Continuando Airgaid, segue a parte 4 e final do conto, caso você não tenha lido as partes anteriores, segue o link:
- Airgaid, um conto de Tormenta – Parte 1
- Airgaid, um conto de Tormenta – Parte 2
- Airgaid, um conto de Tormenta – Parte 3
Relembrando – PALAVRAS DO AUTOR DE AIRGAID
Bem pessoal, meu nome é Jorge Botelho e esse foi o conto que eu escrevi para o edital de Crônicas da Tormenta Volume 3.
Eu não cheguei a ficar entre os finalistas, mas como fiquei menção honrosa, ele poderia ser postado na Dragão Brasil. Só que cometi um pequeno erro, eu mudava um pouco o cânone, e como uma das regras era não mudar o cânone, então era pra ele ser desclassificado. Por isso ele não pode sair na Dragão Brasil (seria injusto com quem seguiu as regras), mas como eu gostei do material, pedi para uns amigos postarem aqui no RPGista, espero que vocês gostem.
Airgaid – Parte 4
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Ela ficou algumas horas com ele e foi descansar em outro aposento, a despedida não podia ter o gosto mais agridoce do que tinha, mas ele sabia que ela não recuaria. Rhosgar estava disposto a fazer um último sacrifício para salvar a alma de Dandara, mesmo que isso custasse a sua própria.
Na manhã seguinte, os dois se encontraram no pátio, estavam armados e equipados. Trocaram olhares, esperando algum sinal não combinado, e quando o Azgher apareceu no horizonte, Dandara avançou voando em um rasante e com a lança empunhada na direção de seu amado.
Rhosgar a fitava sem hesitação, mas não reagia. Dandara foi avançando para cima do agora seu inimigo. Ele não reagiu, e sem se importar com o comportamento de Rhosgar, Dandara fez o movimento para perfurar o pescoço do paladino com a sua lança. Um filete de sangue escorreu, pois ela parou a lança antes de realmente cortar o pescoço de Rhosgar. Ele continuava sem reação.
Dandara explodiu em fúria, aplicando um chute no estômago de Rhosgar, arremessando-o por alguns metros. Aquela reação causou estranheza e espanto em Rhosgar.
-Por que não me matou, por que hesita? –indagou Rhosgar, cuspindo sangue.
-De todos os defeitos que vi em você e suportei durante esses anos, nunca achei que covardia seria o que eu mais odiaria – Dandara vociferou – preferiu se entregar assim, sem lutar, desistiu de tudo?
A surpresa de Rhosgar era incalculável, nunca viu Dandara daquela forma, mesmo na noite anterior, quando ficaram juntos pela última vez, sabendo que isso ia acontecer, não houve nenhum esboço desse ódio todo, havia algo errado, e ele queria saber o que era.
-Você pensa demais, se você quer um motivo para me impedir, então te darei um. Se você não me impedir agora, eu escolherei uma jovem no mundo, eu a treinarei, ela se tornará uma grande dragoa, poderosa, impetuosa e impiedosa, seu nome marcará Arton, seu nome será temido, até mesmo os deuses saberão seu nome!
Rhosgar estava estupefato com a mudança de comportamento, Dandara nunca tinha agido assim, mas ele sabia, ele sabia que não era uma promessa vaga, ela realmente faria isso acontecer.
-Você ainda hesita, é um fraco, um covarde. Ao menos Juliana teve mais coragem na sua morte – Dandara desdenhou com crueldade e avançou. Dessa vez ela não iria parar o ataque.
Mais uma vez ela alçou vôo, empunhando a lança, ela foi para matar, o combate ia acabar se ele não reagisse. Rhosgar encarou Dandara com os olhos cheios de lágrimas, desta vez com lágrimas de tristeza e decepção e quando ela chegou perto, repetindo o golpe anterior, ele levantou o seu escudo fazendo com que o som de metal ecoasse pelo pátio. Ela girou cento e oitenta graus imediatamente, sem parar, para golpeá-lo pelo lado, Rhosgar defendeu com a sua espada e quando viu a boca dela começar a se esfriar, ele levantou o escudo novamente para defender-se da baforada que estava vindo.
O combate havia começado, sem hesitação, sem voltas. A partir de agora, apenas um sairia vivo dali.
***
– Sim Kallyadranoch, eu me lembrei de tudo, inclusive da sua traição.
-Traição? Achei que a sua vinda aqui não era por causa da Revolta dos Três. – Havia zombaria na voz de Kally.
-Se você quer se fazer de idiota, eu não posso te impedir, mas você sabe de qual traição eu estou falando –Khalmyr não estava sendo irônico, o que irritou mais ainda Kallyadranoch, e antes que o Deus Dragão retrucasse, Khalmyr continuou – Quando os bardos contam sobre as batalhas da Revolta dos Três, sempre dizem sobre valorosos paladinos de Valkaria montando majestosos e poderosos dragões, voando pelos céus, lutando ao lado dos filhos de Tillian em suas invenções tecnológicas.
Kallyadranoch ficou mudo, de alguma forma aquilo o fez lembrar. Khalmyr estava de costas, olhando para o horizonte, e embora ele soubesse, afinal ele estava lá, queria ouvir o relato pela voz da justiça.
-Admito que por mais que a cena fosse bonita, ela foi doída, amargurada e azeda para mim. E todo esse sentimento afetou o seu julgamento, pois os levei comigo. Essa cena doeu tanto que intimamente eu desejei esquecê-la.
Kallyadranoch não reagia, não esperava encontrar Khalmyr tão vulnerável, tão fraco.
Khalmyr não disse mais nada, ficou em silêncio por um longo tempo, esperando o vento levar as suas palavras até os outros deuses, virou e fitou Kallyadranoch.
-Quando muitos imaginam essa cena, sempre pensam em paladinos montados em dragões vermelhos, verdes, azuis, brancos ou até nos negros, o que seria incoerente, afinal, seus filhos são malignos em sua essência, e paladinos não poderiam se aliar a seres com tal espírito. Contudo, todos eles imaginaram errado. Os paladinos de Valkaria não estavam montados em dragões cromáticos, nos seus filhos, mas em dragões metálicos, seres poderosos como dragões são, mas com um forte senso de justiça. Os seus filhos, os meus filhos, os nossos filhos, Kallyadranoch, eram os companheiros dos paladinos de Valkaria.
– Eu fui parcial porque estava pessoalmente envolvido, porque você me fez enfrentar e matar meus próprios filhos, os dragões metálicos, um presente seu para mim de uma época longínqua. Aquilo me machucou de uma forma que eu não soube lidar, eu admito, e por isso eu preferi inconscientemente esquecer. Ao te condenar ao esquecimento, indiretamente condenei os dragões metálicos a se tornarem lendas, mitos contados em fábulas pelos bardos em Arton, vistos por poucos.
***
Os dois estavam cansados, lutaram por horas, sem ninguém ceder. De alguma forma aquilo surpreendeu os dois, estavam quase sem forças e sem recursos, um típico embate no qual qualquer detalhe poderia decidir.
Sobrou fazer a única coisa que podiam fazer: uma pequena prece aos deuses para intervir a seu favor.
***
– Eu te disse que sempre haveria seis, não disse? –perguntou Kallyadranoch.
– Sim, disse – Khalmyr concordou – e realmente, sempre houve seis deles, nem sempre da mesma espécie, do mesmo tipo, mas sempre houve no mínimo seis deles.
-Só disse isso para te dizer o motivo do meu erro no seu julgamento, você sim merecia ter o seu corpo separado da sua alma e vê-lo aprisionado em Arton, como aconteceu com Valkaria, mas o esquecimento foi erro de parcialidade que não podia acontecer – continuou Khalmyr.
– E o que você quer afinal, eu já voltei, e o seu julgamento foi desfeito – Kallyadranoch não esperava o que estava por vir.
– Sim, o esquecimento foi, mas você ainda está separado do seu corpo – sacando a sua arma, a Rhumnam, Khalmyr apontou para o corpo mutilado de elfa de Kallyadranoch – Kallyadranoch, no passado você foi condenado a duas sentenças pelo mesmo crime, uma injustiça, assim, eu reparo essa injustiça devolvendo a você o seu corpo.
Um silêncio se fez novamente, nem mesmo o vento fazia barulho, o corpo de elfa caiu no chão e imediatamente virou cinzas. Khalmyr levanta os olhos e fitou a Montanha do Dragão Adormecido, esperando e ignorando tudo à sua volta.
De repente um urro violento surgiu, sentido por toda Arton. Naquela noite todos os mortais dormiriam e teriam pesadelos com dragões, pois o Deus Dragão havia voltado. A montanha desmoronou matando dezenas de monstros e habitantes.
-Valkaria não fez a estátua sair andando, achei que você poderia fazer o mesmo. – o tom era de reprovação pelas mortes desnecessárias, haveria justiça para elas.
-Dragões não fazem o que os outros querem, eles fazem o que lhes convém. Diga Khalmyr, porque você desafiou Tauron e veio aqui reverter o seu julgamento, você não é mais o líder do Panteão, não tem essa autoridade. – a voz do dragão enorme era ouvida por vários quilômetros, pois era o Deus Dragão, em seu próprio corpo, falando.
-Sim, eu não tinha essa autoridade, mas tive a autorização, pois estava seguindo os dogmas de Tauron.
Kallyadranoch não respondeu, apesar de toda a sua inteligência, a sua arrogância não permitia chegar à mesma conclusão de Khalmyr.
-Os fortes devem proteger os fracos, simples assim. Quer você queira, quer não, você estava fraco, não conseguia recuperar o seu corpo, então usei disso para reverter a injustiça. Você pode não gostar, mas era a verdade.
Por um momento, Kallyadranoch não acreditou, mas percebeu que esse era o único motivo que Tauron permitira que Khalmyr agisse assim. Ele, o Deus dos Dragões, o Deus do Poder, era considerado fraco pela justiça e pela força. A humilhação perante todo o panteão.
-VOCÊ VAI SE ARREPENDER KHALMYR POR ESSA HUMILHAÇÃO!!!!!
Com os olhos derramando ódio, o Deus Dragão soprou na direção do avatar do Deus da Justiça, que já esperava por isso. A Rhumnam já não estava mais em suas mãos, estava longe, em segurança.
-VOCÊ SE SENTIU TRAÍDO, QUERIA SE ESQUECER DOS METÁLICOS? POIS ENTÃO ATENDEREI O SEU PEDIDO! – Kallyadranoch urrava de ódio, soprando fogo, ácido, veneno, gelo, raios e vapores de água, tudo na direção de uma figura.
-Eles jamais serão esquecidos – o corpo do avatar já estava começando a se desfazer perante a força do Deus Dragão.
-Eu mandarei meus servos caçar cada um deles, não importa onde estejam, e farei com que cacem os seus paladinos Khalmyr, ordenarei que meus servos e filhos cacem os seus paladinos!
-Então eu digo que sempre haverá seis, seis de seus filhos e servos que falharão, se apaixonarão pelos meus paladinos e juntos terão ….
O corpo do avatar de Khalmyr foi consumido antes de terminar a frase, embora o próprio Khalmyr o tenha dito em Ordine, seu reino, enquanto via Kallyadranoch, na sua forma de dragão, partir para o seu próprio reino.
***
-Você evoluiu muito Rhosgar, está pronto – Dandara sorria, enquanto cuspia sangue, se levantou usando a lança como apoio, não havia nenhum sinal de ódio como no começo, apenas convicção – vamos, agora é hora.
Rhosgar já havia desistido de entender, mas ver Dandara rir o fez pensar na noite que ela partiu, quando escutou um urro longo de um dragão e teve pesadelos com dragões, vários meses atrás.
Ele segurou o escudo, se armou com a espada.
Dandara não ia voar, Rhosgar tinha quebrado as suas asas e levaria tempo para se curar, ele lutou com inteligência, sabia quem era o seu adversário, ele estava pronto.
Eles foram avançando, devagar no começo e acelerando cada vez mais, até que estavam correndo, os dois chorando, não tinha mais volta. Ela estocou com a lança novamente, ele ergueu escudo, e antecipando o giro de cento e oitenta graus, fincou a espada no estômago, só pra ver que ela tinha largado a lança.
-Por quê? Porque você se entregou, repetiu o mesmo ataque? – Rhosgar tentava canalizar cura, mas estava exausto, não conseguiria. – Depois daquele discurso todo, você se entrega assim, não pode ser.
Com as suas mãos no rosto de marido, Dandara sorria com alívio.
– Porque eu tinha prometido pra Juliana que eu a salvaria no reino de Kallyadranoch. – Aos poucos ela ia mudando, as suas escamas brancas começaram a ganhar um brilho. – Naquela noite eu sonhei e tinha uma missão, eu tinha que te matar em nome de Kallyadranoch. Só que eu não poderia, eu te amava demais pra fazer isso, e ainda te amo. Eu ia partir…. –Dandara cuspia sangue, sua força se esvaindo – mas ela me impediu, viu algo em mim que eu não pude entender na hora. Ela me obrigou a sacrificá-la, assim eu teria tempo para tudo. Eu prometi que eu mesmo iria buscá-la em Drashantyr.
Rhosgar apenas chorava, em seu íntimo, amaldiçoando Kally, por não permitir que os dois vivessem juntos.
-Ela viu que estava grávida Rhosgar, ela viu duas auras de vida em mim. Quando eu realizei o ritual, fui abençoada e me transformei, mas isso também afetou a criança, ela tinha a benção de Kallyadranoch, mas também era filha de um paladino de Khalmyr…
Dandara fechou os olhos, a sua alma havia partido para os reinos dos deuses.
***
Demorou muito para Rhosgar superar o luto e aquele dia, que era o mais trágico e também o mais feliz. Naquele dia ele teve que enterrar a sua esposa, mas ao mesmo tempo ele descobriu que era pai, e foi com um grande choque que viu uma criança com olhos de dragão e cabelos brancos nos aposentos que Dandara dormira.
Ao ver a criança de perto, viu que os cabelos não eram brancos, mas era prata. A magia de Kally abençoou a sua filha com o poder dos dragões de tal forma que ela nasceu parte dragão, parte humana, porém um dragão prateado, abençoada por Khalmyr, o Deus da Justiça.
Ele a treinaria, faria dela uma grande dragoa, poderosa, impetuosa, piedosa e justa para um dia partirem e buscar Dandara e Juliana em Drashantyr.
Seu nome marcará Arton, será temido pelos malignos e clamado pelos necessitados, até mesmo os deuses saberão dela, Airgaid.
Fim