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Tormenta: a percepção e a realidade

Percepção e realidade são coisas diferentes, certo, Nolan?


Domingo, enquanto esperava pela conferência da Bethesda na E3, comecei um artigo sobre o comércio no Mar Negro (que vocês já devem ter lido, ou vão ler ainda, não sei). Na pesquisa, percebi um erro no mapa¹ que acompanha a caixa O Mundo de Arton: a rota de Vectora passa pela antiga cidade-fortaleza Khalifor, que caiu para a Aliança Negra em 1400 e foi renomeada Ragnarkhorrangor² e feita capital do império de Thwor Ironfist. Logo, algumas pessoas comentaram que Vectorius poderia muito bem continuar fazendo comércio com a cidade mesmo após ela ser dominada pelos goblinóides. A discussão continuou com o foco sobre se o arquimago faria isto ou não, mas meu interesse numa situação assim não estão nas motivações para ela acontecer. Não, meu interesse é nos resultados, e o resultado de uma ação assim seria avassalador sobre a percepção artoniana da Aliança Negra.
Aqui vale a pena explicar a diferença entre percepção e realidade. Quando nós temos acesso a livros sobre o cenário que descrevem cidades, personagens, históricos, magias, ações, planos, etc, nós temos uma percepção extremamente ampla da realidade que em Arton provavelmente nem mesmo os deuses maiores do Panteão conseguem atingir (ou vocês acham que mesmo eles possuem uma descrição detalhada da história lefeu e como funciona seu sistema de castas, um guia de como destruir uma área de Tormenta e os nomes dos Lordes de cada área?). É muito fácil para nós, jogadores e mestres de Tormenta, olhar o módulo básico e pensar “ei, o regente deste reino deveria fazer isso e isto, e os problemas dele estariam resolvidos!”, mas para o próprio regente, que não possui acesso às informações privilegiadas que nós temos, toma suas decisões com base na sua própria percepção da realidade. É claro para nós que a Liga Independente é uma ameaça à Rainha-Imperatriz Shivara Sharpblade porque sabemos que Erov Kadall é um disfarce de ninguém menos que Hiudah Norag, um nobre que no passado tentou usurpar o trono de Trebuck de Shivara e jurou vingança após falhar. Mas para a própria Shivara, Erov é apenas um nobre de Nova Ghondriann, não há razão para ela desconfiar que o agora líder da Liga Independente é seu antigo inimigo.
O mesmo se aplica à Aliança Negra. Para a maior parte da população artoniana, o nome nem mesmo significa nada, para os que já ouviram falar dela eles são alguma espécie de exército bárbaro goblinóide que se formou em Lamnor, alguns regentes tem uma ideia da ameaça que eles representam, e mesmo imperadores como Aurakas e Shivara tem um conhecimento bastante limitado sobre o império de Thwor que pode ser resumido a “eles são uma horda monstruosa de goblinóides que conquistou toda Lamnor a ferro e fogo e agora desejam fazer o mesmo com os reinos do norte, são liderados por um bugbear chamado Thwor Ironfist que foi profetizado como escolhido de Ragnar, o deus da morte goblinóide, e só pode ser morto durante um eclipse solar quando certas condições da profecia se realizarem”, e é isso. Eles não sabem das tensões por poder entre Thwor e Gaardalok, ou qual o nível de lealdade das diversas tribos e raças para com Thwor. Ou se Holgor Greatfang pretende ou não manter sua aliança com Thwor para uma eventual invasão à Remnor. Por isto, uma rota comercial via Vectora seria iluminadora por uma série de motivos.
Em primeiro lugar, ela imediatamente jogaria luz sobre o que a Aliança Negra é para todos os regentes do norte. Neste momento, mesmo os mais bem informados acreditam que eles são uma horda de monstros liderados por um bugbear excepcionalmente forte e inteligente, um escolhido divino, e que a horda se dissipará quando esse general for derrotado. Mas uma rota comercial derrubaria quase que imediatamente esse conceito, pois hordas de monstros não estabelecem rotas comerciais, civilizações sim. E uma civilização não vai se dissipar porque um líder morreu. Essa informação, por si só, faria os regentes do norte sujarem suas roupas de baixo. A mudança de percepção não pararia por aí, é claro. Logo os comerciantes de Vectora começariam a espalhar suas experiências em Ragnarkhorrangor, uma cidade que, por mais cruel que seja, é descrita como tão majestosa quanto a própria Valkaria, maior cidade de Arton, e em pouco tempo mesmo camponeses ficariam sabendo sobre a Aliança Negra. E com uma percepção mais acurada da realidade, novas ações seriam realizadas. Os regentes enviariam mais tropas no Exército do Reinado em Tyrondir, os camponeses se alistariam para ir para o front sul, pensando em proteger suas famílias da ameaça goblinóide de que ouviram falar pelos comerciantes, heróis aventureiros estariam mais bem informados e fariam mais missões bem sucedidas de infiltração em Ragnarkhorrangor, etc.
Ponto principal: a percepção artoniana dos problemas artonianos é diferente da percepção que nós jogadores e mestres de Tormenta temos, porque nós somos muitíssimo bem informados sobre tudo. Então, quando você estiver planejando sua aventura ou as ações do seu personagem, lembre-se sempre de levar em consideração qual é a percepção da realidade do personagem com as informações que estão disponíveis para ele. Tomar as melhores decisões com base nas informações que nós temos pode ser eficiente, mas não faz muito sentido do ponto de vista do personagem, tente fazer algo estúpido de vez em quando em nome da verossimilhança. 😉
¹ Revisão é um negócio engraçado. Eu e uma dúzia de autores e especialistas no cenário ajudamos o Leonel Domingos a tornar o mapa o mais acurado possível. E ninguém notou que a rota de Vectora cruzava com a capital do império goblinóide sedendo por sangue do cenário.
² Me veio a mente como sou um freak pelo cenário quando não só consegui lembrar um nome como Ragnarkhorrangor de cabeça, como também a grafia correta. Mas não sou um master freak ainda, pois não consigo lembrar a grafia correta do Istmo de Hangphastide, Hangfasfide, Hangphystydi… whatever.
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