Habibi, do norte-americano Craig Thompson, é outro excelente exemplo de HQ que não faria feio em qualquer prêmio literário. Ela tem tudo o que se espera de uma grande obra em prosa: é ousada e ambiciosa na exploração da linguagem, tanto a visual como a escrita; trata de temas maduros e intrinsecamente humanos como o amor (em todos os seus sentidos), a sexualidade, a religião; é apoiada por uma pesquisa profunda sobre a cultura árabe; e constrói de forma única e envolvente todo um universo de personagens e as relações entre eles e o mundo à sua volta. Mais do que tudo isso, ela faz ainda uma das mais bonitas homenagens à própria arte de contar histórias.
Os personagens principais são Dodola e Zam, duas crianças escravas que fogem dos seus dos seus captores antes de serem vendidos. Vagando pelo deserto, encontram um barco semi-enterrado na areia, onde fazem o seu lar, crescem e amadurecem nos anos seguintes. Para passar o tempo entre as buscas por comida e água, Dodola conta a Zam as histórias que conhece, contos retirados do Corão, transformando inadvertidamente a sua própria história em uma versão moderna de As Mil e Um Noites.
Claro que coisas acontecem e ambos são obrigados eventualmente a abandonar este Éden, partindo para enfrentar o mundo em jornadas separadas até a sua reunião arrebatadora. Mesmo distantes, no entanto, um está sempre com o outro, e, principalmente, à procura do outro. As histórias que contam então passam a ser um ponto norteador, um guia que os ajuda a enfrentar as dificuldades que encontram, e que os lembra constantemente daquele que os espera no fim das suas provações, e por quem nenhum deles pode desistir e ficar para trás. Tudo isso em um cenário atemporal, em que um suntuoso palácio de prazeres pode estar ao lado de um lixão repleto de sucata e sujeira.
É uma história fantástica e cativante, complementada ainda pela arte maravilhosa. Will Eisner já dizia que a linguagem dos quadrinhos, ou arte sequencial, como ele a chamava, é o que se encontra na junção do texto e da imagem: nenhum deles é negligenciável; mesmo que você faça uma história sem palavras e diálogos, a simples disposição das imagens em uma determinada sequência já dá um novo significado para as suas paisagens e personagens, transformando-as, efetivamente, em um texto. Poucas vezes eu vi uma obra que explore esta idéia de forma tão profunda: palavras e imagens se mesclam, bordas belíssimas são usadas para destacar as histórias dentro da história, o próprio formato dos quadros e páginas é cheio de significados, colocando a ação dentro de símbolos místicos e religiosos. Em um determinado momento, por exemplo, Dodola está na chuva, e as gotas de água na verdade formam palavras em árabe – o autor, aliás, aprendeu a língua apenas para produzir a obra; em notas explicativas no final, sabemos que estas palavras formam na verdade uma canção sobre a chuva de um poeta iraquiano. A narrativa toda é cheia de jogos semelhantes, que dão novos significados a imagens que parecem simples, e novas camadas de profundidade à leitura.
Enfim, não posso recomendar Habibi o suficiente. É a melhor leitura que eu fiz este ano, seja entre quadrinhos ou literatura em prosa, de longe. Não me surpreenderia se o Craig Thompson ainda fosse o primeiro autor de quadrinhos a ser consagrado com um Nobel de literatura ou outro prêmio semelhante.
Habibi, de Craig Thompson.
672 páginas por R$57,00.