Continuando Airgaid, segue a parte 3 do conto, caso você não tenha lido as partes anteriores, segue o link:
Relembrando – PALAVRAS DO AUTOR DE AIRGAID
Bem pessoal, meu nome é Jorge Botelho e esse foi o conto que eu escrevi para o edital de Crônicas da Tormenta Volume 3.
Eu não cheguei a ficar entre os finalistas, mas como fiquei menção honrosa, ele poderia ser postado na Dragão Brasil. Só que cometi um pequeno erro, eu mudava um pouco o cânone, e como uma das regras era não mudar o cânone, então era pra ele ser desclassificado. Por isso ele não pode sair na Dragão Brasil (seria injusto com quem seguiu as regras), mas como eu gostei do material, pedi para uns amigos postarem aqui no RPGista, espero que vocês gostem.
Airgaid – Parte 3
A resposta de Khalmyr, dizendo que o motivo da ida até Arton falar com Kallyadranoch era por justiça poderia ser encarada como um enorme sarcasmo, uma piada de mau gosto se fosse dita por qualquer outro deus, e não o deus da Justiça. Qualquer outro deus era capaz de tamanha afronta, alguns mais, outros menos, mas Khalmyr não faria isso.
Os dragões que circulavam os dois deuses não quiseram saber a reação de seu pai e, por medo, foram embora, aos poucos, os mais novos primeiro, e os mais velhos sendo os últimos.
Depois disso, fez-se silêncio, nenhum dos dois disse nada, ficaram se olhando, e eles sabiam, que a partir daquele momento, os outros deuses também estariam observando, que o quer que fosse dito, não seria em segredo, seria de conhecimento de todos os deuses maiores.
-Justiça? – Kallyadranoch foi o primeiro a falar, sem raiva, sem rancor, apenas uma genuína indagação – A justiça não manda mais em Arton, agora é a lei do mais forte.
-Sempre haverá aqueles que buscam justiça, Kallyadranoch, quer você queira, quer não. – Khalmyr manteve a postura, não mudou nem o olhar, não esperou Kally – e hoje uma injustiça será reparada.
-Você está sendo tolo, Khalmyr. Já paguei pelos meus crimes, e quer saber? Você sabe que você errou, a minha pena foi muito maior que a de Tillian e de Valkaria. Valkaria foi transformada em uma estátua porque era da natureza dela criar seres ambiciosos, mas não era da minha criar seres poderosos??!! – Aos poucos, Kallyadranoch foi aumentando o tom de voz, algo que ninguém havia visto até então – Eu aceitei porque sabia que ninguém ia acreditar que foi Tillian, e não eu, que removeu o senso de ética e moral dos lefeu, afinal é mais fácil culpar o dragão malvado pelo pior dos crimes do que o gnomo louco e infantil, não é?
Khalmyr não se abalou, mas Kallyadranoch percebeu que Khalmyr estava hesitante. Aquela reação era imperceptível para os outros deuses, mas não para ele, Kallyadranoch, que conhecia Khalmyr como ninguém.
– Você sabe, não é? Sabe que a minha pena foi errada, que eu não deveria ter sido separado do meu corpo. – Kallyadranoch começou a se deleitar do conflito que ele via em Khalmyr, não se incomodava de ser o único a perceber isso.
-Sabe Khalmyr, uma vez você me confessou que o mais belo em Valkaria era a sua imperfeição. Gloriénn era o exemplo perfeito de uma elfa, Tenebra o exemplo perfeito da noite e o mesmo para os outros deuses, cada um representa a perfeição do que defende e o define, mas com Valkaria era diferente, e beleza dela vem da imperfeição. – Ele parou, deixou as palavras serem ouvidas e analisadas por Khalmyr – Mas isso não vale para os outros, não é? Eu não posso ser um exemplo imperfeito de um dragão poderoso. Veja que Azgher que não pode permitir que a noite lhe toque, e vice-versa com Tenebra, Marah não pode ter um dia de fúria, pois são essas coisas nos define. Então me diga, o que acontece quando um deus da Justiça faz um julgamento injusto? O culpado pode ser o certo, mas a pena ser equivocada, o que acontece?
Nesse momento os deuses pararam de vez o que estavam fazendo, até mesmo Nimb se surpreendeu (ou não?) e estavam todos esperando pela resposta.
***
Ele avançou, aos poucos, com cuidado, o vento passava pelas janelas quebradas, fazendo um uivo que fariam muitos correrem e fugirem de medo, mas ele tinha um dever, uma obrigação, e por mais que ele não gostasse do que isso ia lhe custar, ele tinha que fazer isso. Era a sua obrigação, sua responsabilidade.
Quando chegou ao saguão principal do castelo, ele viu, não era bem o que ele esperava, mas ainda assim ele reconheceu. Lá estava ela, esperando por ele. A sua pele agora era coberta de escamas brancas, das costas surgia um par de asas reptilianas, suas mãos possuíam garras e a sua boca estava cheia de presas que podiam mastigar até aço. Ele analisou cada pedaço que podia enxergar, ela estava imóvel e quando Dandara abriu os olhos, ele pode ver os olhos negros como uma noite sem lua de sua amada. O coração dele bateu forte, por um momento ele sentiu uma felicidade enorme, sentiu vontade de largar tudo e abraçá-la.
Ele percebeu que ela também se sentia assim, deve ter reparado que ele estava mais robusto, nunca foi franzino, mas agora apresentava músculos que antes não tinha. Ela percebeu também que o escudo estava mais firme em seu braço, além de apresentar um brilho mais forte. Os dois tinham mudado, o resultado da entrega aos seus deuses era visível.
Então veio à mente a amiga Juliana, que havia sido morta por ela. Uma amiga de infância, que crescera junto com ele, que atendeu ao chamado dos deuses. Que realizou a cerimônia de casamento dele com Dandara.
-Por quê? Por que teve que matar a Juliana? – Rhosgar mantinha a mão firme no cabo da espada, tentava ser o mais calmo possível.
-Ela se ofereceu, eu precisava fazer um sacrifício, e ela se ofereceu. – A voz de Dandara não havia mudado, apesar de hesitar um pouco, ela continuou. – Eu precisava fazer um sacrifício para Kallyadranoch, pois eu tinha me casado com um paladino de Khalmyr, um servo do deus que o havia julgado e condenado, itens mágicos e tesouros não seriam suficientes desta vez, ele levou para o lado pessoal…
– E porque você não o abandonou? Você sabe que eu teria abandonado Khalmyr por você!!! – Não havia mentira nas palavras de Rhosgar, e apesar de alguns considerarem aquilo uma blasfêmia, era a verdade, e paladinos devem sempre dizer a verdade.
-Porque eu não podia. Não podia virar as costas para quem mais me ajudou. –Dandara respirou fundo e falou de forma doce, como ele nunca tinha visto antes, contrastando com a imponência draconiana que ela demonstrava – quando os lefeus chegaram ao meu vilarejo, eu rezei por justiça pra ajudar a defendê-la. Pedi para que Wynna me desse o dom da magia, rezei para Keen para me tornar uma guerreira invencível, para Tauron para ser mais forte, rezei pra todos, mas só um me respondeu. Ele me disse que eu precisava ser poderosa para derrotar os lefeus, e me abençoou. Eu pude salvar a vila e em troca prometi que seria serva dele. Sabe quem me salvou, Rhosgar?
O paladino sabia a resposta, conhecia esse momento no qual um mortal era chamado pelos deuses e que são poucos os que não atendem.
-Quando nos casamos, eu tinha esperança de que os deuses nos esquecessem, afinal, somos apenas dois mortais e os deuses, bem, são deuses – Dandara continuava a falar – mas o problema não foi esse Rhosgar, o problema é que fomos nós que não nos esquecemos deles. Nós estávamos infelizes juntos, faltava algo. Você dizia que era um filho, mas eu sabia que não. Nós estávamos incompletos, estávamos negando parte de nós mesmos para vivermos juntos e isso ia nos consumir. Quando os puristas invadiram e tivemos que usar os nossos poderes, foi a noite mais feliz de nossas vidas, não foi?
-Ainda podemos ser felizes juntos – a mão já não segurava tão firme a espada – ainda podemos deixar os deuses e vivermos juntos. A alma de Juliana pode nos perdoar se vivermos em paz. – Rhosgar quase parecia uma criança, tentando argumentar.
-Paladinos não podem mentir, nem mesmo para eles mesmos – Dandara continuava com voz doce, caminhando na direção do marido e pondo a mão no rosto dele, chegando tão perto um do outro, a obrigando a olhar um pouco para baixo – mas nós podemos ser felizes juntos hoje, uma última vez.
– E amanhã? – Rhosgar chorava, porque já sabia da resposta – O que faremos amanhã?
– Amanhã, um paladino de Khalmyr terá que buscar justiça para a sua amiga, ou uma clériga de Kallyadranoch ofertará uma alma pura e caridosa para o Deus Dragão.
-Isso é tão injusto.
-Arton é um mundo injusto.
***
– Justiça se torna falha até que seja reparada, a balança que perde seu equilíbrio é inútil para medir o peso. – Khalmyr então respirou fundo, com certo alívio até, e com um sorriso no rosto que até então ele não tinha esboçado, continuou – até ela seja reparada e é essa a beleza da Justiça. Ela busca perfeição, imparcialidade, a justiça perfeita é imparcial, ela não olha pra quem é julgado, mas nem sempre quem a aplica consegue ser imparcial, e a justiça então fica imperfeita e se torna injustiça, mas sempre pode ser reparada.
– Você está falando igual Valkaria, falando na beleza da imperfeição – havia um tom de deboche de Kallyadranoch ao comparar o juiz à ex-companheira de rebelião que também havia sido julgada pelo deus da justiça.
Khalmyr riu de novo e continuou:
-Muitos acham que eu fui mais severo com você porque acreditavam que eu o culpava por ter liderado a rebelião, outros porque você era vil e corrompia Arton. Por um momento, eu aceitava isso, até você retornar e eu me lembrar do motivo pelo qual fui injusto com você. Você errou ao dizer que eu não devia ter separado a sua alma do seu corpo, na verdade essa era a punição correta. O que eu não devia ter feito era te condenar ao esquecimento. O seu crime não foi pior que os de Tillian e nem os de Valkaria.
-Então por que você me condenou ao esquecimento Khalmyr? – Kallyadranoch estava tão surpreso quanto o resto do Panteão ao ver Khalmyr admitir tudo aquilo, e embora ele soubesse motivo, ele queria que Khalmyr falasse.
-Porque você me traiu Kallyadranoch, e a dor que a sua traição me causou fez com que o meu julgamento fosse parcial, pessoal. E eu precisava esquecer aquilo que você me causou, aquilo que você me fez sofrer.
Houve uma longa pausa, os dois se olharam, andando, se fitando, formando um círculo, até que Khalmyr continuou.
– E isso fez com que eu cometesse outra grande injustiça, quando aprisionei Belugha apenas por amar Sckhar. Muitos acharam que eu os puni duramente porque eu amava Belugha e tinha ciúmes de Sckhar, mas eles estavam errados. O amor dos dois me causava dor, uma sensação estranha. Contudo, não era este o motivo, havia algo errado naquela relação, e só pude perceber quando você voltou e trouxe todas as lembranças de volta.
– Você se lembrou afinal – Kallyadranoch terminou.
***
Fim da parte 3