Construindo mundos com China Miéville

Para quem não está familiarizado, China Miéville é o autor do romance Perdido Street Station — sobre o qual você pode saber mais se ler esta resenha tudo-de-bom do BURP — e as seqüências The Scar e Iron Council. Tendo recebido, em 2001, o Prêmio Arthur C. Clarke e o Prêmio August Derleth da Sociedade Britânica de Fantasia, entre outros — incluindo o Editors’ Choice Award da Amazon.com na categoria fantasia –, seja no gênero ficção científica ou fantasia, Perdido Street Station evade as convenções da fantasia tradicional. Bas-Lag, o mundo em que se passam as histórias, é complexo, detalhado e surpreendente, mandando às favas vários dos clichês da fantasia em detrimento da coerência — que, ao lado da originalidade, é justamente um dos atributos enaltecidos em suas obras. China Miéville é também autor de um ensaio sobre construção de mundos, On World Building, que traduzo a seguir e penso ser de valia, seja para escritores, mestres de jogo ou criadores de cenário aspirantes.

Sobre construção de mundos
“Dezessete notáveis impérios ergueram-se no Período Médio da Terra. Estas eram as Culturas da Tarde. Todas, exceto uma, são sem importância para esta narrativa.”
Estas são as linhas de abertura da impressionante seqüência Viriconium de M. John Harrison, na qual ele casualmente escreve a mais importante regra de construção de mundos que eu conheço. Histórias, leis, culturas, estéticas — mundos — são colossais e colossalmente complexos. Não há como contar a história de um mundo todo. Não importa o quão detalhada seja sua linha do tempo, ou cuidadosamente ilustrado seu bestiário, não há como explicar tudo. Se algo não é importante para a narrativa, sequer tente — há um limite para despejos de informação que uma história pode aguentar, e eu guardo os meus para as coisas que o leitor precisa entender. O restante das coisas estranhas, ou raças, ou lugares — eles apenas estão lá. Eles apenas acontecem. Insira-os, descreva-os e deixe-os em paz, mesmo que isto deixe o leitor com incertezas. Sem problemas. Na verdade, isso é bom — é choque cultural. Dando certo, isto comunica que há um mundo além do livro, no qual ocorre a história, em vez de uma história com alguns acessórios de fantasia jogados dentro.
Há poucos prazeres maiores na Weird Fiction (“Ficção Estranha”) que um monstro realmente legal ou uma inusitada raça alienígena. É por isso que não faz sentido escolher suas criaturas da lista usual de suspeitos — elfo, anão, centauro — você sabe.
O melhor da tradição fantástica — o Surrealismo, por exemplo — é sobre usar o fantástico para desafiar, alienar, criar o grotesco que mantenha o leitor surpreso. Geralmente, alienígenas estereotipados servem à função oposta, uma vez que não são nada alienígenas. São confortantes porque são tão reconhecíveis. Este tipo de fantasia não é nem de longe suficientemente fantástica.
Não estou dizendo que seja impossível escrever fantasia boa e inovadora com elfos e anões (The Iron Dragon’s Daughter de Michael Swanwick exemplifica isto). Só estou dizendo que eu não o faria. E, de qualquer forma, metade da diversão está em inventar estas criaturas — por que não aproveitar a oportunidade para criá-las do zero ou explorar mitologias mais inusuais que a fairyland tolkeniana? E uma vez tendo criado sua raça, lembre-se de que raça, cultura e caráter são três coisas muito distintas. Poucas coisas em fantasia me incomodam mais que uma raça em particular agindo como sinônimo para um tipo particular de personagem. Por que todos os elfos são inteligentes e feéricos? Existe algum anão que não seja ranzinza e bom com as mãos? E o que acontece se você é um orc mas não é, você sabe, mau?
Isso é estereotipação racial na terra da fantasia. E isso dá origem a explicações tão pouco convincentes quanto a mesma atividade no mundo real. Claro que teremos diferenças culturais entre diferentes raças, mas, novamente, por que estas raças precisam ser monolíticas? É realmente provável que, em seu mundo cuidadosamente construído, dois grupos de kobolds alados, separados por mais de 1.500km de distância, sejam basicamente iguais? Com certeza serão tão variados quanto os astecas, os !Kung-San e os britânicos vitorianos. Assim como nós somos.
Mas é claro que nem mesmo em si estas culturas são monolíticas. Há toda uma massa de objetivos, interesses e impulsos conflitantes dentro de cada uma. Conflito geralmente não é o resultado de um Lorde Maligno das Trevas que traz ameaça de fora. Geralmente há mais que suficientes tensões internas em aquecimento para deixar as coisas interessantes. Até o mais simpático “Bom Rei” precisa tirar seu palácio de algum lugar, e é mais que provável que seja de onde seus equivalentes monárquicos da vida real tiraram os seus: pilhagens, metal afiado e os salários não-pagos dos camponeses. Lembre-se disto e provavelmente seu mundo será bem mais convincente.
É paradoxal tentar descrever um mundo que seja simultaneamente convincente e totalmente fantástico. Mas uma idéia une ambos impulsos: o reconhecimento de que as coisas não são certinhas e arrumadinhas ou monolíticas, mas complexas e contraditórias, possíveis, constantemente surpreendentes e muitíssimo mais interessantes em virtude disto. Isto poderia descrever a melhor e mais estranha fantasia, bem como o mais duro retrato da realidade. É por isto que Kafka é um realista, e é por isto que os dois jeitos são possíveis.

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5 Resultados

  1. Fagner Lima disse:

    Yah!
    Ótimo texto! Muito inspirador.
    Meu cerebro está coçando, acho que vou começar a escrever alguma coisa…

  2. Adão Pinheiro disse:

    Ta aí uma parte dos cenários “padrão” de D&D que sempre me encomodou, o preto e branco, o bem e o mal escancarados. Histórias adultas e bem feitas ficam longe desse xadrez, e cenários interessantes o fazem do mesmo modo.
    Você realmente tem razão, Shido: muitos cenários de fantasia se tornaram tão clichês que parecem que foram feitos numa “moldura”, numa receita de bolo pronta pra assar. Como quase tudo hoje em dia.

  3. cochise disse:

    concordo em gênero número e grau com esse cara

  4. WGdS disse:

    O livro “Perdido Street Station” é de 2001 pelo que eu vi… se não foi traduzido até agora, posso perder minhas esperanças, não é? =(

  5. rsemente disse:

    Muito boa a dica, vale muito bem para mundos da literatura, e uma boa forma de manter um mundo de RPG pé no chão.

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