Encerrando a série de entrevistas com todos os autores de Tormenta 20, o Blog RPGista comemora junto com eles esse marco da história do cenário e do próprio RPG no Brasil. Hoje, aquele que cunhou o termo que hoje batiza nosso blog (e talvez queira nos cobrar por isso um dia), Marcelo Cassaro!
Caso alguém tenha algum problema sério de memória: quem é Marcelo Cassaro?
Vou ali perguntar e já volto.
Nascido em 1970, Marcelo Cassaro começou a carreira profissional em 1985, nos Estúdios Mauricio de Sousa, como animador assistente e auxiliar de design. Foi contratado pela Abril Jovem em 89, como roteirista e desenhista de quadrinhos para as revistas Os Trapalhões, Aventuras dos Trapalhões, Heróis da TV e outras. Foi vencedor do Prêmio Abril de Jornalismo em 91, 92 e 94, na categoria “Roteiro de História em Quadrinhos”.
Assinou como editor e roteirista os seguintes trabalhos: Holy Avenger, com Erica Awano, primeira HQ brasileira com mais de 40 edições nas últimas três décadas; Victory, primeira HQ com roteiro e arte brasileiros publicada nos Estados Unidos, pela Image Comics; Lua dos Dragões, uma das mais premiadas minisséries em quadrinhos brasileiras; e a série DBride: A Noiva do Dragão, também com Awano.
Em 95 começou a Dragão Brasil, primeira revista mensal especializada em jogos de RPG, e única a completar mais de 100 edições. Foi autor de RPGs baseados em videogames licenciados como Street Fighter, Final Fight, Darkstalkers e Megaman. É também um dos autores de Tormenta, o mais bem-sucedido RPG no Brasil; e 3D&T, jogo de RPG baseado em mangá e anime. Também inventou a palavra RPGista. De nada.
Em 2007, juntamente com Erica Awano, foi certificado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão como finalista do Primeiro Concurso Internacional de Mangá, por Holy Avenger.
Em 2018 recebeu o Prêmio Ângelo Agostini como “Mestre do Quadrinho Nacional”.
Atualmente é colunista na nova Dragão Brasil e roteirista do mangás nacionais Turma da Mônica Jovem e Chico Bento Moço.
Você é conhecido por nós pela contribuição para o RPG, mas sua carreira começou muito antes, com os quadrinhos. Como foi esse início?
Desde criança, eu sempre soube que queria ser quadrinhista. Após um curto período trabalhando com animação na MSP, consegui começar na Abril Jovem, primeiro como desenhista, depois também como roteirista. Acabei ficando conhecido por sátiras de filmes e séries em Aventuras dos Trapalhões, e também por Jaspion, Changeman e outros heróis tokusatsu em Heróis da TV.
Na metade da década de 90, o mercado ficou ruim para profissionais dos quadrinhos. Passei a trabalhar em revistas de games, que eram febre na época, mas sem me afastar das HQs — foi quando inventei o Capitão Ninja. Mais tarde conheci os jogos de RPG e apresentei a uma editora o projeto de revista mensal sobre o tema. E quando a Dragão Brasil decolou, não apenas trazia quadrinhos em todas as edições, mas também viabilizou várias minisséries, e a própria Holy Avenger. Eu amo RPG, mas amo HQ ainda mais.
A primeira Dragão Brasil está completando 25 anos em 2019. Como você vê as mudanças do mercado de RPG e do próprio público durante esse tempo?
Quando a DB estava nas bancas, o desafio era apresentar ao Brasil um hobby extraordinário, mas também intimidador. O jogo era ainda desconhecido, estranho, obscuro — só os mais nerds dos nerds jogavam. Em um país onde se lê pouco, onde estudar é quase considerado “castigo”, como convencer alguém a experimentar um jogo em que você precisa ler um manual de 300 páginas? Investimos em adaptações de outras mídias, para atrair seus fãs (não faltam relatos de jogadores que descobriram o RPG quando compraram uma revista que tinha Pokémon na capa). Também investimos em RPGs introdutórios, simples e baratos; jogos completos em revistinhas de 30 páginas, para quem ainda não queria encarar um livrão de D&D, Gurps ou Vampiro.
Hoje em dia não existe mais mistério, explicar o jogo não é tão necessário. RPG está na mídia, na cultura pop. Joga-se em Stranger Things, Voltron, She-Ra. Canais de stream transmitem sessões ao vivo. O desafio agora é outro: todo mundo tem cada vez menos tempo livre, e cada vez mais opções de lazer para ocupá-lo. Com um universo de games, filmes e séries ao alcance de uma conexão wi-fi, RPG ainda é um hobby arcaico. Exige muita preparação, planejamento, agendamento. Os atuais recursos para jogar online, não presencialmente, estão ajudando um pouco. Cabe aos autores atuais achar novas maneiras de manter o jogo relevante e interessante.
Holy Avenger foi um marco para os quadrinhos nacionais, entre outros fatores, devido à periodicidade. O quase fim das bancas de revistas impactou muito nesse formato de publicação?
Verdade. Naquela época, muitas revistas (em quadrinhos e também sobre RPG) tinham duas ou três edições, e então eram canceladas. Ninguém confiava que uma nova HQ se manteria firme, ninguém queria ler uma história que não acabaria. A própria Holy teve vendas bem modestas em suas primeiras edições. Mas a editora foi persistente, manteve a revista em bancas. Manter essa periodicidade foi vital para conquistar a confiança dos leitores. Em mais alguns meses, Holy não apenas vendia bem, mas havia grande procura pelos números anteriores.
O formato tradicional de revistas impressas vem perdendo espaço. Bancas de revistas estão sumindo. Praticamente só a MSP consegue se manter nesse mercado. Uma série mensal impressa como a Holy não seria mais possível. Mas claro que, hoje, quadrinhistas têm muito mais opções para levar seu trabalho ao público, sem depender de editoras ou bancas. Financiamento coletivo, impressão sob demanda, publicação online, eventos como a CCXP.
Algum tempo atrás houve rumores sobre Holy Avenger – Paladina. Será um capítulo especial como vimos na época da série original, ou uma obra maior?
Cedo para dizer. Espero ter notícias logo.
Os serviços de streaming estão sempre buscando novas séries inéditas. Será que está chegando a hora da animação de Holy Avenger ver a luz?
Talvez. Cada vez mais séries têm sido produzidas no Brasil. Mas animação 2D tradicional ainda é algo muito caro, e ainda não alcançamos uma qualidade mínima exigida para a Holy. Ainda, mudanças recentes na Lei de Incentivo à Cultura tornaram ainda mais difícil viabilizar esse tipo de projeto. O sonho terá que esperar mais.
Você é autor do ótimo Espada da Galáxia. Há planos para um novo romance escrito por você?
Obrigado. Sim, tenho planos para um novo romance, desta vez sediado em Tormenta. Já foi começado. Nada mais a dizer.
Moreania surgiu nas páginas da Dragon Slayer, e ganhou um suplemento próprio recentemente. O cenário continuará a ser desenvolvido nas páginas da Dragão?
Sim, a DB deve trazer material adicional para Moreania.
TRPG irá receber uma nova versão mais moderna. Alguma chance de 3D&T seguir o mesmo caminho?
3D&T sempre teve a missão de trazer novos praticantes ao hobby, ser uma fácil porta de acesso. Seu livro básico digital gratuito ainda cumpre a tarefa — mas eu gostaria que houvesse um movo ainda mais fácil de jogar 3D&T. Estou trabalhando em uma ideia, vamos ver se funciona.
Tormenta 20: Trevisan disse certa vez que você foi o primeiro a apostar no sucesso do retorno da DB em formato digital. Qual é sua expectativa para o financiamento coletivo do novo sistema?
A Jambô tem uma visão diferente quanto a financiamentos coletivos. Mais que apenas um jeito de reunir verba para realizar projetos, é uma forma de reunir pessoas, reunir e fortalecer uma comunidade. E nesse ponto nosso público nunca desapontou, nunca deixou de participar. Todas as vezes que recorremos a financiamentos, a meta foi alcançada e ultrapassada de longe.
Acredito que a campanha para Tormenta 20 será o maior financiamento coletivo para RPG realizado no Brasil.
Nota do RPGista: Obviamente, essa entrevista foi realizada antes de termos a confirmação profética do Cassaro. No momento em que publico esta, a campanha já ultrapassou 400k. =D
Tormenta cresceu, com um alcance muito maior do que apenas o RPG. Por isso, alguns dos ganchos importantes foram decididos em romances e quadrinhos. Isso não vai contra a premissa de que Arton é definida pelos heróis em mesa?
Não. Quadrinhos e romances são apenas os “guias de viagem” para Tormenta, são o caminho para descobrir e aventurar-se nesse mundo. São histórias que poderiam ser a sua. Cada grupo, cada mestre, tem a opção de moldar sua própria Arton — aceitar o que quiser e recusar o que quiser, até mesmo mudar o que está nos livros. Ainda, grandes eventos como A Libertação de Valkaria e Contra Arsenal foram resolvidos, sim, nas mesas de jogo.
Teremos algum material quick start de T20 para os jogadores experimentarem o sistema já durante a campanha?
Sim. Ao longo do ano, a Dragão Brasil vai introduzir partes do novo jogo, assim como ocorreu em Império de Jade. Além disso, os apoiadores da campanha também devem ter acesso a materiais de playtest exclusivos.
Em T20, podemos esperar mudanças tão significativas no cenário? Arsenal enfim vai chutar a bunda de Keenn e assumir o posto de Deus da Guerra?
Tormenta20 com certeza será atualizado conforme os eventos ocorridos em quadrinhos e romances até o lançamento do livro básico. Sim, o Panteão será diferente. Quais deuses caem, quais ascendem? Você não vai saber de mim. Hoje não.
Fechando a entrevista, hora do recado final para os fãs!
O público de Tormenta tem sido responsável por esta que é a maior conquista do RPG no Brasil: um mesmo jogo mantido vivo por vinte anos, sem cancelamentos, sem hiatos! Mesmo quando migrou de editora, não passaram três meses sem novos títulos. Nenhum outro jogo, nenhum outro mundo de fantasia — nacional ou importado — igualou a façanha!
A vocês, que se aventuram em Arton, nossa mais profunda gratidão. E por vocês, Tormenta seguirá mais vinte anos e além.
Nós é que agradecemos o carinho e a atenção de todos vocês. Que venham outros 20!