Um conto de vampiros por T.C.Oaks
O Purgatory é um bar gótico. Outrora fora um casarão antigo e abandonado ,até que alguns rapazes invadiram para ensaiar com sua banda. Aos poucos as pessoas se reuniam para ver o grupo tocar. Não se sabe em que momento, conseguiram contato com os proprietários do imóvel, mas, depois de alguma conversa e investimento, o casarão foi pintado de preto e roxo e se tornara um dos melhores clubes de São Paulo.
Hoje o local é um ponto de encontro para os fãs do sobrenatural e do macabro, então é comum ver jovens com seus sobretudos pretos. Meninas que se acham mulheres, com seus lápis escuros e meias calças desfiadas. Os garotos com seus longos cabelos hidratados e perfumados.
Sentadas no bar, estavam duas mulheres. Uma na casa dos trinta anos, estava vestida com um terninho claro, sapato de salto alto e algumas jóias. Estava um pouco acima do peso, mas escondia bem esse excesso com uma roupa bem ajustada. Tomava uma cerveja e comia batatas fritas. Ao seu lado, havia outra jovem, essa de longos cabelos escuros com algumas mechas tingidos de azul claro, vestia-se num justo porem discreto vestido de renda preta. Tomava um drink de cor verde limão, e aparentava combinar mais com a casa com seu ar Glam Rock
-Mas e aí Sky, como você descobriu esse lugar? – A mulher de terno perguntou à amiga, enquanto olhava ao redor, Sky deu de ombros.
-Bom Lúcia, eu trabalho aqui perto e o bar fica no meu caminho de casa. Um dia eu estava passando e ouvi uma musica legal, decidi entrar. Venho de vez em quando desde então. O hambúrguer deles é divino!
Lúcia, a garota de terno pegou o cardápio, observou-o com ceta luxuria, depois o deixou de lado.
-Preciso maneirar! Minha bunda tá mais mole que uma geleia! Trinta anos é uma droga, começa a cair tudo. Flacidez dos infernos! – As duas riram, Sky parou de rir de repente e ficou ereta, olhou ao redor, teve um calafrio.
-Que que foi amiga?- Lúcia perguntou ao ver o medo nos olhos da amiga.
Sky continuou observando o ambiente a procura de algo, depois voltou-se ao balcão.
-Não seis Lúcia, tive uma horrível sensação.
-Como assim, o que você está falando? Teve algum pressentimento? Algo de vidente? – Falou referindo-se a profissão de Sky, que meneou em negativa.
-Nada. – Falou evasiva olhando novamente ao redor, encolheu-se.
-Você está passando mal amiga? Parece até que está entrando nos seus transes. Como quando você lê meu futuro, mas de uma forma mais assustadora eu diria…
-Não amiga, não é um transe, mas uma sensação… só senti isso uma vez na minha vida e embora tenha tentado, nunca me esqueci.
-Quando você sentiu isso? – Lúcia perguntou preocupada, colocou a mão sobre a da amiga, estava fria como gelo.
-Lembra da viagem para a Romênia? Aquela que fiz aos 18?
-Sim eu me lembro, algo aconteceu lá, mas você nunca contou! – Falou amuada.
-Eu nunca contei isso para ninguém. Até hoje aquela viagem me dá pesadelos. – Falou distante. Lúcia olhou para a amiga.
-Poxa Sky você sabe que pode desabafar comigo.
Sky permaneceu uns momentos em silencio, pediu então uma dose de tequila. Quando a bebida chegou, virou o trago inteiro. Engasgou.
-Está bem, vou lhe contar, mas se você der uma risada, não falo mais com você!
A amiga assentiu, Sky respirou fundo e começou a contar a história.
-Isso tudo aconteceu faz uns dez anos, quando fiz aquele mochilão pra Europa. Você queria ir comigo, mas no fim não pode lembra? Acabei indo sozinha. Desci na Irlanda e fui de trem cruzando a Europa. A viagem foi mágica conheci locais místicos incríveis, como o Stonehenge.
-A viagem seria perfeita se não fosse a Europa Ocidental, para ser mais precisa: a hora que decidi visitar o local de onde meus pais vieram: Sighsoara, que fica na Romênia.
-O lugar é lindo! Uma vila medieval, maravilhosa, fundada por saxões. Vaguei pelas diversas florestas e ruínas da região e acampei em locais saídos de livros de fantasia! Naquela região, as cidades ainda não são dominantes, e podemos sentir as forças da natureza vibrando nos montes maravilhosos!
-Depois disso segui ao norte, sentido o pequeno vilarejo que meus pais nasceram. Chama-se Terendelupi, e nem está no mapa. É lindo! Parecia que eu havia voltado no tempo. As casas eram de pedra com telhado de palha, tinha até uma estalagem você acredita? Havia escurecido não mais que duas horas, e quando entrei no local todos pararam de falar para me encarar.
-Era esquisito! As pessoas se vestiam de uma maneira que parecia o começo do século passado, homens usam camisa com cores fortes primárias e calças e botas, as mulheres usavam vestidos longos e muitas usavam xale. A maioria das idosas vestia preto em sinal de luto eterno pelos maridos. Foi difícil me comunicar, eu perguntava sobre a casa dos meus pais, mas meu romeno era horroroso, então era muito difícil que alguém me entendesse, ninguém falava inglês.
-Eu pedi uma bebida e comida, e aos poucos as pessoas voltaram a conversar. Quando já estava bem alimentada, perguntei ao estalajadeiro como eu fazia para ir até o Moroiburgh, o local exato de onde minha família vinha. Havia sido uma pequena comunidade medieval, há séculos abandonada, mas meus pais diziam que as ruínas do castelo ainda estavam lá, e eu morria de curiosidade para saber de onde vinham.
-Mas quando eu falei o nome daquele local, o homem ergueu a mão esquerda com os dedos indicadores e mindinhos erguidos, como se fosse um metaleiro e pronunciou umas palavras que não entendi. Fez um novo silencio dessa vez, bem mais mórbido, o homem me agarrou pelo braço e me jogou para fora da estalagem. As pessoas pareciam aterrorizadas pela simples menção da palavra.
-Eu ralei o joelho quando cai na sarjeta, xinguei o bastardo e me levantei. Nessa hora alguém me agarrou.
-Era uma senhora muito velha, parecia ter uns duzentos ou trezentos anos de tantas rugas, o cabelo era branco farto e enrolado como lã, um dos olhos era negro e brilhante, o outro era branco e leitoso, ela possuía uma enorme pinta escura que cresceu como uma verruga na bochecha esquerda, o nariz era adunco e enorme e seus dentes, os poucos que ela tinha eram amarelos e podres. Eu achava que estava diante de uma bruxa, daquelas das historias de ninar. A velha cacarejava, com sua voz rouca, e as duas coisas que eu entendi foram Ceata e Strigoi.
Lúcia quebrou o silêncio. -Ceata? Strigoi? – Sky assentiu, respirou e tomou um gole de sua bebida.
– Sim, ceata era neblina, Strigoi era fantasma. A velha era assustadora, mas ela me indicou uma região, e pude ver a sombra de um antigo castelo, então desconfiei que aquele fosse Moroiburgh por isso fui para lá. Estava cansada daquela vila de gente esquisita.
-O castelo ficava há umas boas quatro horas de escalada, e a trilha que levava a ele quase desaparecera. Cansada decidi acampar na floresta, montei minha barraca e acendi uma fogueira e me preparei para dormir, a noite estava tranquila, e a lua cheia deixava o local bem claro, então aproveitei um tempo fora da tenda observando aquele local de onde meus ancestrais tinham vindo quando ouvi uma voz que disse meu nome.
-Alguém falou “Sky”? -Lúcia perguntou, Sky negou com a cabeça.
-Não, me chamaram pelo meu nome, ouvi claramente alguém falando: Vilma! Em português mesmo.
As duas tiveram um calafrio, a memória foi tão vivida que Sky sentiu como se alguém naquele exato momento sussurrasse seu verdadeiro nome mais uma vez.
-Vilma…
-Jesus Maria José! Sky se você estiver me zoando… – ameaçou Lúcia, nervosa, a amiga olhou-a através dos óculos escuros.
-Nunca mentiria sobre isso. – Falou séria. – -Quer que eu continue?
Lúcia assentiu curiosa, Sky respirou fundo.
-Assustada como eu estava, a única coisa que podia fazer era me meter em minha barraca, e me encolher de medo, depois de um tempo achei que tinha ouvido coisas e fui dormir.
-Acordei no meio da noite com uma coceira, ou uma cocega se preferir, na perna. Quando olhei, havia uma enorme lacraia, com aquele monte de pernas andando em mim. Gritei de nojo e susto e acendi a lanterna e para meu horror, o chão estava coberto de insetos, dos mais variados tipos. Desesperada, pulei para fora da barraca e coloquei as botas, vomitei e gritei.
-Foi então que ouvi as pesadas passadas que se aproximavam.
-Paralisei, a lua fora encoberta por pesadas nuvens, a única coisa que podia ver era uma horrenda silhueta ainda mais escura que as arvores mergulhadas em breu. Percebi que a forma embora quadrúpede era maior que um cavalo. E me encarava em meio aquela escuridão.
Eu só tinha uma certeza: aquele ser que estava ali, fosse o que fosse, queria meu mal.
-Corri desesperada. Quando começava a me afastar ouvi um grito cheio de lamúrias que parecia comprimir meu coração. Então outros gritos iniciaram, agudos e desafinados, e em absoluto terror entendi, que não eram gritos.
-Eram Uivos! Uivos de uma grande alcateia!
-Comecei a chorar, não havia mais nada a fazer exceto chorar e correr, nem olhava para trás porque podia sentir a presença daqueles lobos atrás de mim, e me perguntava se atacariam o urso, ou se minha carcaça seria divida entre eles.
-Em meio aquela tenebrosa escuridão não vi a raíz em minha frente e tropecei. Devo ter caído e rolado por mais de quinze metros, minha pele foi toda ralada e fiz um enorme corte na perna. Olhei para onde os lobos vinham e nessa hora a lua se revelou. O topo da colina estava cheia deles, eram cinzentos e de alguma maneira lindos, rodeavam uma enorme pedra nua que deveria ter uns cinco metros a mais de altura, como um osso exposto em meio a terra.
-Então eu vi.
-A criatura que me encarava na tenda, apareceu. Eera um enorme lobo, negro como a noite. Eu sabia que delirava porque perto dele o resto da alcateia parecia camundongos. Aquele ser era maior que um urso marrom e com certeza pesava toneladas.
-De longe como estava eu podia ouvir suas passadas e seus olhos flamejavam como os de um gato em meio a escuridão, reluziam com um brilho verde e grotesco.
-A criatura – lobo ergueu a cabeçorra, uivou, e eu quase desfaleci tamanho horror, os outros lobos também iniciaram sua melodia cacofônica e macabra e agradeço a todos os deuses por isso, pois aquele grito me aterrorizou tanto que meu corpo decidiu fugir, mesmo que minha mente houvesse sido subjugada. Quando me dei conta eu corria mais uma vez desesperada.
-Olhava para o chão, nem mesmo para frente, tudo o que me importava era manter a maior distancia possível daquelas criaturas nem reparei que havia algo a minha frente até que a mulher gritou.
-Era a velha da estalagem.
-A mulher estava com uma faca logo a minha frente e gritava palavras que não entendia. Finalmente parei de correr, a velha caminhava em minha direção, faca em punho, atrás de mim os lobos famintos e ainda mais distante a criatura lobo.
-Chorei, como nunca chorei antes. Minhas pernas doíam de exaustão, o corte latejava e eu não queria morrer. Olhei para a velha e implorei.
-“Eu não quero morrer”. A velha continuava vindo em minha direção com a faca erguida e falando sempre a mesma frase: Sunt sacrificiul t?u!
-Fechei os olhos, não tinha mais como fugir, ouvi a respiração raspada e sofrida da velha eu chorava copiosamente. Então senti a mão ressequida da velha agarrando meu ombro e me sacudindo, enquanto gritava a seus plenos pulmões: “Sunt sacrificiul t?u!” Eu gritei aterrorizada e tomei um tapa no rosto, um choque violento que me fez abrir os olhos. A anciã fedia a bebida e me encarava com seu olho bom. Repetiu mais uma vez Sunt sacrificiul t?u! E então apontou para a cidade e fez um gesto mandando me ir.
-Eu não entendia, mas quando olhei para trás, os lobos estavam a poucos passos, a grande besta que os comandava, com seus olhos de brasas verdes observava tudo. Eu me afastei, alguns lobos se mexeram excitados com meu medo, mas mais uma vez a velha gritou, e dessa vez dirigia-se aos lobos.
-Sunt sacrificiul t?u!
-Ela se virou mais uma vez para mim com sua mão seca apontou novamente a cidade. E eu corri! A ultima coisa que vi, quando olhei para trás, eram os lobos rodeando a mulher.
-Cheguei à cidade onde a estalagem estava cheia, as pessoas me receberam, e me levaram para dentro, não entendi a gentileza, mas quando puseram um cobertor sobre os meus ombros, eu chorei de alivio e desmaiei exausta. Fui acordada logo que o sol raiou, pelo estalajadeiro. O velho tinha os olhos vermelhos de choro, ele me puxou e levou-me para fora, todos se reunião em torno de algo, mas se afastaram para que eu visse.
-Era a velha, ou melhor, que sobrara dela. Somente a cabeça não havia sido tocada pelos lobos, o resto do corpo estava todo roído os braços e pernas não haviam mais, somente o tórax e a bacia podiam ser vistos. Nada havia sido preservado, os órgãos devorados deixaram somente pequenos retalhos de carne que agarravam ainda os ossos roídos.
Os restos da velha foram acomodados num caixão, um enterro foi feito, simples e sem grandes pompas. Fui levada a tudo, não me permitiram ficar distante. Na hora de enterra-la, me mandaram jogar a primeira pá de terra. Na hora, não soube por que faziam isso, só fui entender depois, quando finalmente compreendi o que a velha disse naquela noite.
-Sunt sacrificiul t?u – Eu sou seu sacrifício.
-Fui embora da Romênia no mesmo dia, nunca voltei, também nunca mais me afastei do oculto, existe algo no mundo que a ciência é capaz de explicar.
-E você é? –Lúcia perguntou, estava pálida e parecia enjoada.
-Não. Acho que nunca serei. – Sky respondeu. -E nem acho que devo, vi algo que não deveria ver: uma maldade antiga e profana, e espero jamais encontrar essa respostas…
As duas ficaram em silencio depois disso, Lúcia então conseguiu perguntar.
-Amiga, você não está brincando não é? Isso realmente aconteceu? –Sky assentiu sem nada dizer. A noite transcorreu sem maiores conversas.
Lúcia voltou para sua casa de taxi enquanto a amiga desceu a Augusta até chegar o edifício Copam onde morava, andou com pressa olhando para os lados, apreensiva, mas nada aconteceu.
Quando cruzou a soleira do prédio achou estranho não ver o porteiro, apertou o botão do elevador, e respirou com alegria quando as portas metálicas se abriram.
Somente para gritar aterrorizada logo em seguida.
O Porteiro estava dentro do elevador, as entranhas abertas e preenchidas por toda sorte de insetos rastejantes. Sky correu para a rua desesperada e continuou correndo, em busca de alguém. Qualquer um que pudesse ajuda-la, mas não viu ninguém.
Porém ouviu as passadas pesadas que se aproximavam. Viu saindo das sombras de um beco os olhos reluzentes verdes, e esverdeados e seu dono: o gigantesco lupino.
-O que você quer? – Sky gritou – O Sacrifício foi pago! Jertfa a fost pl?tit?! Gritou em romeno.
O Lobo enorme a encarava sem se aproximar, a besta somente a encarava ela recuava com medo tornou a gritar.
– Jertfa a fost pl?tit?!
O lupino não se movia somente a observava com seus olhos de brasa esmeralda. Então a jovem ouviu, em suas costas, uma voz sussurrando em seu ouvido
-Tu e?ti sacrificiul meu!
Era a mesma voz que chamara por ela na Romenia. Sky sentiu seu corpo endurecer o hálito era gelado.
-Tu és meu sacrifício, bela Vilma. – A voz falou, uma voz envelhecida, profunda e cheia de maldade. Ela viu uma enorme sombra, algo gigantesco e disforme, não conseguia olhar para trás, a sua frente, o lupino continuava silenciosametne a vigiando. A voz falou mais uma vez.
-Sempre fostes!
Sky encheu os pulmões para gritar, quando uma aguda dor explodiu em seu pescoço e espalhou-se pelo corpo. O grito morreu em sua garganta…
Arte da capa – T.C.Oaks