Vulto típico (NP 8; 120 PP )
Habilidades: Força 10 Destreza 10 Constituição 14 Inteligência 14 Sabedoria 16 Carisma 9
Salvamentos: Resistência +4 Fortitude +2 Reflexos +13 Vontade +10
Combate: Ataque +10 (Faca: Dano + 5) ou Ataque + 8 (Golpe Indireto: dano de +8), Defesa 18 (Desprevenido 10)
Feitos: Foco em Esquiva 8, Ataque Furtivo 3, Rolamento Defensivo 2, Presença Aterradora 5, Golpe Indireto 4 (novo feito: o personagem ataca de forma indireta seus alvos, fazendo-os sofrer acidentes: objetos caindo de janelas, escadas com falhas, fios descascados, etc. O ataque causa, no máximo +2 para cada graduação neste feito e é determinado pelo mestre – tanto suas possibilidades quanto seu dano efetivo. O bônus de ataque é reduzido em 2, nestes casos).
Perícias: 25 pontos em quaisquer perícias (100 graduações) sendo Furtividade +13 (+13).
Poderes: Camuflagem 4 (todos os sentidos visuais, Desvantagem: Perda de Poder: visão periférica) – Poder Ligado: Super-Movimento 2 (Permear, metade de sua velocidade normal), Leitura Mental 8 (Falha: Cansativo), Super-Sentido 1 (Detectar outros Vultos).
“Eles caminham entre nós, literalmente. Podem estar em qualquer parte, ouvindo qualquer conversa. Sabem muito sobre nossos hábitos. Às vezes, deixam mensagens desconexas. Às vezes, deixam ameaças claras. Exigem coisas. Que nos mudemos ou que alimentemos os gatos da rua. Coisas ruins acontecem quando não se obedece. Vidros se quebram. Pessoas somem. Não se sabe o que eles querem, enfim. Talvez nada específico. O mais difícil, o mais complicado, é que, quando eles entram no seu mundo, ninguém, ninguém vai acreditar…”
Do Outro Lado
Digamos que, mesmo depois dos exemplos, você seja aquele teimoso que ainda prefere o outro lado de toda essa história. Você quer interpretar um Vulto, deslizando pelas vidas das pessoas e deixando tudo para trás? Ok, vamos lá.
Os Sem-Fim (Campanhas de NP 5-8)
Os Sem-Fim (um nome pomposo dado por um poeta mendigo de New Orleans a um grupo de amigos com dons estranhos) são pessoas incomuns, que precisam aprender a lidar com um poder perigoso e tentador. Ninguém sabe exatamente como eles surgem ou porque. Tudo o que se sabe é que, em algum noite ou dia de chuva, o garoto tímido ou a menina retraída percebem que podem passar ainda mais despercebidos que antes, pelos demais…
Eles têm a capacidade de enganar as vistas das pessoas, em uma espécie de engodo sensorial único. Aprendem, com o tempo, a também cruzar portas fechadas, paredes ou grades, como verdadeiros fantasmas ou sombras. Por fim, os mais talentosos sabem ouvir o pensamento alheio, com algum esforço. Um Sem-Fim costuma viver entre as pessoas comuns, sem que jamais suspeitem do mesmo. Com o tempo, contudo, seus poderes aumentam e eles acabam perdendo o respeito pelas convenções, se afastando das pessoas a sua volta. Em meio a uma vida sombria, sem regras, eles se reconhecem e tecem pequenas guerras entre si. Quando você pode fazer qualquer coisa, sem vigilância, seu maior inimigo é seu igual.
Não é impossível que algumas agências governamentais tenham descoberto sua existência. Aqui não há grandes novidades: o governo quer vê-los destruídos ou sob rígido controle, como armas valiosas e ferramentas incomparáveis. Então, boa sorte.
Criação de Personagem: entre 75 e 120 pp
Pré-Requisito: um Sem-Fim precisa ter Carisma 10 ou menos quando adquire seus primeiros poderes. Normalmente eles se manifestam em pessoas distantes da sociedade, com personalidades instáveis. No entanto, é extremamente comum que isso mude, na medida em que o Sem-Fim aprende a controlar suas habilidades e a se beneficiar delas…
Poder Obrigatório: Camuflagem 4 (sentidos visuais, Desvantagem: Perda de Poder: visão periférica) (7 PP)
Outros Poderes disponíveis (sugeridos) para Personagens Sem-Fim:
Leitura Mental (SEMPRE com a Falha Cansativo, sem alterar o custo). Sem-fim aprendem uma forma própria de leitura mental, como se pudessem driblar até mesmo as barreiras mais sutis de qualquer coisa. Quando o fazem, contudo, sofrem grande desgaste.
Super-Movimento (qualquer, normalmente Ligado à Camuflagem).
Controle Mental
Rapidez (normalmente Ligado a Camuflagem)
Velocidade (normalmente Ligado a Camuflagem)
Escudo (alguma forma de defesa, normalmente baseada em uma esquiva incomum).
Observação para o mestre: para manter a história em termos mais simples, permita poderes com graduação máxima = NP (sugestão de limite extra do Manual do Malfeitor). Isso estimula a criação de personagens com outras capacidades, mais mundanas (especialmente perícias).
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“Você… viu aquilo? Não? Tenho certeza que… estava lá! Alguém do outro lado da rua.. Estava ali, tenho certeza… Eu… tenho… certeza… como… das outras vezes…”
*Este post foi originalmente publicado por mim no blog Samurai Seis, em junho de 2009, como parte da Iniciativa Mutantes & Malfeitores.
Já falei isso antes, e digo novamente, muito bom! Idéia brilhante!
desculpe por fugir do assunto mas como nordestina gostaria de divulgar
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ajude!
Bélissimo texto!
Olha o texto e a idéia são ótimas, podiam postar pra outro sistema?
E aqui sei que não é o lugar, mas é o post mais vazio, o que o talento Reflexos em Combate vai fazer no Tormenta RPG se ataque de oportunidade é regra opcional? Vai ser um talento opcional?
Muito interessante, principalmente pra uma campanha composta somente de Vultos.
Só acredito que M&M é um sistema muito mais voltado pra combate, pra esse tipo de personagem. Eles ficariam mais interessantes em sistemas que priorizam interpretação sobre combate como Storytelling ou mesmo GURPS – embora, é claro, um grupo possa usar esse plot para fazer campanhas beeem violentas…
Estava esperando alguém faalr do GURPS ^^
E tem como você desenvolver mais essa questão, porque o GURPS e não o M&M?
Ps.: Nada de Guerra de Sistemas em!!!;)B)
Bom, eu sou fã de GURPS, mas não um devoto de Saint Steve Jackson… Defendo o sistema, mas não com fanatismo! ^^
Chê, acho mais interessante uma adaptação pro GURPS – ou Storytelling – por uma questão de sistema de recompensa de XP e pela questão de sistema de evolução. GURPS – e Storytelling – Tem um sistema de XP que não é bvaseado em combate, e com o sistema de perícias, o personagem evolui naquilo que é bom, sem necessariamente ficar melhor em tudo, simplesmente 'porque subiu de nível' como faz o sistema D20 em geral.
Como eu disse, acho que uma campanha usando só os Sem-fim seria muito interessante, mas acredito que penderia muito mais pra uma campanha de horror/terror psicológico do que pra uma camapnha de Supers mais normal, e portanto teria muito menos foco em combate, daí o GURPS ou o Storytelling me parecerem mais adequados.
Porém, numa capanha de Supers "normal" em que os heróis precisam se defrontar diretamente com os Vultos, acredito que usar o M&M seria tão adequado quanto qualquer outro sistema; minha preferência por GURPS ou Storytelling era no caso de uma campanha menos voltada para combate, e mais pra interpretação.
Salve, companheiros.
Sou narrador de Mutantes & Malfeitores desde seu lançamento e me sinto bastante a vontade com suas regras. A escolha do sistema aqui tem tanto a ver com a tentativa de mostrar que suas mecânicas básicas podem sim ser usadas em campanhas menos "quatro cores", como o próprio livro básico sugere e como séries de quadrinhos demonstram. Tem também relação com o fato de que defendo ele como um sistema altamente customizável e diverso (vou evitar a palavra "genérico" para não abrir sobre isso um debate agora… :P).
@Domenico, Não concordo com a noção da premiação (XP). Em M&M isso nem mesmo chega a ser importante. E, quando pontos são distribuidos (1 ou 2 por história, no meu caso) eles permitem muito mais um ajuste parcial (em Perícias, por exemplo) do que "melhoria" geral. Pelo menos a médio prazo.
De toda forma, eu gostei da sugestão de levar a ideia para outros sistemas. Acho que isso pode ser bacana para brincar com as possibilidades mecânicas dos mesmos. Esperem novidades, logo. 🙂
Que sistema você propõe? Vamos ver se eu dou conta. 😛
Olha, não sou o especialista em Tormenta local, aviso logo… Mas, acho que a sua própria resposta para a pergunta é bem coerente, ué… 😛
Abraço.
Bom, na verdade, eu não sou um grande conhecedor de M&M. Joguei só uma partida, e nem cheguei a ler o sistema todo. Partí mais do princípio que o sistema D20 usa níveis, e a premiação de XP é dada por hack n' slash, mesmo. De qualquer forma, o pouco que joguei do M&M não me agradou muito. Prefiro o GURPS Supers toda a vida e mais seis meses!
O M&M pode ser tão (digo até mais) narrativo que o Gurps, porque a mecânica de Pontos Heróicos e a premiação em XP favorecem esse tipo de coisa.
Mas obviamente, tanto em M&M e GURPS uma aventura pode desbancar para a porradaria insana…
Eu chamo de genérico sim, nunca achei um sistema tão maleável com apenas seu módulo básico.
No mais, excelente artigo, me deu várias idéias!
Li esse artigo no blog original e só posso dizer uma coisa sobre ele: é muito bom. Alguém precisa escrever um conto ou uma hq com esses personagens.
Pois é… Dá um baita plot pra uma HQ, a lá "os invisíveis" (com um pouco menos de LSD, de preferência)!
Conto pode sair, sim. Aliás temos bons contistas aqui. Mas HQ vai ter que ser alguém melhor do que eu. Só sei desenhar aqueles bonecos da Forca. 😛
Abraços.
Sempre fico feliz com Cientistas Sociais fazendo RPG!
Um salve Antropologico!
Saaarve! Que São Levi-Strauss e São Geertz lhe abençoem! 😀