Nome de herói, vida de plebeu.
Acordava todo dia com o céu mergulhado em escuridão, bem antes que o deus-sol Azgher pudesse banhar o mundo com seu calor e luz. Calçava suas botas, vestia roupas práticas e singelas, pendurava o chapéu de palha na cabeça e armado com um machado de cortar lenha, deixava a pequena cabana na qual morava para andar uns bons minutos até o vilarejo.
Fazia uma costumeira e frugal refeição na taverna, saudando todos polidamente. Depois ia ter por uma boa hora com o pároco local, um clérigo de Tana-Toh. Além de sacerdote, o velho era professor, bibliotecário e bardo. Ganhava uns bons trocados acumulando todas aquelas funções, tendo, em contrapartida, perdido uns bons tufos de cabelo pelo empilhamento de responsabilidades em suas costas cansadas.
Após ter com o pároco, Desventura subia até o bosque onde todos os seus colegas lenhadores já esperavam por ele e trabalhava. Ele trabalhava, trabalhava e trabalhava, até o sol ficar vermelho no horizonte. E se era o último a chegar, era também o último a sair.
Antes de ir para casa, já suado e exausto, ainda tinha os colhões de subir, todos os dias, sem exceção, até a colina mais alta e íngreme do lugarejo e colocar-se diante de um pequeno altar natural, formado por pedras nuas. Ali ajoelhava-se, acendia uma vela e orava, em silêncio.
Às vezes, levava pequenas oferendas e sacrifícios.
No começo estranhava-se o comportamento do aldeão. Afinal, com um templo tão bonito na vila e sendo tão amigo do pároco, para que subir até lá em cima? Será que rezava para Aliahanna, a deusa da natureza, tão avessa à civilização? “Hynnin e Nimb” – diziam as más línguas, citando respectivamente a divindade dos larápios e a dos tresloucados.
A resistência à sua fé foi grande no início, mas no fim o carisma e teimosia de Décio sobrepujaram a desconfiança generalizada dos seus concidadãos. Muitos deles até mesmo se converteram.
Ninguém, entretanto, jamais ousou manter um contato tão próximo do seu objeto de adoração. Por uma questão de puro respeito e limites.
Podia dar morte.
…
Um dia quando Desventura, exausto, mais uma vez venceu a colina e chegou ao seu topo trazendo velas e oferendas, reparou que não estava só. Era como se aquela pessoa já estivesse lá esperando por ele. Um jovem de roupas bem mais caras que as suas e um certo ar petulante.
Cumprimentou-o com o costumeiro menear de cabeça, acompanhando de um “Opa”. Dirigiu-se para o altar e iniciou os procedimentos. Sem sentir-se muito desconfortável com aquela presença extra ali.
– O que está fazendo?– disse o rapaz.
– Diacho. Cê não ta vendo não? Tô rezando, uai! – respondeu Desventura com a maior naturalidade do mundo.
– Isso é evidente, meu bom homem. Mas para quem dirige sua oração?
– Para a minha deusa.
– Ah! Valkaria? – inquiriu o rapaz, mencionando o nome da deusa dos humanos.
– Não, não é ela.
– Marah ou Lena? Ouvi dizer que essas divindades da paz e da fertilidade são muito em voga entre os camponeses.
– Não.
– Como fui tolo! Este é claramente um altar rupestre! Certamente ora para a deusa da natureza, Alihanna. Está pedindo para que ela lhe dê uma boa colheita esse ano.
– Não – limitou-se a responder o aldeão, mais uma vez.
– Certo. Não é Alihanna também. Aquilo ali em sua mochila são livros? Tana-Toh, a deusa do conhecimento, talvez?
– Também não.
– Desisto. Quem é sua deusa então?
– Vlalodislannya, a Deusa da Beleza Farta que Salta Aos Olhos.
– Uau! Essa é uma divindade que reina sobre um domínio bastante específico não acha?!
Desventura já havia acendido as velas e dispunha as oferendas. Distraído, nem mesmo respondeu à provocação.
– Não entendo – disse o rapaz – Por que as pessoas escolhem rezar para esses deuses menores se podem orar às grandes deusas criadoras ou aos imbatíveis deuses da guerra e justiça, em templos com colunas de mármore, altares de ouro e bonitos vitrais?
“Xé! O interior do nosso templo tem umas imagens de gesso vagabundas e olha lá.” – ponderou o aldeão, em pensamento.
– Já sei. Você deve ser daqueles “do contra” né? Gosta de fingir que está acima do resto do populacho, de se sentir diferente. Especial. Arruma uma divindade obscura e pouco conhecida para venerar e, quando ela começa ganhar seguidores e tornar-se popular, a repudia e parte em busca de outra. Vi muito disso entre os habitantes da capital.
O aldeão pensou um pouco antes de responder, não por não ter uma resposta, mas porque sinceramente queria refletir sobre o que o jovem lhe dizia.
– Esse comportamento não faz sentido para mim. Rezo para minha deusa porque sou grato, porque a amo e, talvez, porque ela me ame também. Se outras pessoas querem orar para ela não sei como isso ia me deixar triste, moço. Eu ia é ficar feliz! Desde que a minha deusa continue sendo minha deusa e ouvindo minhas preces não tenho do que me queixar. As pessoas rezam para os deuses que elas quiserem.
– Se é tão devoto por que não tira proveito disso? Porque não se torna um clérigo, um sacerdote? Ganha o poder de fazer milagres?
– Penso nisso. Só que falta bastante coisa ainda pra aprender. Existem regras, rituais. Ainda tenho que treinar minha fala, que se dirá a escrita. Ando estudando bastante com o Seu Pároco. Mas ser só devoto não me diminui não, moço. Oro porque acredito em algo e quero ser sacerdote porque quero ser capaz de viver pelo que acredito, não porque quero dízimo de alguém. E se eu não acreditasse em nada, viveria pelo que não acredito. Todo caso, poder subir essa colina todos os dias, acredite, é um milagre.
Um breve calar de vozes caiu sobre os interlocutores, o qual Desventura logo interrompeu para concluir a conversa.
– O moço dá licença que eu vou rezar agora. Se precisar de algum lugar pra ficar, passa lá em casa depois que será muito bem-vindo.
…
O aldeão fez suas preces envolvido do silêncio costumeiro, recolheu suas coisas e quando desceu a colina já começava a anoitecer.
O jovem sentou-se ao lado do altar sorrindo com um ar satisfeito, enquanto ficou observando ele ir embora. É claro que não visitaria ninguém para pedir por abrigo, nem ao menos havia sido informado de onde era a casa do lenhador, embora não seria difícil ter acesso àquele conhecimento magicamente, de imediato, se assim desejasse.
As feições de rapaz começaram a se modificar, transformando-se nas de uma mulher.
Era Valkaria.
A deusa da ambição e da humanidade havia se divertido imensamente testando a fé de uma de suas criações. Às vezes, mesmo ela surpreendia-se com aquela espécie e (para uma criatura de sua natureza) a surpresa é sempre rara dádiva.
A tal Vlalodislannya era mesmo uma deusa de sorte.
…
Naquela noite, após fazer mais uma frugal refeição na taverna, conversar um pouco com o dono do lugar e encomendar um segundo prato e um odre de vinho para a viagem, Desventura voltou para casa.
Jogou o chapéu de palha sobre a mesa, tirou as botas e desabotou a camisa.
A Beleza Farta que Salta Aos Olhos aguardava por ele ansiosamente, enchendo a cama.
– Demorou hoje!
– Desculpe. Trouxe pão, queijo e vinho para você.
– Ouxi! Deixa isso pra lá e vem se deitar primeiro. Tá frio e eu quero que você me esquente.
– É pra já minha deusa! É pra já!
E ele lançou-se aos beijos vorazes sobre a boca e os seios de sua esposa. Ela retribuiu e uma dança frenética de corpos se iniciou e acabou e reiniciou muitas vezes, quando, por fim, perderam a consciência satisfeitos e felizes um nos braços do outro.
Antes de adormecer um pensamento atravessou a mente do aldeão – orar aos deuses menores também é importante. E tem lá suas recompensas.
Imagem de Silbury Hill, Inglaterra, retirada daqui.