Oreshika: Tainted Bloodlines é o primeiro desses jogos que realmente me fez pensar que valeu a pena ter adquirido o console. É um RPG por turnos que honra a longa tradição que o precede, mas também adiciona um bocado de reviravoltas e novidades, fugindo das fórmulas prontas que assombram as grandes franquias do gênero. Tudo isso fechado com uma apresentação impecável, com gráficos e música lindos remetendo à arte tradicional japonesa, e o provável maior banho interativo de cultura oriental desde Okami.
O jogo conta a história de um determinado clã de samurai no Japão da era Heian, cujo nome e características gerais você pode determinar ao começar a partida. Encarregado de cuidar de cinco relíquias sagradas, ele caiu em desgraça devido a maquinações de um feiticeiro onmyoji chamado Abe no Seimei, que roubou e escondeu os artefatos. Para aplacar a ira dos deuses, o Imperador determinou que todos os membros do clã fossem mortos; os próprios deuses, no entanto, se apiedaram de um destino tão cruel, e os trouxeram de volta à vida para que pudessem limpar o seu nome e buscar vingança contra aquele que o desgraçou em primeiro lugar.
A ressurreição, no entanto, não foi sem contratempos. Antes de serem executados, Seimei lançou sobre o clã duas maldições. A primeira reduz o tempo de vida dos seus membros, que atinge seu limite por volta dos dois anos; e a segunda impede que eles se reproduzam com qualquer um exceto os próprios deuses e outros membros de clãs amaldiçoados. Mais uma vez, assim, foi necessário uma intervenção divina: os deuses se colocaram à disposição para uniões matrimoniais, garantindo que a linhagem do clã se mantivesse e dando a eles habilidades únicas, entre elas a de um amadurecimento acelerado para que os dois anos de vida de cada geração sejam aproveitados o máximo possível.
Temos aí então o mote principal do jogo: o de ser, antes de um simples RPG, um simulador de clã. O protagonista não é um único personagem, mas sim uma linhagem inteira deles, conforme aqueles com quem você começou são substituídos por seus filhos, netos, bisnetos e além. Cada geração aumenta a força da anterior, na medida em que todos vão acumulando experiência, habilidades especiais e se casando com deuses cada vez mais poderosos. Além disso, para além de explorar dungeons e vencer demônios, você também deve administrar e governar a sua província, investindo o dinheiro conquistado nas aventuras em áreas estratégicas como produção de armas e armaduras, itens de cura ou mesmo no entretenimento e devoção religiosa – o resultado final acaba lembrando bastante o RPG “de mesa” Blood & Honor, só adicionado de elementos fantásticos (o que talvez o aproxime mais de um Tenra Bansho Zero, na verdade).
O jogo em si é dividido em uma série de rodadas, cada uma com duração de um mês, em que você deve administrar os afazeres do clã, cuidar de eventuais casamentos e funerais, bem como decidir os investimentos para melhorar os serviços da província. Se parece coisa demais, não se preocupe: você conta com o auxílio de Kochin, uma menina-doninha que faz as vezes de garota-bichinho-fofinha-de-anime da vez, e, contrário a tantos outros ajudantes de games por aí, de fato dá bons conselhos e sugestões sobre o que fazer a seguir. Por fim, uma vez por mês, você pode sair para explorar uma dungeon nas suas terras ou nas de outros clãs, e reunir o dinheiro e experiência necessários para cumprir seus objetivos.
Aqui temos o componente online do jogo. Esses “outros clãs” pertencem, em sua maioria, a outros jogadores conectados, cujas terras você pode visitar para comprar itens, contratar mercenários, arranjar casamentos ou mesmo participar de torneios pelo brasão do clã. Ao começar uma partida o seu clã é colocado em um determinado ponto do mapa, com duas dungeons aleatórias próximas (e uma terceira após você atingir um determinado ponto da história); para visitar as demais, assim, você deve visitar estas outras províncias, estabelecendo toda uma rede própria de ligações e alianças.
As dungeons são talvez o ponto que pudesse ter maior variação. Existem nove modelos básicos, além de outras duas que você libera com o desenrolar da trama, embora seus mapas exatos possam ser diferentes em cada província. Você pode explorá-las enfrentando seus demônios e recolhendo seus tesouros, mas o tempo para fazê-lo é limitado; uma vez que acabe, você tem a opção de continuar nela por mais um mês ou retornar para casa. O tempo exato que você possui não é fixo: você possui quatro classificações de dificuldade, da mais baixa em que você recebe o dobro de experiência e dinheiro mas possui menos tempo, até a mais alta em que a experiência dinheiro recebidas são menores, mas há mais tempo para exploração; e é possível alternar livremente entre elas, para quando você quiser passar mais rápido por uma rodada ou ter mais tempo para recolher tesouros ou encontrar a entrada para o Festival de Todos os Demônios que avança a história. De modo geral, no entanto, como você as estará visitando com muita freqüência, é possível que acabe enjoando de algumas delas com certa rapidez.
Durante a exploração as batalhas não são aleatórias – ou seja, você vê os inimigos na tela, e pode até mesmo emboscá-los para obter uma vantagem na primeira rodada. O sistema de combates segue o modelo de turnos de forma bem clássica, em que cada personagem tem a sua vez determinada pelo seu atributo de agilidade, e então você deve escolher entre uma ação ou habilidade especial a partir de uma série de menus. No entanto, há uma boa dose de pequenos detalhes que dão maior profundidade e permitem diversas variações estratégicas. Cada lado da batalha, por exemplo, possui duas linhas de combatentes, uma dianteira e uma traseira; as suas opções de ações são determinadas pela sua posição nelas, além da sua classe – um espadachim, por exemplo, só pode atacar inimigos na linha de frente, enquanto um arqueiro ou carabineiro pode atacar inimigos em qualquer posição. Outras classes são capazes de atacar ao mesmo tempo todos os inimigos em uma determinada linha, ou possuem ataques diferentes contra inimigos na linha de frente ou de trás. As magias também podem ter efeito sobre um único inimigo, uma linha de inimigos ou todos eles, e você pode ainda reunir vários personagens para lançar uma magia em conjunto, multiplicando o seu poder.
Há muitos outros elementos diferentes no jogo, cada um com mecânicas próprias e características únicas, e de maneira geral você continuará liberando novas habilidades e lendo novos tutoriais de como usá-las já várias horas adentro da história. Há uma determinada personagem que entra para o clã após a trama avançar um pouco, com uma classe e habilidades especiais únicas (e voz da Megumi Hayashibara, o que é praticamente uma habilidade especial à parte – aliás, é um belo ponto para a caracterização e imersão a opção por manter o som original em japonês, localizando apenas os textos); outra classe especial com características únicas você libera para os personagens já quase no final. De maneira geral, sempre que você acha que já viu e entendeu tudo o que há para fazer, o jogo vai lá e te mostra que há ainda mais.
De todas as mecânicas apresentadas, no entanto, certamente as mais imersivas e profundas são aquelas que dizem respeito à linhagem e a passagem das gerações do clã. Como já foi comentado, o mote principal da história é que você faz parte de um clã amaldiçoado, em que os membros, apesar de amadurecerem muito mais rápido, só podem viver por cerca de dois anos; esse é o período que eles possuem para desenvolver suas habilidades e gerar e treinar descendentes que darão continuidade à sua missão. Cada nova geração deve ser mais forte que a anterior, uma vez que os próprios demônios que enfrentam também estão se fortalecendo, e o jogo oferece uma série de formas de garantir isso.
Um exemplo é a produção de armas e armaduras ancestrais. Conforme você investe dinheiro na produção de armas e armaduras na sua província, poderá convidar para viver nela artesãos especializados que podem produzir itens exclusivos para determinados personagens. Estes itens inicialmente serão fracos, mas seu poder aumenta conforme o personagem escolhido avança de nível – e, quando morrer, ele pode passá-los como herança para outro personagem da mesma classe, com o qual ele continuará a evoluir e ganhar novos poderes. Assim, bastarão algumas gerações para que se tornem extremamente poderosos. As técnicas secretas de cada classe, que um personagem pode começar a desenvolver após ganhar alguns níveis, também seguem uma mecânica parecida, com a diferença de que, além da limitação da classe, elas também devem ser passadas diretamente de um pai para um filho ou serão perdidas.
No geral, tudo no jogo favorece que você crie certas tradições para o seu clã, criando itens e determinando braços familiares exclusivos para cada classe. Por vezes ele é quase um estudo social sobre o tema, e o resultado é incrivelmente imersivo e divertido. Até na aparência dos personagens há toda uma série de pequenos detalhes, com certas características físicas que são passadas para as gerações seguintes – casar-se com um deus com orelhas de raposa, por exemplo, pode fazer com que seus filhos ou netos desenvolvam uma característica parecida; ou então, às vezes, uma característica como cor dos olhos ou estilo de cabelo que parecia ter desaparecido reaparece inesperadamente duas ou três gerações depois. Some a isso ainda a possibilidade de usar a câmera do Vita para criar um personagem baseado na sua própria aparência, ou ainda a de criar um código QR para determinados personagens que você queira compartilhar com amigos e conhecidos; e mesmo as dungeons são repletas de “locais famosos” onde você pode parar e tirar uma foto de família para compartilhar nas redes sociais, quase como se fosse uma viagem de férias.
Com isso, mesmo que sejam tantos e criados pelo próprio jogador, cada personagem acaba adquirindo uma personalidade bastante única. Isso é refletido no próprio jogo – há uma classificação de personalidades de acordo com os elementos que influenciam as suas sugestões de ações em combate e a sua lealdade ao clã quando ficam muito tempo sem participar da ação. Um personagem de fogo, por exemplo, é mais agressivo e ativo, mas também volátil; enquanto um personagem com personalidade de terra é mais rígido e defensivo, mas também mais leal. Com o tempo você aprende a se importar com cada um individualmente, e realmente sente quando a sua morte se aproxima. Há um funeral tocante em que os seus feitos são lembrados mês a mês, e mesmo um pequeno conjunto de palavras finais repletas de emoção e sentimento. E mesmo depois de morto ele ainda pode se fazer presente, seja concedendo um bônus eventual através das armas ancestrais que deixou como herança, seja até, em alguns casos, tornando-se uma nova divindade que pode ser escolhida para casamentos no futuro.
Tudo se completa com a apresentação linda, tanto nos gráficos misturando anime com arte tradicional japonesa, até na própria música também de inspiração tradicional, que colabora muito para criar o clima e dar o tom da história. Para quem gosta de cultura e história japonesas, praticamente cada elemento do jogo possui algum atrativo próprio, colaborando com a caracterização de uma era Heian (que não costuma ser a mais conhecida e celebrada no ocidente) colorida e vibrante, repleta de magia e fantasia, e em que até os demônios têm festivais próprios animados e calorosos.
Enfim, gostei muito de Oreshika: Tainted Bloodlines. É uma experiência imersiva e envolvente como há tempos eu não tinha, daquelas que te faz ficar acordado por vários fins de semana apenas para fazer o seu clã chegar no estágio seguinte. Jogo obrigatório para quem possui um Playstation Vita, gosta de RPGs tradicionais por turnos, e/ou simplesmente se interessa pela cultura e história japonesas de maneira geral.