Já vimos isto no F.A.T.A.L., mas, recentemente, o Pathfinder popularizou este recurso: ilustrar as espécies (“raças”) sapientes do cenário em trajes sumários — cueca e calcinha/sutiã, para sermos mais diretos. Outros títulos, como o Tormenta RPG foram na onda e fizeram o mesmo.
Semi-nudez gratuita seria simplesmente supérfluo — é preferível crer que este não é o objetivo dos projetistas. Mas então qual o objetivo de ilustrar os exemplares das espécies desta maneira? Podemos intuir duas que são óbvias:
1. Anatomia exótica. Elfos, hobbits e sabe-se lá mais o que não existem. São pura ficção. Mas são reais no mundo de jogo — que existe na imaginação do usuário durante a atividade lúdica.
A ilustração é um ótimo meio de se dar forma a tal realidade imaginada — e de assegurar que todos os envolvidos imaginem a mesma coisa, de modo que todos, efetivamente, compartilhem a mesma visão da realidade imaginária, e assim possam interagir sem discordâncias. O que é 100% desejável — quanto mais rapidamente se resolvem discordâncias, mais tempo de sessão sobra para aquilo que é realmente importante, jogar.
2. Sem indução. É preferível liberdade de composição de personagem em oposição a clichês impostos. Uma ilustração que apresenta indumentária e equipamentos tem o efeito de, mesmo que não intencionalmente, influenciar o jogador na direção daquilo que é expresso na imagem.
Nem todo elfo se veste com folhas (ou acessórios que as imitam) — se vive num ambiente urbano, se vestirá de acordo; se o anão está sempre enlatado, cria-se toda uma barreira estereotípica/psicológica que o jogador deve sobrepujar para criar um anão mago (uma opção perfeitamente válida, visto que nem o Pathfinder e nem o Tormenta proíbem tal combinação). Assim, a figura em trajes sumários é neutra, uma tela em branco receptiva a qualquer conceito que o jogador queira aplicar sobre ela.
Tudo numa boa?
Penso que talvez não. Ambos títulos relacionados escorregam em ambos pontos.
Inexiste anatomia exótica. Todas as raças nesses títulos são humanos com diferenças muito sutis. Um elfo é apenas um humano ectomórfico; o anão nada mais é que um de endomorfismo extremado. O meio-gênio de Tormenta é um humano tatuado; o halfling é um com proporções infantilizadas. O minotauro é um homem com cabeça de boi.
(Sequer possui pés de bovídeo — unguligrade, de “joelho para trás”, visto que o “pé”, o casco, é apenas a ponta do dedo do pé; sim, bovinos e suínos caminham “como bailarinas”. O mesmo se dá com felinos e canídeos, que também andam na ponta dos pés. E tal arranjo se mantém mesmo em postura bípede — procure por vídeos com as palavras-chave “faith” e “bipedal dog” para ver isto em ação. A Faith é uma cachorra que nasceu sem as patas dianteiras, e acabou por aprender a andar apenas com as traseiras. Nada na anatomia dos chifrudos, portanto, desvia do padrão hominídeo.)
Espécies “monstruosas” como goblins e orcs seguem o padrão humano, e mesmo quando vestidos, podemos intuir com muita facilidade o que há sob os trajes.
(No básico antigo do Tormenta, em que as nagahs eram semi-nuas mesmo vestidas, elementos de anatomia exótica são ocultados. Falo da zona de transição — como é a área intermediária entre o tronco humano e a cauda de serpente? Não sabemos — há sempre um cinto ou outro acessório a cobrir isto.)
A indução que não é feita pelas imagens acaba sendo feita pelas regras. O meio-gênio pode, teoricamente, possuir qualquer classe — mas se examinamos seus traços raciais, rápido aprendemos que qualquer classe que não seja feiticeiro (e talvez o swashbuckler que se beneficia de um alto escore em Carisma) resultará em um personagem mecanicamente muito ruim.
Assim, não induzir uma escolha pela via imagética pode ser visto como indesejável — faz-se o jogador acreditar que qualquer escolha é válida/equivalente, mas elas não são. Quando algumas opções são eficazes, ao passo que outras são tão sub-ótimas ao ponto de parecerem “armadilhas” dentro do sistema, não temos opções reais.
Sem falar que ambos títulos partem do pressuposto de que raça não é apenas a espécie, o “chassis biológico”, mas sim algo mais abrangente que inclui também cultura. “Todo elfo usa espada e arco”; “todo anão vai à loucura com umas pedras”[1] — não é herança biológica, mas cultural. Nesse caso, a presença de uma indumentária característica na ilustração seria mais eficaz em transmitir tal cultura indissociável, que as regras e textos descritivos nos dizem que existe (mesmo que apenas implicitamente).
Em ambos casos, a indução é desejável — ela comunica fatos da realidade do cenário.
O que eu quero dizer com isso? Gostaria de alertar os aspirantes a criadores de cenário por aí: se você vai usar ilustrações de raças semi-nuas em seu livro ou pdf, pense de maneira prática. Uma dada raça pode realmente ser combinada a qualquer classe/pacote mecânico-conceitual sem penalizar o jogador com um personagem sub-ótimo? Se a resposta é não, então ponha umas roupas na ilustração para aludir às escolhas realmente válidas no sistema. Existe algo de realmente marcante na anatomia ou se trata apenas de um humano cosmeticamente alterado? Se se tratar deste último, também não há necessidade.
E se ambos os pontos anteriores se confirmam, ainda restam as diferentes culturas. Se os elfos no seu cenário de fato possuem diferentes grupos culturais (como em Eberron) com costumes, indumentária, uso de adornos, etc. realmente distintos, a ilustração semi-nua tem uma utilidade — não induzir a esta ou aquela cultura (assumindo que todas geram opções válidas).
Mas se seus elfos e anões são “o de sempre”, não há necessidade — coloque “roupas de elfo” logo de uma vez para comunicar melhor o conceito.
Mas eu quero!
Certo, suas raças possuem corpos essencialmente humanos, são monoculturais e, mecanicamente, funcionam apenas quando associadas a uma ou duas classes específicas (que possuem um código imagético por si) — mas ainda assim você sente a necessidade de ilustrá-las “peladinhas”.
Não só compreendo como — pasmem — simpatizo. Quando pus os olhos no beta do Pathfinder, a forma como as raças foram ilustradas me impressionaram de forma bastante positiva. (Até pensar melhor no assunto e me deparar com as considerações expostas anteriormente, pelo menos.) É o tipo de detalhe que dá ao livro do cenário um ar de “atlas” de um mundo “real”.
Felizmente, mesmo raças de chassis humano e monoculturais podem se beneficiar de maneira concreta do tratamento “(semi) peladinho” em sua arte. “Concreto” como em “realmente pensar no assunto” — em oposição a fazê-lo “porque sim” ou por puro fanservice.
Foco no underwear
O segredo está no design dos trajes íntimos. Assim como podemos saber um bocado sobre alguém ao analisar o conteúdo de seu saco de lixo ou do armário do banheiro (“Diga-me teus tarjas pretas e eu te direi quem és”), as roupas íntimas podem nos dizer um bocado sobre a cultura e hábitos de uma espécie/raça.
As roupas de baixo que vemos nas ilustrações de raças do Tormenta ou do Pathfinder são, na maioria dos casos, nada mais que sungas ou biquínis contemporâneos com uma leve, muito leve skin “medievalesca”. No Tormenta, algumas sequer podem ser classificadas como underwear.
O minotauro artoniano, por exemplo, usa uma “micro-saia de gladiador” quando poderia ter se beneficiado de uma caracterização de underwear genuinamente romana, o subligaculum — que nunca cheguei a estudar especificamente, mas que uns 5 minutos de Google a partir de “roman underwear” me revelaram existir.
Enquanto o anão do Pathfinder (vide imagem no início do artigo) usa uma sunga genérica, o de Tormenta usa algo ergonomicamente questionável com umas placas de metal. Certo, anões gostam de metal, todos sabemos — mas por que não pensar com mais cuidado na underwear de modo que tal elemento da ilustração nos diga algo que ainda não sabemos sobre os anões?
A forma da roupa de baixo pode nos dizer várias coisas. Peças como o subligaculum romano nos falam sobre uma baixa tecnologia de confecção — assim como suas togas, peças envolventes (i.e., enroladas no corpo, em vez de partes costuradas) desperdiçam tecido. Por outro lado, facilita um arranjo mais confortável sobre o corpo. (E a construção da cueca moderna é semelhante à da calça — que na época dos romanos, só existia entre os bárbaros de climas mais frios.)
O tamanho das roupas de baixo também nos fala sobre o pudor presente na cultura. Veja roupas de baixo do século XIX ou do início do século XX — elas cobriam um bocado de pele. E nos falam de uma cultura com uma relação muito austera em relação à nudez. Isto faria sua raça “pelada” muito vestida — mas se não há nada de realmente exótico na anatomia, não há prejuízo algum, pelo contrário, você está dotando esta cultura de personalidade.
Falemos de sustentação. Todo sutiã (ou análogo) tem como única função deixar os seios mais atraentes? Sutiãs assim nos falam sobre uma cultura que se importa um bocado com as aparências. E se a cultura possuir um viés extremamente prático? Em uma cultura guerreira, de que maneira as mulheres podem acondicionar seus seios de maneira que não atrapalhem seus movimentos de combate?
Voltando às roupas de baixo antigas, podemos atentemos a outros acessórios que serviam a funções — geralmente estéticas — da época. Na era vitoriana, não só as mulheres usavam espartilho — homens também se muniam de cintas, de modo a otimizar a silhueta em interação com a casaca.
Dimorfismo sexual
Pessoalmente, ilustraria todas as “raças peladas” em pares. Isto nos indica, por exemplo, quão pronunciadas são as diferenças corporais entre os sexos. E artista nenhum vai morrer por desenhar uma fêmea pouco atraentes para o olhar humano — já notou como os anões nestas ilustrações são sempre homens?
Qual o formato dos seios de uma anã ou meio-orc? Aqueles que já viram seios reais ao vivo sabem bem que seios têm os formatos mais diversos, bem distante da mesmice das bolas de boliche siliconadas das “atrizes” de filmes pornográficos. Um elemento pequeno no grande esquema das coisas, mas que um artista hábil, auxiliado por um texto de encomenda bem detalhado, pode utilizar para atingir um efeito interessante.
O elemento pudor das roupas de baixo associado aos diferentes sexos pode, ainda, nos informar sobre a diferença de tratamento entre os sexos na sociedade. Como livros de RPG não raro levam uma classificação etária 18 em virtude da presença de “glorificação da violência”, eu ilustraria as elfas sem sutiã algum, topless total — parece apropriado à cultura élfica arquetípica. Ou em vez de um sutiã, faça os cabelos cobrirem os seios, ou algum outro artifício assim.
E se a cultura exige que os machos também cubram o tórax, como nossa sociedade exige das fêmeas? O peitoral masculino — salvo casos de abuso de esteróides — não “precisa” de sustentação, mas lembre-se de que pudor é algo que existe apenas na cabeça das pessoas, não é uma realidade física.
Para fechar
Defendo que o concept design não recebe a devida atenção em se tratando de ilustrações de RPG. Me parece implausível exigir isto do artista, que está apenas seguindo instruções — mas o autor, criador do mundo, poderia dar mais atenção a este tipo de detalhe.
Quer que o jogo não seja só combate como se diz sobre alguns títulos? Então porque não pensar, quando se constrói o mundo, nos detalhes que não envolvem estritamente perambular por masmorra e matar monstro? Como é a vida dos indivíduos nesse mundo? Como isto se reflete nos costumes, que por sua vez molda o vestir?
O jogo deixa de funcionar quando carece destas coisas? Não. Mas sua presença expande o arsenal temático a que mestres e jogadores têm acesso ao construir seus personagens, e enriquece a experiência. Dê um diferencial a seu produto/cenário.
Notas
1- Nada a ver com crack. Por outro lado, uma cracolândia anã que leva a litofilia dos barbudos a extremos (al)químicos daria um elemento de cenário muito interessante.