Notra já foi, como Arton, um mundo tomado – para alguns, assolado – pela presença divina. Mas isso mudou com a chegada da Serenidade, a força azulada que bloqueou os céus e impediu que as almas deixassem este mundo em direção aos deuses. Mas o que é a Serenidade, exatamente? Saiba mais no artigo a seguir.
A Serenidade
Sentimentos, paixões, emoções – tudo que move os seres; tudo que define o que são, e o que almejam ser. Para a Serenidade, tudo deve ser eliminado. Todo sentimento, seja bom ou ruim, seja positivo ou negativo, gera o seu oposto: a felicidade de hoje gera o sofrimento de amanhã, e a vida de um significa a morte de outro. A existência é uma grande roda, em que para um estar por cima o outro deve estar por baixo, até que os papéis se invertam no momento seguinte. Mesmo os deuses, em toda a sua potência divina, são presos a ela, incapazes de fugir do ciclo eterno de felicidade e sofrimento.
Para a Serenidade, no entanto, a roda é ilusão, o sonho do qual é preciso despertar para atingir a transcendência. Apenas ao nos libertar de todos os sentimentos, paixões e emoções compreendemos a real natureza da existência, e somos capazes de escapar; e, ao fazê-lo, nos tornamos livres de verdade. A última prisão, afinal, é aquela que nos prende a nós mesmos.
Em áreas tomadas pela Serenidade, o ambiente é tomado por uma aura azulada, expressando uma tranquilidade absoluta. Não há dia ou noite, nem perturbações de qualquer tipo: nem mesmo a mais leve brisa é sentida; acenda uma vela, e ela ficará imóvel pela eternidade, perfeitamente ereta em relação à superfície.
Enquanto o domínio do fenômeno ainda não é absoluto, construções ainda existem – mas sempre feitos de materiais cristalinos e luminosos, que emanam eles também uma tranquilidade e paz extremados. A existência tradicional ainda é possível, mas há um esforço dos habitantes locais – os leglace, também chamados de Anjos da Serenidade – em ajudá-los a transcender, por vezes quase compulsoriamente.
Assim como a Tormenta em Arton, a Serenidade tomou Notra aos poucos. Bolsões azulados se espalharam pela realidade, tomando a todos e cortando o contato com os deuses. Enfraquecidos pela falta de adoração, os deuses se recolheram em seus mundos, e hoje buscam formas de retornar. Deuses malignos o fazem por egoísmo, pela necessidade de almas e adoração para se fortalecerem; os benignos, por acharem que os mortais ainda precisam deles. Mas será que os próprios mortais concordam?
Leglace, os Anjos da Serenidade
Os habitantes da Serenidade são conhecidos como leglace. Como os lefeu, é impossível para um mortal apreendê-los em sua totalidade. Sua presença emana uma aura de pureza e calmaria tão absolutas que enlouquecem, de forma semelhante ao que acontece com um demônio da Tormenta. Para lidar com eles, a mente mortal precisa distorcer aquilo que vê e sente, aproximando-o de formas que possa entender.
Os leglace mais comuns, assim, assumem formas humanoides angelicais, com pele azulada, dois a quatro pares de membros, e, às vezes, asas cobertas de penas límpidas e brilhantes. Portam armas como bastões, lanças, espadas e arcos feitos de matéria azul. À medida que subimos na hierarquia de poder e transcendência, eles podem adquirir mais faces em suas cabeças, além de mais pares de membros e asas. Outros, mais raros e iluminados, se parecem com pássaros vistosos, como pombos e pavões, com penas multi-coloridas (mas sempre em tons azulados) que parecem ser formadas de luz pura. Os seres mais transcendentes muitas vezes parecem ser completamente formados de luz azulada, como grandes estrelas que, ao invés de falar, brilham aquilo que querem dizer.
Acima de todos, ou ao menos assim dizem as lendas, existem os Cinco Bodisatvas Infinitos – os senhores absolutos da Serenidade, cuja existência transcende qualquer compreensão mortal. Representam as virtudes máximas do fenômeno, como o desapego das emoções e a compaixão absoluta, e residem na alter-criação, de onde cumprem a sua missão de levar a transcendência da Serenidade para outras realidades.
Lucide, os Iluminados
Mesmo antes que a Serenidade chegasse à Notra, sua presença iminente já afetava a vida dos seus habitantes. Entre os notrianos, por muitos anos antes que o fenômeno se manifestasse, já nasciam em famílias de diversas raças seres que traziam dentro de si a centelha leglace. Ficaram conhecidos como os lucide, os iluminados.
Um lucide é muito parecido com a raça dos pais, embora possam ser um pouco mais altos e magros que a média – compleição que, no lugar de denotar fragilidade, parecem fazê-los aproximar-se mais de um ideal de perfeição. No entanto, possuem também algum traço único que os caracteriza como membros de uma espécie diferente, que pode ser desde um elementao óbvio na sua aparência, como pele azulada ou asas angelicais, até algo tão sutil quanto olhos que emanam uma luz azulada e uma aura de pureza e tranquilidade. Mesmo no segundo caso, e por mais que façam o possível para esconder sua diferença, ainda resta algo de diferente na sua aparência, alguma sensação única que ele desperta mas que nem todos sabem identificar com precisão – apenas sabem que está ali.
Como os lefou em Arton, lucide sempre foram vistos com apreensão em Notra. Mais do que uma diferença física, era comum entre eles uma diferença de índole – nasciam com o próprio sentimento de que eram diferentes, e passavam a vida em busca de uma resposta sobre o que os fazia assim. Tornaram-se os arautos da Serenidade: pregando a iluminação e o desapego, foram os primeiros a transcender, e, pela sua ascenção, a Serenidade encontrou o caminho a este mundo.
Para os que abraçaram a Serenidade, os lucide são vistos como guias e sábios, seres agraciados com o conhecimento da iluminação e cujos ensinamentos devem ser seguidos na busca pela transcendência. Já os que a combatem os veem como meio-demônios, seres amaldiçoados que trouxeram a calamidade para Notra.
A Alter-Criação
A origem da Serenidade está em outro mundo, uma existência alternativa como a de Notra, mas dificilmente acessível por quaisquer meios mágicos ou mundanos. Nesta criação alternativa – ou alter-criação -, surgiram também, por influência de deuses, diversas raças inteligentes, que por eras embrenharam-se em disputas e conflitos de poder sagrado, místico e mundano. Em algum momento, no entanto, as coisas mudaram.
Talvez tenha sido um embate divino de proporções tão monumentais que os poucos sobreviventes foram obrigados a rever suas posições, e a buscar uma forma diferente de coexistir. Talvez tenha sido um monge iluminado que atravessou campos de batalhas sagrados pregando a palavra da paz e da serenidade. Ou talvez tenha sido um príncipe renegado que, sob a sombra de uma árvore, teve uma revelação sobre a existência e transcendeu à divindade – e então além, percebendo os fios que ligavam todos os seres à grande roda de ilusão, e entendendo enfim a única maneira de superá-la.
Uma vez que haviam descoberto a transcendência, no entanto, era impossível voltar atrás. Um a um, os habitantes deste mundo se iluminavam a respeito da realidade de suas existências, compreendiam que as emoções e paixões a que os deuses os compeliam eram a fonte última de todo o seu sofrimento, e os abandonavam. Esvaziando-se de todo sentimento, ascendiam à divindade – e seguiam além, esvaziando-se de si mesmos, uma vez que a individualidade também é uma prisão, e tudo o que define e limita o que você é também o prende à ilusão e à roda da existência.
Por fim, quando todos haviam transcendido, a existência toda transcendeu com eles: hoje ela é um grande mar de vazio, onde os seres existem como pouco mais do que pequenas chamas azuladas que não mais se movem com o vento.
Serenos.
E assim permaneceriam pela eternidade, não fosse a descoberta de que haviam outras realidades como as deles, outras existências que não haviam sido agraciados com o conhecimento da serenidade.
Confrontados novamente com uma realidade que não havia transcendido, sentiram algo de que já quase haviam esquecido, um dos sentimentos que julgavam há muito terem expurgado da sua existência: a piedade. Decidiram, então, ir a estas outras existências, e levar também para eles a bênção suprema que há tanto custo haviam descoberto.
Assim teve início a cruzada da Serenidade.
A Serenidade e A Tormenta
A Serenidade representa, grosso modo, o exato oposto da Tormenta artoniana. Se a Tormenta é vermelha, a Serenidade é azul. Na anti-criação da Tormenta, tudo é lefeu; na alter-criação da Serenidade, nada é, em absoluto. Ambos possuem como fim último a negação do indivíduo, mas o fazem por caminhos completamente opostos: para os lefeu, ela vem da assimilação e a submissão a uma existência superior; para os leglace, da transcendência e de um livre-arbítrio tão absoluto que mesmo sentimentos, paixões, emoções e a sua própria individualidade deixam de prendê-lo.
Ambas ainda podem, no entanto, ser igualmente terríveis e perigosas. A Serenidade é a negação de todos os sentimentos, paixões e emoções, em prol de um mundo livre do sofrimento que elas inevitavelmente criam – mas não seriam justamente estes sentimentos, paixões e emoções que nos torna humanos, e dão valor à nossa existência? Por isso, para muitos, a paz e tranquilidade absolutas que a Serenidade promete é anti-natural, e deve ser combatida.
Por outro lado, também há aqueles que se entregam à Serenidade como uma resposta aos sofrimentos por que passaram em suas vidas. Quando tudo o que você conhece é dor e sofrimento causado pelo conflito entre deuses acima da sua compreensão, e alguém lhe oferece uma alternativa, quem pode culpá-lo por aceitar? Por isso, há entre os notrianos muitos que aceitam a Serenidade de bom grado, e a preferem ao equilíbrio divino que existia antes.
Não se pode imaginar, no entanto, o que aconteceria se a Serenidade e a Tormenta se encontrassem. Ambos são poderes acima da compreensão dos mortais, e assim seria também o seu confronto. Poderia a Serenidade fazer a própria existência lefeu transcender? Ou a Tormenta seria capaz de assimilar a tudo, mesmo a não-existência transcendente leglace? Ou será que, se duas forças virtualmente infinitas, mas diametralmente opostas, se encontram, o único resultado possível é a anulação de ambas?
Aos filósofos, ficam as perguntas.
Ilustração: o Buda Sakyamuni. Fonte.