Tormenta: morte e ressurreição ou a síndrome da multidão de cainitas
Em Vampiro: A Máscara, em algum lugar do livro básico é descrito que existe uma proporção de um vampiro para cada cem mil humanos, o que significa que mesmo uma enorme megalópole como São Paulo com cerca de 20 milhões de pessoas vivendo na Grande São Paulo terá mais ou menos duzentos vampiros vivendo naquela área. Ou que a população total de vampiros no mundo todo é de mais ou menos setenta mil. No entanto, praticamente todas as mesas de Vampiro: A Máscara sofrem de uma doença chamada de síndrome da multidão de cainitas. Isto é, praticamente todas as campanhas são situadas em cidades onde a simples soma de jogadores mais estrutura básica da Camarilla ou Sabá estoura facilmente a cota de um vampiro para cada cem mil humanos. Especialmente quando a maioria dos grupos gosta de jogar em uma versão sobrenatural de suas próprias cidades.
Eu lembro de muitas campanhas que rolamos no nosso grupo situadas em Criciúma, a “grande cidade” da nossa região, que com suas 133 mil almas poderia acomodar… um vampiro. E qualquer campanha que rolávamos tinha que acomodar quatro a seis jogadores, um príncipe, um ancião de cada clã dos jogadores e dos que seriam usados pelo mestre e mais cinco ou seis antagonistas. Uma multidão de vinte a trinta vampiros numa cidade de médio porte do interior catarinense. Diabos, mesmo quando tentávamos nos comprometer com a verossimilhança e jogar numa cidade maior do estado como a Grande Florianópolis (1,1 milhão de habitantes) ou Grande Joinville (1,3 milhão de habitantes), nos acabamos estourando o limite só com os personagens jogadores mais estrutura básica das organizações vampíricas.
Mas o que tudo isso tem a ver com Tormenta? Bem, na mesma questão de pessoas que voltam da morte, há um certo número obsceno de ocorrências nas mesas de RPG. Isto é, quando se trata de ressurreições, a maioria dos jogadores e mestres parecem achar que se trata de uma ocorrência comum. Não é. Diabos, realmente não é, mesmo em um mundo como Arton onde há uma cidade amaldiçoada onde todos que morrem voltam à vida no dia seguinte e um deus da ressurreição é parte do Panteão.
Para começar, a magia mais simples de ressurreição, Reviver os Mortos, é uma magia divina de 5º nível que pode ser lançada por clérigos a partir do 11º nível. Se a memória não me falha ela tem como componente material um diamante no valor de pelo menos cinco mil TO (algo raro por si só) e que o alvo tenha seu corpo completo e tenha morrido a menos de uma semana. E a magia não afeta pessoas que tenham morrido de velhice.
Então, para ressuscitar alguém é preciso que um raríssimo clérigo de 11º nível, poderoso o bastante para ser um herói nacional, esteja próximo o suficiente para fazer a viagem até o falecido em menos de uma semana, que um raríssimo diamante, cujo valor é o mais do que o necessário para comprar uma mansão na capital, esteja disponível, e que o falecido tenha todas as partes do corpo intactas e não tenha morrido de velhice. E sabe qual o detalhe mais cruel? Mesmo que todos esses requerimentos sejam cumpridos, há uma chance da magia falhar! Sim, porque em Tormenta um deus maior pode impedir a ressurreição de alguém se ela for contra os planos da divindade, e além disso, se durante o tempo que a alma do falecido vagou nos Reinos dos Deuses, muitos deles extremamente perigosos, ela vier a ter uma segunda morte, a alma é destruída e a ressurreição se torna impossível!
O que isso significa? Que para o homem comum artoniano a morte é tão definitiva quanto para eu e você aqui na Terra, e que mesmo para o maior dos heróis artonianos a chance de ser ressuscitado é pequena considerando que mais deuses precisam desejar que ele retorne ao mundo dos vivos do que o contrário.
Ah, mas e os clérigos e paladinos de Thyatis, deus maior das profecias e ressurreição, e a cidade de Triumphus, Nume? Não tem um monte de ressurreição quando eles estão envolvidos? Bem, sim e não.
Veja bem, assim como magias de ressurreição, clérigos e paladinos de Thyatis são raríssimos e restritos a certas regiões do mundo onde a religião é mais comum. Além disso, nem todos os clérigos e paladinos da divindades são ligados ao aspecto das ressurreições, muitos deles são, em vez disto, especializados em oráculos. Afinal de contas, Thyatis é o deus das profecias também, e a ressurreição só entra em jogo quando alguém é impedido de realizar seu destino por um encontro com a morte. Não é a toa que todo mundo que é ressuscitado por um clérigo de Thyatis fica sob o efeito da magia Missão lançada pelo próprio deus maior. Isso significa que o clérigo de Thyatis não sai por aí ressuscitando todo mundo. Não, ele é o misterioso servo dos deuses que aparece para começar grandes sagas. Que entra no meio do enterro de um plebeu que trabalhava na quitanda da esquina, tira do bolso um diamante que vale mais que os rendimentos de gerações de todos presentes no enterro e ressuscita o falecido, coloca uma espada na mão dele e solta um “vá para Valkaria, lá você vai encontrar seu destino” e aí dez anos depois aquele plebeu salva o mundo de uma invasão de demônios. O mesmo vale para os paladinos imortais de Thyatis, eles não morrem até que cumpram seu destino. Deus da profecia e ressurreição é só um jeito enrolado de dizer Deus do Destino.
E Triumphus? Bem, os principais plots envolvendo a cidade são 1. escapar do ciclo de ressurreições dela e 2. encerrar a maldição e evitar que as pessoas sejam ressuscitadas. A cidade existe no cenário justamente para mostrar para todo mundo que joga Tormenta que ressurreição indiscriminada não traz nada de bom e precisa ser evitada a todo custo. Ou seja, Triumphus é na verdade um meta jogo cuja função é alertar mestres e jogadores sobre os perigos de usar magias de ressurreição indiscriminadamente na campanha!
Ou seja, fica a lição, queridos: não abusem de magias de ressurreição nas suas campanhas. Elas são eventos únicos e especiais na história de Arton. Faça com que seus jogadores se sintam especiais por simplesmente presenciarem uma situação assim. Não deixe que eles tratem o fantástico como ordinário, ou eles vão perder parte da razão pela qual jogamos RPG: viver a fantasia.