Resenha: Death Marching to the Parallel World Rhapsody
Em 2015 adquiri um novo hobby: light novels. Para quem não conhece, light novels são um formato de livros publicados no Japão cuja característica é que eles são compilados de folhetins e sites da internet. Antes que você revire os olhos, é preciso que leve em consideração que muitos dos grandes romances mundiais foram publicados seguindo exatamente o mesmo formato. De Machado de Assis a H.P. Lovecraft, a lista de autores que publicaram seus grandes romances primeiro em folhetins não é pequena.
Entre as light novels que tive a oportunidade de ler nestes últimos meses, a mais interessante de todas foi Death March to the Parallel World Rhapsody, ou apenas Death March para facilitar. A história segue as aventuras de Suzuki, um programador de 29 anos que acorda em outro mundo após ir dormir no escritório durante uma Death March, como são conhecidos os períodos pré-lançamento de jogos eletrônicos em que os desenvolvedores fazem centenas de horas extras para deixar tudo pronto para o lançamento.
A princípio imaginando se tratar de um sonho devido a mecânicas de game como um menu e mapa que aparecem no seu campo de visão e o fato de que ele reaparece no outro mundo com a aparência que possuía quando tinha 15 anos de idade e o nome Satou, que ele usava como padrão para seus personagens em games (mais ou menos como eu uso Nume), ele passa por um estranho evento e obtêm um poder gigantesco e uma riqueza imensurável. Com todas as preocupações terrenas como dinheiro e segurança resolvidas, ele resolve fazer o que qualquer adulto faria na mesma situação: turismo no outro mundo.
E é aqui que Death March difere de outras histórias japonesas com a mesma premissa (o trope “transportado para outro mundo o adolescente se transforma em um herói” é extremamente comum na literatura de light novels): o fato de que ele é um adulto experiente e responsável. Ao contrário do adolescente ou adulto otaku que normalmente é o protagonista deste tipo de história, Suzuki não está interessado em viver uma aventura nem possui um senso de justiça clichê que o faça cegamente tentar “corrigir” o mundo que ele encontra para o seu próprio gosto. Em vez disto, o autor Ainana Hiro nos presenteia com uma história de fantasia feita para aquecer seu coração, com foco em relacionamentos, culinária, locais e situações de grande beleza, culinária e o ocasional conflito contra lordes/reis demoníacos¹ e nobres arrogantes.
E não, não coloquei culinária duas vezes por engano. Acontece que boa comida parece ser muito mais importante para o personagem principal do que todo o resto com exceção das vidas das pessoas com que ele se envolve neste outro mundo. Em um dos livros, há uma épica busca através de cinco ou seis capítulos e milhares de quilômetros por… picles. Como o livro é narrado do ponto de vista do personagem principal (uma espécie de diário de viagem pelo outro mundo), é possível ver como a ordem de importância do picles é enorme quando, durante um dos capítulos extras narrados do ponto de vista de outro personagem, há uma luta contra um demônio que é derrotado facilmente por Suzuki após quase destruir uma cidade, que é descrita pelo personagem no texto principal mais ou menos assim: “…na cidade x, aconteceram alguns problemas, mas tudo se resolveu rapidamente, agora, voltando a falar sobre picles…”.
O impacto deste humor involuntário é aumentado pelos relacionamentos com habitantes deste mundo e outros japoneses transportados ou reincarnados, a maioria deles uma parodia de um cliché das histórias do gênero ou uma piada com determinados tipos de otakus.
Mas o que há de mais interessante nestes livros, sem sombra de dúvida, é a atitude com a qual o personagem principal lida com seus problemas, que costuma gerar reclamações de leitores mais jovens acostumados com outras histórias do gênero. O problema, para eles, é que Suzuki não age como o semideus que ele é. Abaixando a cabeça para nobres arrogantes, mostrando deferência para figuras de autoridade como duques e reis, entre outras coisas. É como se os jovens leitores não pudessem aceitar que Suzuki não use o enorme poder pessoal dele para agir como um criança mimada. Estes leitores, provavelmente, imaginam o que fariam se tivessem o poder de Suzuki e ficam decepcionados quando ele não age exatamente como eles. Em vez disso, o personagem sempre age como se espera de um adulto, com responsabilidade e uma visão de mundo muito mais ampla do que alguém mais novo poderia ter.
No fim, Death March acaba tendo um valor muito maior do que uma simples sátira de outras histórias do gênero, mas também como um exemplo para jovens de que as suas fantasias de poder e seu comportamento rebelde não os levará muito longe no mundo adulto, e que a maneira para alcançar uma vida próspera e feliz não necessariamente está em conflito direto com outros.
Existe uma versão traduzida para o inglês de Death March disponível legalmente em Sousetsuka. Não há tradução para o português até o momento.
¹ O original japonês é Maou, cuja tradução literal seria Rei Demônio, mas é comumente traduzida para o inglês como Demon Lord, que por sua vez é traduzido para o português como Lorde Demônio. No Brasil, nos mangás traduzidos onde eles aparecem, o que mais vejo é que opta por manter Maou nas falas dos personagens e colocar uma nota de rodapé explicando o que significa.