Notícias de eventos estranhos se alastravam pelo mundo e pelo país como uma grande epidemia: o homem que levitava, a santa chorona que era realmente capaz de curar com suas lágrimas miraculosas, o garoto que apanhava balas e projéteis no ar com se fossem brinquedos inofensivos. Nas manchetes o fora do comum estava ficando corriqueiro.
Eu era uma garota de sorte. Acabara de me formar em jornalismo e começava a atuar na área investigativa, fazendo reportagens. A pessoa certa, no momento certo.
No lugar errado.
Foi o que pensei naquela manhã de setembro, enquanto eu me sentia aprisionada – no estacionamento de um Mc Donald’s, sentada dentro de uma van, segurando uma bandeja de cartão, enquanto o meu chefe queimava a língua com café quente e mordiscava um tostado de presunto e queijo.
– Espero que esteja do seu agrado! – eu disse sem esconder uma pontada de ironia e enfado. O mundo inteiro estava de ponta cabeça e nós, com todo nosso equipamento, parados. Sem motivo aparente.
– Paciência, pequena foca! – respondeu ele com trejeitos cômicos, imitando a voz de um idoso. Falava enquanto mastigava – Você demonstra a impetuosidade da juventude, mas o universo conspira a nosso favor. Cadê o muffin de ovos com bacon?!
– Tentei te dizer antes, mas você nunca ouve. Cancelaram essa opção no cardápio faz séculos. Brasil. Nós estamos no Brasil, sabe? Ninguém come esse lixo no café-da-ma…
– Tudo bem, tudo bem, sem drama! Eu te perdoo, foquinha! Apenas não se esqueça de trazer da próxima vez. Bacon é vida.
Morte. Queria matá-lo.
Mais uma vez não tinha prestado atenção em nada do que eu havia dito e sequer tinha esperado que eu acabasse de falar, me interrompendo no meio, como tinha a irritante mania de fazer. E o que pensar daquela sua maneira ridícula de dizer “foca” no diminutivo? Foca. É assim que apelidam nós jornalistas novatos nesse país.
Se não trabalhasse como sua assistente já o teria enforcado com a própria gravata.
Decepção. Fiquei fascinada quando soube que uma estagiária recém promovida como eu teria chance de trabalhar com um repórter experiente, calejado e notório como Diogo Kramer. Ele era meu ídolo dos tempos de faculdade. Era.
Chamavam-no de “Sr.Abutre”. O filho da mãe, não sei se vocês se lembram, galgou uma carreira meteórica em poucos anos. Enquanto foi correspondente de guerra, parecia ter um faro sobrenatural para a desgraça alheia. Estava sempre bem ao lado das piores tragédias da humanidade, alguns dias antes delas acontecerem. Como uma ave carniceira esperando alguém morrer no deserto. Apesar disso, pelas fotos, entrevistas e imagens ao vivo, a ideia que fazia dele era a de um herói hormonal e viril. Um soldado imaculado, moreno, com voz profunda, saído diretamente de algum campo de batalha no oriente médio.
Mas agora tudo que eu farejava ali era decadência. Um palhaço e um poltrão que requisitou a quem o pagava uma garota bonitinha que fizesse todas as suas vontades e que lhe trouxesse o café-da-manhã. Não há lenda que sobreviva ao cotidiano. Começava quase a suspeitar que sua fama não fosse mais do que pura e simples mitologia, fruto de alguma conspiração da imprensa ou algo assim.
Quase.
Ouvi algumas batidas na janela da van e me assustei. Era um rapaz ruivo, magro e sardento, vestido com o uniforme de funcionário da lanchonete. Um enorme crachá pendia de seu pescoço com uma foto três por quatro abatida e um nome.
Um nome ordinário, do qual não consigo me lembrar.
– Oi?! Moça? Você esqueceu seu café!
Sorri. Agradeci. Baixei a janela do carro, tomei o recipiente em minhas mãos e bebi um bom gole. Estava mesmo precisando de um pouco de substância negra e fumegante no organismo.
O rapaz se afastou andando pelo estacionamento em direção à lanchonete. Parou, assim, sem qualquer motivo, como se quisesse apenas se espreguiçar e tomar um pouco de sol matutino na cara.
Foi abordado por uma estranha figura que surgiu de trás de um carro. Um homem fantasiado de verde. De longe era difícil distinguir os detalhes, mas ele usava máscara e carregava alguma coisa longa e de metal. Parecia uma arma, algum tipo de espada.
Para o meu choque a espada desceu no ar e fez um arco arrancando a cabeça ruiva do funcionário de seu corpo e fazendo com que ela despencasse no chão do estacionamento do fast-food.
– O que está esperando, foquinha?! Pegue a câmera lá atrás, o nosso furo já chegou! – disse o Sr.Abutre – e tente fazer silêncio.
A Foca obedeceu.
…
Rotina. Rotina é uma merda.
Casa, engarrafamento, trabalho, engarrafamento, casa, engarrafamento, trabalho, engarrafamento, casa, engarrafamento, trabalho…
O congestionamento do trânsito de veículos urbanos é o limbo do homem moderno, seu habitat natural. Na verdade, já estava acostumado. Às vezes se sentia mais confortável dentro do seu carro, tomado por sons de buzinas e alguma música do momento tocando baixo no rádio, do que no cubículo do escritório, ou mesmo nos raros jantares que tinha junto de sua família.
Mas naquele dia especial, voltando de um dia atarefado, tudo o queria fazer era chegar logo e deitar em sua cama. Bocejos o tomavam como um câncer.
Como tinha ido parar naquela situação? Em um trabalho que odiava, casado com uma mulher que não desejava e pai de filhos que não o respeitavam? E o pior, o que esperar do futuro? Já não era mais um adolescente na faculdade. Não dava pra sair assim, largar tudo em busca de um sonho.
Um sonho? Que sonho? Não havia sonho.
Ele era José da Silva. 36 anos. Zé Ninguém. Sua vida era insônia. Limbo.
Medíocre, ele pensou. Eu sou um medíocre, mas que se dane. O que quero fazer é ir logo pra aquela cama e apagar. Dormir. Nada de sonhos. Apenas sono. Não tenho tempo para desperdiçar.
Estava num cruzamento e o sinal finalmente abriu, deixando o fluxo de veículos correr. Um bocejo e uma batida. Outro carro acertou-lhe a lateral esmagando a lataria, então a carne e então seus ossos.
A última coisa que lhe veio à mente não foi sua existência, passando diante de seus olhos, como num filme.
Foi uma cama.
…
Aquele havia sido o primeiro ataque do criminoso conhecido como “Ronin Verde”. Um eco-terrorista que dizia ouvir vozes de plantas e animais mortos. Claro que ele mesmo não se definia como tal, mas um libertador e um justiceiro. Um messias que tinha vindo ao mundo para lutar contra a opressão psíquica da comida industrializada.
A polícia militar o abateu com um tiro, mas não antes que ele chacinasse funcionários e clientes que mantinha reféns com sua réplica de uma espada japonesa.
Nós filmamos tudo. De longe, é claro.
Agora a ironia do destino havia nos trazido à outra lanchonete, perdida nas rodovias do sudeste. O cheiro de fritura velha e mictório sujo empesteava o lugar, mas não tínhamos outras opções de parada em nossa viagem. Estávamos indo cobrir outro caso de homem que voava, um político de cidadezinha do interior.
Alguém se aproximou de nossa mesa para levar pratos manchados de ketchup e alguns copos usados que tinham sido deixados lá pelos clientes anteriores. Lembro que reparei bem em seu rosto. Magro, ruivo e sardento. A exata imagem da cabeça decepada e ensanguentada do funcionário que havia sido morto naquele estacionamento.
Remorso. Acho que ainda estava impressionada por aquela cena que presenciara e sua violência. Estava deixando ela nublar e confundir os meus sentidos.
O sujeito se afastou e o perdi de vista.
Não tinha pedido nada para comer. Diogo deglutia alguns salgadinhos e uma coca-cola.
– Aquele dia… o furo… como você sabia? Você… – principiei.
– Armei tudo? Céus, não! – respondeu.
– Então como?
– Você não ia acreditar de qualquer forma.
– Tente.
– Veja bem, foquinha. Eu mesmo não entendia até recentemente, até outro dia. Quer dizer, ainda não entendo. Aparentemente tem gente nesse mundo que fala com plantas e animais mortos. Outros que gostam de sair voando por aí. Eu? Sou magneticamente atraído por desgraças. Consigo sentir quando algo ruim vai acontecer. Mas nem sempre sei quando vai acontecer e se vai mesmo acontecer. Não tinha certeza até alguns dias atrás.
– E por que você…
– Por que não me torno um “herói”? Por que eu não salvo o mundo?! Porque não funciona. Acha que eu não tentei? Mas as guerras continuam acontecendo. Eu estive lá. Países onde atrocidades acontecem diariamente. O que uma única pessoa pode fazer diante disso tudo? Pouca coisa, quase nada. Apenas sua parte. Ajudo quando posso, tento fazer as pessoas raciocinarem através das coisas que eu escrevo e das minhas reportagens. Mas quando um maluco como aquele toma reféns não há nada que a gente possa fazer além de ligar pra polícia e ligar a câmera.
Suspirei.
– Número um: você é desprezível. Número dois: eu realmente não me importo. Número três: eu não precisava da sua vã filosofia, só ia pedir pra me passar os salgadinhos. Estou com fome.
Diogo sorriu com o canto da boca e me passou a embalagem com suas mãos engorduradas.
– Sabe, foquinha? Acho que estou começando a gostar de você.
…
No dia do acidente acordara de maneira repentina em seu apartamento, em sua cama de casal. Confortavelmente deitado sobre os lençóis. Estava nu e inteiro.
Fora ao banheiro se espelhar: nenhum arranhão.
Um sonho? Logo abandonou a hipótese quando viu seu próprio carro destroçado sendo exibido num telejornal. Havia um corpo. Sua mulher ficara histérica, pensou que tinha morrido.
E tinha. O cadáver era igual a ele, tinha o mesmo tipo de sangue, a mesma arcada dentária e até o mesmo DNA. E ao mesmo tempo não era ele. Ele estava ali, vivo, ou algo semelhante a isso.
Logo aquilo virou um grande mistério em rede nacional e uma lenda urbana na internet. As teorias conspiratórias eram inúmeras e às vezes se divertia lendo-as.
A mais estapafúrdia era a teoria do “duplo”. De acordo com ela, ele, José da Silva, tinha sido sequestrado do hospital, no dia de seu nascimento, e apartado de um hipotético irmão gêmeo. Coincidentemente naquele mesmo dia, seu gêmeo, que vivia na mesma cidade que ele e que havia crescido e se tornado um marginal, roubou o seu carro com todos seus documentos e saiu dirigindo por aí.
O fato de José não se lembrar de nada – de como havia voltado do trabalho, de como entrara no condomínio – ou de como alguém tinha roubado seu veículo, nada além do sonho de um acidente de trânsito, explicava-se por um trauma causado pela morte brutal de seu até então incógnito consanguíneo. A ligação quase mística que existe entre irmãos que dividiram o útero.
Quanta asneira. Coisa de novela.
Era preciso rir um pouco. Claro que toda aquela fama passageira durou só algumas semanas. Sua lenda viveria eternamente apenas no coração dos malucos e dos desocupados.
Pegou alguns dias de licença do serviço, disse não estar bem.
Limbo?
Sua vida era inferno. Se ele tivesse morrido o universo sequer teria percebido sua ausência, assim como não percebeu sua chegada. O pastor tinha falado que tudo aquilo, escapar do acidente e aparecer em casa, isso era obra de Deus. Isso! Deus é bom, Deus é justo e ninguém questiona seus milagres.
Mas então quem era aquele que havia morrido em seu lugar? Um anjo?
Estava deitado em sua cama de casal vazia, a mulher no trabalho e o os filhos na escola. Ainda bem. Começou a conciliar o sono, a pensar na sua infância, tempos simples e com menos preocupações. A casa da mãe lá no interior, no meio de uma fazenda úmida e enlameada, com cheiro de fezes, galos cantando e cachorros latindo. Bons tempos. Pensando bem, devia aproveitar aquele fim de semana e ir visitá-la.
Fechou os olhos e quando os abriu novamente já não estava mais no mesmo quarto.
…
Despertei na manhã seguinte em um quarto de Motel, olhando pra um ventilador no teto. O homem voador fora um alarme falso, uma grande farsa. Ou isso, ou alguém tinha chegado antes de nós. O exército, o governo, ou quem sabe o cara simplesmente tivesse decidido sumir por uns tempos. Não. Nada. Nem sinal dele, na terra ou no céu.
Vamos ver, então… como posso contar isso de uma maneira delicada para vocês?
Eu dei pro Diogo.
Não pensem que existisse qualquer sentimento remotamente romântico entre nós, não havia. Mas apesar de insuportável ele era bonito, meu ex-ídolo e fazia pelo menos uns dois anos que eu não namorava alguém. A carência às vezes nos leva a cometer atrocidades contra o bom senso.
Ele estava nu ali do lado, roncando e babando enquanto eu tentava terminar de ler um livro. Aquele lugar não era exatamente agradável, no entanto não havia pressa ou necessidade de sair dali. O próximo passo, afinal de contas, era esperar o faro sobrenatural para desgraças do meu chefinho pescar alguma coisa e nos levar até um novo grande furo. Detesto admitir, mas ele me advertira que o lance do cara voador não prometia. “Isso aí não vai dar em nada foquinha, vamos esperar”.
Agora eu sabia que tinha resolvido vir junto comigo apenas porque queria me comer. Homens. O que posso dizer? Funcionou.
Levantou-se um tanto confuso e assustado, depois olhou ao redor e como se tivesse compreendido onde estava e voltou a enfiar a cara no travesseiro – o que está lendo? – disse.
– Cem Anos de Solidão. Gabriel García Márquez.
– É. Eu percebi como estava solitária ontem à noite!
Obviamente eu ignorei aquele comentário porco, machista e ignorante com muita benevolência.
– É legal? – perguntou como se querendo se redimir.
– Ele é um dos pais do Realismo Mágico. Um gênero onde eventos inexplicáveis fazem parte do cotidiano das pessoas e ainda assim tudo é tratado com normalidade. A história toda é uma grande saga de família que…
Ele arremessou o travesseiro em mim.
– Perguntei se era legal, não pedi uma recensão literária. Céus! Vá vestir algumas roupas. Ninguém quer ver uma intelectual nua! Sinto que tem algo minimamente digno de minha presença, em algum lugar. Ao norte.
Antes, fui tomar uma ducha.
…
Mulheres nuas, galos cantando e cachorros latindo.
Acordou em um quarto que já não era mais o seu. Mas era. Aquele já fora seu quarto. Qualquer outra pessoa teria transformado o espaço num depósito de inutilidades, mas não sua mãe. Ela erigira um museu ao passado.
Ficou algum tempo deitado olhando os pôsteres espalhados pelas paredes, em especial as beldades que haviam sido as musas de uma frenética atividade juvenil, oculta pelos lençóis.
Havia também alguns de jogadores de futebol nos cantos, coleções de brinquedos sobre as estantes, livros velhos de escola empilhados sobre caixas.
Nenhum sinal das suas roupas, mas felizmente havia algumas no armário que abandonara lá quando visitara sua mãe pela última vez. Foi num Natal.
Como chamavam mesmo nos quadrinhos e nas histórias de ficção científica? Teletransporte. A habilidade de sumir num lugar e aparecer em outro. Será que ele era verdadeiramente capaz de fazer aquilo ou estava alucinando?
Saiu do quarto confuso e ainda sem entender muito bem o que tinha acontecido. Logo seu olfato reconheceu o cheiro de bolinhos-de-chuva e café, tal qual fosse um sabujo treinado para aquilo.
Sua mãe o esperava de avental e um sorriso de orelha a orelha.
– Ô meu filho! Veio de ônibus? Tadinho. Estava tão cansado que mal chegou, se enfiou na cama e dormiu. Nem vi a hora que entrou. O que foi? Brigou com a Fernanda de novo?
– Benção, mãe – disse dando um beijo na testa dela e roubando um bolinho – A Fernanda e as crianças não puderam vir, sabe como é. Os médicos disseram que eu tinha que descansar um pouco, então resolvi vir pra cá. Ia te ligar, mas esqueci meu celular em casa – improvisou.
– Fez muito bem, meu filho! Muito bem! Pega um café que está fresquinho. Fiz agora.
Definitivamente não estava entendendo mais nada, mas pelo menos estava em casa.
E o café era “fresquinho”.
…
Dirigimos e após alguns dias de carro chegamos a Salvador. Estava nevando. Na verdade era uma nevasca. Mal conseguimos atravessar até o centro histórico da cidade, onde pretendíamos conseguir algumas imagens, também históricas.
Tudo coberto numa planície alva e fria de desolação.
O tapete branco era desafiado apenas por algumas poucas pessoas cobertas da cabeça até os pés com agasalhos bastante improvisados, tentando resistir à força do vento e achar suas casas, ou um abrigo. Tetos de construções e campanários de igreja pulavam pra fora do gelo.
– Nevar no nordeste já é um absurdo, mas nevar sobre uma única cidade é ignorar completamente as leis da física! – berrei por causa do som da correnteza de ar. Meu queixo tremia.
– Políticos voadores fazem muito mais sentido! Anime-se. Parece que chegamos a tempo para o carnaval de inverno! – berrou Diogo de volta.
Tentando enxergar para onde ia esbarrei em um daqueles seres encapuzados, cobertos como um esquimó. O vento descobriu o seu rosto e por alguns minutos fiquei estarrecida, em transe, olhando para um homem de face magra e sardenta.
Ruivo.
Colocou seu capuz de volta e desapareceu em meio à tempestade. Ele me pareceu familiar. Não era aquele mesmo rapaz que eu vira há um tempo atrás na lanchonete da estrada, durante a viagem? Será que estava nos seguindo? Impossível. Não dissemos a ninguém aonde íamos e estávamos em outro canto do país. Devia ser minha mente pregando peças de novo, uma miragem.
– E aí, você não vem?! Achei que aquelas de sua espécie gostassem de climas polares! – berrou o Abutre, que já se afastava em busca da suculenta nova notícia esperando naquele deserto pálido.
– Eu já vou! Me espera! – gritou a Foca de volta.
E o seguiu.
…
Alguns dias tinham se passado, desistiu de ligar para a esposa, pois pensou que não conseguiria explicar a situação de qualquer jeito. Ela também não se deu o trabalho de ligar para a sogra, em busca do paradeiro do marido misteriosamente desaparecido. Talvez tudo aquilo fosse uma chance de reconsiderar, mudar tudo. Pedir demissão do emprego. Pedir o divórcio.
Era como se ele tivesse descido de um trem e agora estivesse na estação esperando por uma outra linha que o levaria até uma nova vida e um novo destino.
Começar tudo outra vez. Do zero.
Ou não.
Enquanto pensava no que faria a seguir aproveitou para descansar um pouco, revisitar sua cidade natal. Rever velhos rostos e velhos lugares. O saudosismo inicial valera a pena, mas já não se encaixava ali. Aqueles dias em meio aos pôsteres de mulheres nuas e bolinhos-de-chuva haviam sido com um bálsamo, um paraíso, mas estava na hora de seguir. Para onde?
Saiu de uma chuveirada quente e trocava suas roupas quando ouviu as buzinas e o latido dos cães. Um carro estacionou em frente à casa de sua mãe. Ele se aproximou da janela para ver quem era. Pelas portas do veículo, através dos vidros, viu seus filhos e sua esposa Fernanda. Saindo do banco do motorista e gritando o nome da mãe viu um homem magro, ruivo e sardento.
Ele mesmo, só que não era.
Ele estava ali dentro do quarto com seus batimentos acelerados e sua mente desorientada, o outro, o outro ele, estava do lado de fora, sorridente, sendo recebido.
– Que surpresa adorável! Achei que estivesse por aqui ainda, José! Foi buscá-los na entrada da cidade? Não sabia que minha nora dirigia. Veio sozinha, trazendo as crianças, na estrada da capital pra cá? É perigoso!
– O que está dizendo, mãe? Nós acabamos de chegar.
Não ouviu aquele diálogo, é claro. Não ficou para ouvir, apenas o imaginou. Fugiu por uma janela embrenhando-se no mato que fora seu esconderijo predileto quando era pirralho. Ouvia ainda o latido dos cães ao longe, enquanto ia reconhecendo o odor da terra úmida que pisava, as picadas de mosquito e as árvores dançando ao seu redor. Ou seriam mesmo aquelas memórias do esconderijo suas e não lembranças de seu outro eu?
Sempre soube. Nunca houve nada de especial nele, sempre fora comum demais, algo que podia ser facilmente substituído. Era amaldiçoado, pois não era capaz de desaparecer do mundo como sempre quis, imergir em sua insignificância. Tudo o que conseguia fazer era aparecer em outro lugar. Materializar um outro eu em um determinado ponto do espaço. O verdadeiro José da Silva estava morto e enterrado e ele era somente uma peça de reposição.
Uma cópia. A cópia de uma cópia.
Mas aquele homem já estava morto antes, bem antes do acidente, sem que mesmo soubesse, e agora finalmente vivia em seu duplo e estava livre. Livre como um germe. Mais um homem prestes a conquistar o mundo. Não, não conquistar.
Contaminar.
Iria infectá-lo, qualidade por quantidade. Uma mediocridade contagiosa que se esparramaria e multiplicaria sobre a terra. Até aquele momento ele fora apenas alguém na multidão. Agora ele seria a multidão.
O duplo continuou correndo pelas paisagens de sua falsa infância, tentando manter em sua mente a visão de um lugar qualquer. Ele continuou correndo e correndo, sem saber para onde ir.
E em algum lugar, um lugar no qual estava pensando, um lugar que existia não só em sua mente, mas em algum canto do mundo, um novo homem apareceu vindo do nada, como mágica. Ele era magro, ruivo e sardento.
Seu velho eu continuou correndo, como se nada tivesse acontecido.
Seu novo eu estava nu.