Brigada Ligeira Estelar é um cenário único, adicionando vivência latino-americana aos clichês do gênero de robôs gigantes.
Salve irmãos de armas!
Nos últimos meses eu mergulhei de cabeça no cenário de RPG Brigada Ligeira Estelar (BLE) (desconhece? Veja as resenhas publicadas aqui pelo BURP e pelo Keitaro, e a entrevista com o autor Alexandre Lancaster). BLE é um RPG de ficção científica espacial sobre robôs gigantes, com forte inspiração em séries consagradas da animação japonesa, como Gundam, Code Geass e Macross/Robotech. Felizmente, o cenário vai além destas referências, possuindo uma originalidade “à brasileira” que pode atrair mesmo quem não é fã do gênero e/ou não conhece os animes. Inclusive, eu sou uma dessas pessoas.
Mas afinal, quais são elementos originais de que falo? E porque eu os identifico como “latino-americanos” ou “brasileiros”?
Provavelmente eu não teria comprado o primeiro livro do Brigada se este não fosse tão barato e para 3D&T, um sistema pelo qual eu tenho um carinho enorme. No entanto, foi o que eu encontrei naquele livreto de 80 páginas que me motivou a comprar os demais livros da franquia…
Eu encontrei POLÍTICA.
Brigada Ligeira Estelar é provavelmente um dos cenários mais políticos de RPG da atualidade, mesmo a nível internacional. A intriga e disputa pelo poder é parte importante do gênero Real Robot. Em linhas simples, a Constelação de Sabre é um Império Napoleônico que deu certo. Tal como Napoleão, o Imperador Silas Falconeri era um militar de origem plebeia que desafiou antigas oligarquias/nobreza, e espalhou para outras nações ? à força ? os princípios iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade, garantindo maiores direitos aos plebeus. No momento presente, a Aliança Imperial encontra-se em crise e sem imperador, sendo disputada entre as antigas oligarquias e os defensores do legado de Silas.
Apesar da inspiração no período Napoleônico, o leitor atento encontrará muito de Brasil e América Latina no cenário, especialmente no que tange a realidade política, social e econômica da Constelação:
- Disparidades: Há regiões desenvolvidas, com grande avanço tecnológico, mas também regiões atrasadas, dominada por “senhores feudais”.
- Coronelismo: onde áreas inteiras são controladas por senhores da guerra, coronéis, caudilhos ou nobres, que submetem a população a péssimas condições de vida. Estas regiões são ótimas para ambientar aventuras com clima de faroeste.
- Um sistema corrupto: que visa proteger a nobreza e seus aliados, sendo um constante entrave aos personagens jogadores (vide os problemas com o judiciário na aventura introdutória “A Serviço da Princesa-Regente”).
- Profundas desigualdades sociais: tanto entre os mundos quanto dentro deles. O mundo de Tarso talvez seja o exemplo mais claro. Apesar de ser industrializado e “desenvolvido”, é também um dos mais poluídos e desiguais, onde a população mais humilde está exposta a todo tipo de condição desumana (vide artigo sobre “O Mergulhão”, publicado no site da Jambô).
- Resistência e luta: apesar de todos os problemas, há pessoas lutando por justiça e igualdade (na figura dos personagens jogadores), seja por dentro do sistema (como os membros da Brigada Ligeira Estelar, alguns nobres e grupos progressistas), seja por fora dele (grupos revolucionários, vigilantes mascarados, entre outros). Lancaster está longe de entregar uma ficção científica derrotista ou conformista.
Observação: grande parte destes pontos é muito bem retratada na série de quadrinhos do Shadrach (que se passa no cenário).
Eu poderia citar muitos outros pontos: dos nomes em português ou sonoridade neo-latina, passando pela mídia corporativa perversa e os problemas no judiciário e legislativo… mas não vou me prolongar com listagens (quem quiser, comente). Minha intenção com este artigo é mostrar que essas influências regionais dão um gosto original ao cenário, tornando-o único.
Longe de serem alegorias, estes elementos estão inseridos no cenário de forma espontânea e usados para contar uma boa história (diferente de outros casos, onde tornam-se uma sátira de mau gosto). Afinal, é natural que a vivência do artista tenha influência sob sua obra, de forma consciente e inconsciente. A maioria dos cenários de RPG nacionais possuem essa “brasilidade”, mas em BLE estes elementos se destacam por conta da natureza do gênero. Essa impressão se intensifica conforme você vai lendo os demais livros: os dois volumes da Constelação de Sabre dão mais detalhes sobre os mundos e seus conflitos, enquanto Belonave Supernova é um novelão cheio de reviravoltas. Mesmo os artigos compilados no Arquivos do Sabre revelam novos elementos.
Num momento em que se discute uma possível saturação no gênero Real Robot (vide esse vídeo em inglês), BLE traz um frescor muito bem-vindo ao gênero. Ele mantém a máxima “O piloto, não o robô”, que o caracteriza como um legítimo membro do gênero, mas ao mesmo tempo diverge das fontes japonesas originais.
Por exemplo, a série Gundam original pode ser resumida a: “pilotos lutando uma guerra que não é deles, e buscando seu lugar no mundo”. Uma proposta adequada a ótica japonesa, que no passado se envolveram numa grande guerra imperialista por um estado supremacista. Qual era o sentido dessa guerra para o soldado? Em que ele se beneficiaria? Até hoje a franquia Gundam segue esse mote de guerra total cheia de tons de cinza. No entanto, esta não é a proposta do BLE – mesmo que sejam melhor desenvolvidos no futuro, dificilmente os Proscritos deixarão de serem os vilões. E a guerra total com eles é apenas um entre muitos elementos do cenário.
Brigada Ligeira Estelar pode ser muitas coisas, mas se eu pudesse resumir diria que é sobre uma nação em crise, formada por mundos e pessoas diversas que precisam superar suas divergências para enfrentar uma ameaça maior (os Proscritos), mas cujos interesses mesquinhos de alguns podem colocar tudo a perder. A brigada que dá nome ao RPG não é composta por soldados cínicos, mas formada por heróis fanfarrões. Muitos deles vieram “de baixo”, e lutam por um ideal e um mundo melhor mesmo nas condições mais adversas. Não é sobre um passado sombrio, é sobre o que precisamos para superá-lo. E nesse sentido ele se encaixa muito bem a ótica brasileira (mas não se limita a ela).
Portanto, subam nos seus robôs gigantes e ergam suas armas, há muito o que fazer na Constelação de Sabre… e além! 😀
Agradecimentos ao Nume e Alexandre Lancaster pelas conversas sobre o cenário, e ao excelente artigo de Pedro Henrique Leal para o QStage que me deu uma nova perspectiva sobre Gundam.
As imagens usadas neste artigo são propriedade da Jambô Editora.